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Homero, Shakespeare, Dante, Joyce…
Meu pai tinha o hábito de ler em voz alta para que escutássemos. Ele simplesmente gostava de ler e partilhar com outras pessoas as emoções das narrativas que lia. Tinha ele certa predileção por autores como Dumas, pai e Dumas, filho, mas era Dante que o encantava mais.
Creio que desde cedo a literatura me interessou graças ao hábito de meu pai. Havia sempre uma história pendente, uma trama a terminar de modo que o mundo imaginário fazia parte das nossas vidas quase como se fosse real.
Hoje em dia as crianças em idade escolar são iniciadas nas grandes obras através de adaptações. Trata-se de livros que recontam o original e, assim se acredita, despertam nas crianças futuros leitores. Espera-se, por exemplo, que a leitura da adaptação do Otelo de Shakespeare transfira à criança as primeiras emoções a respeito da maldade de Iago e as faça procurar, mais tarde, pela obra original. Por essa via busca-se o estabelecimento da atividade cultural; sinceramente não sei se é possível mensurar os resultados posteriores dessa prática.
De todo modo o fato é que hoje em dia pouco se lêem autores fundamentais como Homero e Shakespeare. Fazem eles parte de um contingente de escritores que podem ser reconhecidos como desengajados das circunstâncias de momento. Explico-me: a obra de Shakespeare é de tal modo monumental que independe das circunstâncias do momento em que é lida. Shakespeare deu voz escrita a personagens que refletem o homem em qualquer época independentemente do modo de ser e ideologias vigentes. Pode-se mesmo dizer que o autor inglês estabeleceu paradigmas eternos e insubstituíveis. Por isso Shakespeare foi, é e sempre será atual, atualíssimo, leitura obrigatória.
Não se pode passar toda uma vida sem ler a “Divina Comédia” de Dante. Pouco importa se Dante se vingou de seus desafetos colocando-os, todos, no inferno. Assim como Shakespeare e alguns outros mestres da literatura, Dante nos encantou pela capacidade de chamar a atenção de seus leitores mesmo quando sua obra é relida por mais de uma vez.
Existe sempre algo de novo a descobrir em Homero, Shakespeare, Dante, Joyce e outros autores de obras imortais. Não se pode olvidá-los dado que atingiram os limites da criação em suas obras, emprestando dimensão maior à rotina de nossos dias
Passamento
O gordo da esquina morreu. D. Diva, que vem de manhã e prepara o meu café, disse que foi de repente:
- Ontem mesmo ele estava bonzinho, na janela, com o olho dele, de sapo.
A vida é assim, assim - disse eu para D. Diva, deixando pra lá o que mais ela falou sobre o gordo. Esse gordo – o da esquina que morreu – foi meu colega no grupo escolar. Os olhos de sapo ele sempre teve, empapuçados, como se tivessem sido untados com óleos encorpados e pouco fluídos. Daí que era só ele aparecer para a molecada gritar:
- Sapo, sapo, sapoooo.
O sapo abaixava a cabeça e sorria. Meninas se afastavam dele, jurando que ele comia insetos. Uma tal Mariinha – nunca me esqueci dela – dizia que o sapo tinha preferência por vagalumes. Ainda hoje acho que a Mariinha ficou impressionada com aquela poesia do João Ribeiro cujo título é “O vagalume e o sapo”. A poesia constava da cartilha que usávamos na escola. É dessas que tem o moral da história porque, no final, um “feio sapo repelente, sai do córrego lodoso, cospe e baba de repente, sobre o inseto luminoso”. Ao que o vagalume pergunta:
- Porque me vens maltratar?
- Porque estás sempre a brilhar – responde o sapo.
Foi assim que aprendemos porque o brilho pessoal incomoda tanta gente…
Mas, deixa prá lá. O tempo passou, o gordo cresceu, eu também. Saí da minha terra natal e me aventurei pelo mundo, dando-me mal e bem, mais bem que mal. Até que um dia, cansado de tertúlias inúteis e explicações insatisfatórias sobre o sentido da vida, li que os elefantes voltam ao lugar onde nasceram para morrer. Na falta de outra justificativa essa me pareceu muito razoável para vender um pequeno negócio, juntar uns dinheirinhos e voltar para a minha terra, esperando não sei bem o quê.
Foi nessa ocasião, há uns pares de anos, que vim morar nesta casa, na mesma rua que o gordo. Tempos depois da minha chegada estranhei que o gordo ficasse, sempre no fim da tarde, na janela da casa dele, observando a rua. Com ele nunca troquei mais que um aceno de cabeça: eu passando, ele na janela.
Mais uma vez foi D. Diva quem matou minha curiosidade sobre os hábitos, digamos pouco usuais, do gordo. Contou-me a fofoqueira que há alguns anos o gordo se casara com a mulher de seus sonhos, sabe quem? Acreditem: justamente a Mariinha. Se foram felizes juntos , ou não, ninguém sabe, mas é certo que pelo menos o gordo era feliz. O casamento durou até que a Mariinha desapareceu. Os esforços do marido para localizá-la resultaram inúteis até que se soube, por meio de um parente, que ela fugira com um sargento de polícia.
A notícia chegou ao gordo que, a partir desse dia, nunca mais saiu à rua, reduzindo seu contato com o mundo aos breves períodos na janela, pouco antes do anoitecer.
Devo dizer que a morte do gordo me entristece e alegra. O aparente paradoxo se explica: entristece porque afinal é um ex-colega, o sapo, que partiu desta para a melhor; alegra porque ele finalmente livrou-se de sua prisão voluntária, utilizando a única saída que lhe era possível.
É lugar-comum dizer que a morte é uma fazedora de vazios. Mas que outra coisa dizer se é bem isso o que acontece? O fato é que há dois dias não saio de casa: não sei como vou me sentir ao passar pela esquina e ter certeza de que o gordo não mais sairá à janela.
Lá se foi o gordo. Enquanto isso, o elefante que vive na mesma rua aguarda a sua vez.
Por fim, resta citar Drummond:
- A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.
Os “Ulisses” de James Joyce
De vez em quando acontece a aquisição de um livro cuja leitura, devido ao seu alentado volume, vai ficando para depois. A verdade é que livros grandes parecem ser inadaptados à correria da vida atual. Não sei ao certo, mas creio que foi em relação à obra de Balzac que Hemingway afirmou ser extensa demais, supondo que o escritor francês nada mais tivesse a fazer que escrever livros.
No caso do “Ulisses”, do escritor irlandês James Joyce, ao grande número de páginas – 900 – acrescenta-se a reconhecida dificuldade de leitura. “Ulisses” não é obra fácil e se me refiro ao livro no plural “Os Ulisses” é porque existem, em português do Brasil, duas traduções: a de Antônio Houaiss e outra, mais recente, cuja autora é Bernardina da Silveira Pinheiro. Das duas li a de Huaiss; a de Bernardina continua na estante à espera de momento em que eu possa em entregar a ela.
Sobre o trabalho de Houaiss posso dizer que a erudição do tradutor resultou num texto algo empolado, mas ainda assim excelente. Parece que Bernardina adotou linha mais coloquial que, segundo li, aproxima mais o texto traduzido das intenções originais de seu autor.
De todo modo é sempre um grande encanto entrar em contato com a obra de um dos autores mais importantes do século XX, verdadeiro divisor de águas no terreno da literatura. Naturalmente críticos e leitores discordarão ao apontar pelo menos quatro autores mais representativos do modernismo literário, mas sejam quais forem os escolhidos Joyce sempre estará entre eles. O fato é que ele rompeu com os cânones que o precederam, introduzindo na literatura o chamado “fluxo de consciência”. De fato, na narrativa de Joyce privilegia-se o monólogo interior e dá-se mais espaço a aspectos psíquicos que fatores externos.
Em “Ulisses” Joyce associa sua fervilhante imaginação a grande domínio linguístico. Trabalha com tantas variáveis que correria o risco de criar uma massa informe e descontinua demais ao entendimento de seus leitores. Evita que isso aconteça socorrendo-se com a tradição literária, justamente ela a quem seu modo de escrever subverte. Joyce vai buscar na Odisséia a linha mestra de seu texto, se é que se pode falar em linha mestra. De todo modo, as personagens principais de Ulisses - Leopold Bloom, sua esposa Molly Bloom e Stephen Dedalus são paródias das personagens de Homero - Ulisses, Penélope e Telêmaco. A trama de “Ulisses” desenrola-se num único dia, 16 de junho de 1904, em Dublin, cidade natal de Joyce. Como acontece aos homéricos, as personagens de Joyce, passam pelas vicissutudes de suas vidas desencontradas ao longo de dezoito capítulos, cada um deles relacionado com um fato específico da Odisséia de Homero. Mas que não se engane o leitor: trata-se de uma paródia burlesca da Odisséia.
“Ulisses” foi publicado pela primeira vez em 1922, em Paris, pela pequena editora Shakespire and Company. Considerado obsceno, o livro só pode ser publicado eno EUA em 1933, após histórica decisão judicial.
James Joyce (1882-1941), viveu grande parte de sua vida fora da Irlanda, embora suas obras se ambientem em seu país de origem. São de sua autoria o livro de contos “Dublinenses”, o romance “Retrato de um artista quando jovem”, “Ulisses”, e “Finnegans Wake”, seu últmo trabalho. Sobre “Finnegans Wake” pode-se dizer que tem estrutura por demais complexa dado que as técnicas utilizadas em “Ulisses” são levadas a verdadeiro paroxismo.
A breve notícia sobre o “Ulisses” de Joyce num blog não pretende passar por mais que simples lembrança e sugestão de leitura aos interessados em modernismo e literatura. São inúmeros os ensaios e estudos sobre a obra de Joyce. Um deles, em especial, é o escrito pelo crítico norte-americano Edmund Wilson cuja leitura funciona como excelente introdução à obra do escritor irlandês. O ensaio “James Joyce”, de Edmund Wilson, faz parte do livro “O castelo de Axel”, publicado pela Companhia das Letras.
As duas versões de Ulisses podem ser encontradas nas livraraias. A traduzida por Antônio Hoaiss é publicação da Civilização Brasileira ; a tradução de Bernardina Silveira Pinheiro é publicação da Alfaguara Brasil.
Por último, uma licenciosidade: para os amantes da série “24 horas”, cuja ação se passa num único dia, vale lembrar que quase 100 anos antes, James Joyce produziu “Ulisses”, narrativa que começa às 8h da manhã e termina às 2h da madrugada.
A criatividade
Imprevisibilidade, liberdade e novidade são características apensas à criatividade que resulta de atividades humanas na literatura, na ciência e na arte.
Tem-se falado muito sobre criatividade. Atualmente cientistas utilizam recursos avançados para localizar, no cérebro, as áreas ligadas à criatividade, provavelmente situadas o lobo frontal.
Existem vários testes para medir a inteligência e provas para avaliar a criatividade. O que se busca é a interpretação de um fato intrigante: por que certas pessoas são mais criativas que outras?
As minhas relações com a inteligência sempre foram complexas. Embora tenha plena consciência das minhas limitações e não me situe entre pessoas muito inteligentes – não se trata de falsa modéstia – o fato é que em várias ocasiões duvidei da minha inteligência. Isso aconteceu, por exemplo, na época em que prestei exames vestibulares: julgava-me incapaz de reter na memória aquela quantidade absurda de dados exigidos para o sucesso nas provas. Mais que isso: não acreditava muito nas minhas possibilidades de fazer o uso correto de muitas das informações recebidas. Esse tipo de dúvida manifestava-se, principalmente, durante a resolução de problemas de matemática e física. Digamos que eu conhecia toda a teoria necessária à resolução dos exercícios, mas faltava-me a condição para chegar a ela.
Os anos me ensinaram que as coisas não são bem assim. Em primeiro lugar, há que se considerarem as aptidões pessoais. Nem todo mundo nasce como Leonardo da Vinci, capaz de fazer qualquer coisa inclusive de pintar a “Madona”, talvez só para se distrair das engenhocas que inventava. É por isso que acredito na existência de uma inteligência setorial, seja lá o que isso for. De todo modo, penso que a setorização seja algo como a posse de determinadas habilidades, talvez em detrimento de outras.
A partir daí o problema se prende à indeterminação de nossas principais habilidades. Nesse sentido a pergunta “o que eu faço melhor?” se impõe. É preciso estar atento a ela para que a atenção pessoal não se disperse em muitas coisas de modo a não se chegue a fazer bem nenhuma. Todo mundo sabe que habilidades se desenvolvem com treino. Quem dúvida que verifique as tais escolas norte-americanas para escritores. Essas escolas ou cursos são descobridores de talentos e se orgulham de muitos de seus alunos terem-se tornado escritores importantes, alguns deles chegando a receber o almejado Prêmio Politzer.
De minha parte ainda hoje não sei se consegui responder bem à pergunta “o que eu faço melhor?”. No princípio eu achava, por exemplo, que jamais conseguiria bolar um plano muito longo, algo como o que fazem os jogadores de xadrez que movem uma peça no tabuleiro tendo em mente os vinte movimentos seguintes. Depois comecei a escrever livros, alguns com muitas páginas…
Confesso que tenho medo das pesquisas sobre a inteligência e a criatividade. Não que seja contra elas, mas me preocupa que os avanços nessa área venham a servir para rotular pessoas e suas capacidades. Nesse caso entraríamos em algo semelhante ao que já vem acontecendo com a engenharia genética: quer-se utilizar a tecnologia do DNA para previsão da futura saúde das pessoas, assunto de grande interesse para as seguradoras, por exemplo.
Creio que para muita gente o problema com a própria inteligência ainda esteja por se ser resolvido. Pessoas já bem definidas na vida talvez ainda aguardem alguma surpresa, abrindo-se para algo que jamais suporiam. Esse posicionamento liga-se às inevitáveis inquietações do espírito que nunca nos abandonam
Reafirmo que não tenho nada contra as pesquisas que visam não só descobrir os mecanismos, mas, talvez, encontrar meios de aprimorar os seres humanos, dando a eles melhores condições e mais prazer em viver. O meu pé atrás é só uma questão de receio, afinal já vimos o que aconteceu no passado quando os interesses do poder sobrepujaram os da humanidade e a ciência serviu a toda sorte de discriminações.
Oscar Wilde
É normal os críticos baixarem o pau em Oscar Wilde. Demais ele parece ter nascido para ser controverso. Existem naturezas proporcionadas para escandalizar. São como espasmos dentro de uma civilização conservadora que se respeita e quer-se respeitada. Nesse mundo de valores tão claros e estabelecidos a ordem funciona como um remédio destinado a sanar as feridas das almas. Aí tudo se encobre: os malfeitos são punidos, as cores são contidas, os seres aberrantes punidos exemplarmente, tudo em nome de uma sociedade estável, equilibrada e ordeira.
Aí surge um Wilde. Ele é o avesso do mundo em que vive, a face escancarada que não se quer ver, a denúncia daquilo que se encobre, a subversão dos costumes, o outro lado que os homens abominam porque inconfessável. Wilde surge como um tribuno que tem o dedo em riste contra a situação humana, mostrando que a hipocrisia é o tom da vida dos pequenos e limitados seres que defendem aquilo que chamam de normalidade.
Nesse mundo de mentalidade vitoriana, Wilde é um anormal. Ele ama um jovem de seu sexo, deixa-se explorar por ele, joga a sua vida por um amor tido como sem sentido. Mas, não se pode ignorá-lo: Wilde é um dandi, Wilde afronta com suas extravagâncias, Wilde é também um gênio. Wilde escreve peças de teatro, Wilde cria Dorian Gray.
A certa altura Wilde escreve uma carta ao pai do rapaz a quem ama. O pai do rapaz o processa, a sociedade vitoriana enfim tem a oportunidade de defrontar-se com Wilde, face a face. Durante o julgamento é lida uma carta escrita por Wilde ao amante. O juiz pergunta a Wilde se considera coisa normal alguém escrever um texto como aquele. Wilde responde:
- Nada do que eu escrevo é normal.
Wilde é condenado, preso, sua vida termina poucos anos depois. Ficam os seus livros que sobrevivem a ele. Fica o livro “O retrato de Dorian Gray” que você pode encontrar nas livrarias. Há edições em português publicadas pela L&PM Editores e pela Hedra. Existe, também, uma edição bilíngue, da Landmarck.
Morte em Veneza
Nesses tempos de produções rápidas e licenciamento do que é profundo e capaz de convulsionar o espírito, “Morte em Veneza”, do escritor alemão Thomas Mann, é livro para se ler e meditar.
“Morte em Veneza”, publicado em 1912, é um diálogo com a beleza e suas terríveis implicações. Trata-se da história de um escritor austríaco, Gustav Von Aschenbach, que vai a Veneza para descansar e vê-se atraído pela beleza incomum do jovem polonês, Tadzio, que ali passa férias com a sua família. Que não se pense em pedofilia ou numa simples narrativa sobre atração sexual: o que está em jogo é a ligação de Von Aschenbach com a beleza em seu estado mais puro, a busca do escritor pela forma exata que talvez não consiga atingir em sua arte.
A relação entre Von Aschenbach e Tadzio não chega a existir, na verdade entre os dois não há troca de uma única palavra. Gera-se um conflito à distância que se reflete sobre a alma de Von Aschenbach, cada vez mais torturada pela presença do belo. É nesse ponto que a perfeição absoluta do texto e a beleza em estado puro se confundem: ambos se revelam inatingíveis para o escritor, daí ele mergulhar numa crise profunda e sem remédio.
A trama se passa em Veneza, no período em que a cidade sofre com uma epidemia de cólera asiática. A simbologia envolvendo a beleza e a degradação está em todos os planos da narrativa: aqui uma cidade maravilhosa sob o influxo da peste; ali um velho que se maquia para parecer novo e estar entre os jovens e o próprio Von Aschenbach que pinta os cabelos, mudando o seu visual numa tentativa esdrúxula de tornar-se algo mais próximo de Tadzio.
“Morte em Veneza” é um livro profundo e que admite inúmeras leituras, bem além deste esboço levíssimo e rápido. A obra serviu ao diretor italiano Luchino Visconti para a realização de um filme com o mesmo nome. No papel de Von Aschenbach está o ator Dick Bogarde; Tadzio é representado por Björn Andrésen; e a sempre maravilhosa Silvana Mangano faz a mãe de Tadzio.
Visconti abusa de primeiros planos nos quais a tela é preenchida pelo rosto de Dick Bogard, no filme um músico e não um escritor. São as expressões faciais do ator que nos introduzem no drama da atração irresistível de Von Aschenbach por Tadzio. Muitos são os momentos em que a imagem torna as palavras desnecessárias. É dentro de um clima circundado pela beleza de Veneza que se desenvolve a desestruturação de Von Aschenbach. A previsível tragédia desenrola-se lentamente, nutrindo-se de pequenas coisas que se somam e atuam sobre o espírito frágil do compositor.
Vale a pena ler Thomas Mann e ver o filme de Visconti que recebeu prêmios nos anos de 1971 e 72. “Morte em Veneza”, do Prêmio Nobel Thomas Mann, pode ser encontrado nas livrarias em traduções para o português do Brasil e de Portugal. O filme do diretor Luchino Visconti existe em DVD e, vez por outra, é reapresentado na televisão.
A desconstrução da arte
Todas as épocas tiveram os seus momentos de desconstrução que, mais tarde, tornaram-se moeda corrente para, por sua vez, serem desconstruídos pelas idéias novas de novos profetas. Foi assim que o realismo substituiu o romantismo, o modernismo zombou de tudo que veio antes dele e a ordem sucumbiu à desordem, então chamada de nova ordem.
Tudo isso faz parte da natureza do homem, da necessidade de renovação, do instinto de progresso, da fome de epílogos que inaugurem novos tempos.
Dentro de tal contexto, o real e o linear sucumbem. É preciso um novo traço, uma nova cor, a deformação da imagem, o avesso das palavras, a quebra do sentido, a ruptura da lógica, a negação do sequencial. Só assim o artista estará conectado com um mundo sem certezas, arrivista, no qual os acontecimentos forçosamente negam a racionalidade.
As novas realidades oferecem o perigo de triunfarem, entre os poucos verdadeiros artistas, os que apenas desconstroem, os iconoclastas que não sabem esculpir, os que desenredam por não saber enredar. Assim se fazem muitos gênios de momento, arautos de novidades incompletas que caem no gosto do público, propagando obras ininteligíveis, arrastando legiões de pessoas atraídas por algo que têm por avançado ainda que lhes escape o sentido do que observam ou lêem.
Ultimamente tem sido assim, entre nós, na literatura, na música, na moda, no cinema, na pintura, nas artes em geral. Premia-se o que é vago, valoriza-se o incerto, atribui-se pós-modernidade ao que pode ser catalogado como simplesmente “estranho”. A sociedade de consumo propaga as novidades, os pseudocultos integram-se para não ficar de fora e muitos intelectuais aderem por receio. Desse modo, a arte afasta-se de seus parâmetros, os clichês retornam camuflados e são enfiados goela abaixo do público. Nasce, assim, uma legião de consumidores de arte padrão, imbecilizados, devotos de uma falsa arte incensada pelos críticos de plantão.
Em períodos como este as boas narrativas não encontram espaço, os clicks inteligentes das máquinas fotográficas são desprezados e a boa poesia é substituída pela versificação sem sentido que passa por avançada.
Os verdadeiros talentos? Resta-lhes procurar outra profissão.
Os críticos? Deixam de existir ou sucumbem no solo movediço do “nem sim, nem não”.
E a arte, a verdadeira arte? Ora, a arte…
Se não existe um consistente movimento a refutar, a produção artística ou segue o seu curso normal ou corre o risco de perder-se de si mesma. Na última hipótese verifica-se o triunfo das nulidades, como já dizia o bom e sábio Rui Barbosa.
Arthur Rimbaud e “Le Bateaux Ivre”
Já se disse que é quase impossível ler a obra de do francês Arthur Rimbaud (1854-1891) sem levar em consideração a história de sua vida. Mas que fazer quando o que está em jogo é a trajetória de um poeta genial que escreveu apenas até os 20 anos de idade?
A biografia de Rimbaud apresenta-se como um desafio à racionalidade. Menino prodígio, aluno brilhante e estimulado por seu professor de retórica, ele venceu, em 1869, o Concurso Acadêmico de Douai de versos latinos. Em 1870 entrou para a escola Georges Izambard. A partir daí sua vida consiste numa sequência de fugas de sua casa localizada em Charleville, sua cidade natal. Na primeira delas foi de comboio a Paris, sendo preso e depois libertdo por intervenção de Izambard que o trouxe de volta a Charleville. Pouco tempo depois, fugiu novamente, desta vez a pé, passando por Bruxelas e chegando a Douai. A próxima fuga ocorreu no ano seguinte quando foi de comboio a Paris e voltou a pé. Nesse ano escreveu ao poeta Paul Verlaine e compôs o poema “Le Bateau Ivre”.
Paul Verlaine e Rimbaud mantiveram relacionamento muito difícil. Verlaine recebeu o jovem poeta em Paris, viajaram juntos e foram presos por conduta suspeita. Depois, foram a Londres de onde Rimbaud voltou a Charleville, a pedido de sua mãe. Os dois poetas reencontraram-se em 1873, em Londres, e viajaram a Bruxelas. Durante uma discussão Verlaine deu dois tiros em Rimbaud, lesando o seu punho esquerdo. Pouco depois desse episódio Rimbaud começou a escrever o poema “Une Saison em enfer”.
O espírito inquieto de Rimbaud nunca teria paz. Suas idas e vindas eram constantes. Andarilho, jovem mal visto pelos cabelos longos e roupas desleixadas, expulso de Viena, alistamento no Exército Colonial Holandês a caminho de Java onde deserta, intérprete de um circo em Hamburgo, comerciante na África, viajante no Egito e na Etiópia, atravessando o deserto a cavalo, traficante de armas, diretor de feitoria: a trajetória de aventureiro só termina com a morte do poeta em consequência de um câncer no joelho.
Arthur Rimbaud foi um dos maiores representantes do simbolismo no século XIX. Interessa-nos por ora o poema “Le Bateaux Ivre” que ele compôs em 1871. O leitor pode encontrar na internet uma tradução feita por Augusto de Campos. “Le Bateau Ivre” – em português “O Navio Doido” ou “O Barco Ébrio”– é um poema composto por 100 versos alexandrinos (verso em doze sílabas). Trata-se de uma prosopopéia (figura de linguagem em que escritor empresta sentimentos humanos e palavras a seres inanimados, a animais e a seres mortos ou a ausentes). No caso, o escritor empresta seus sentimentos a um navio que desce pelos rios, em direção ao mar, levado pela correnteza de vez que todos os seus tripulantes foram vitimados por índios. É o barco quem fala:
Como descia já dos Rios impassíveis,
Eu não me senti mais guiar plos sirgadores
Deles fizeram alvo os índios irascíveis,
Depois de os atar nus aos postes de mil cores.
(Tradução de Alexandre Herculano de Carvalho, in Musa de Quatro Idiomas,Edições Ática, 1947, Lisboa)
Impossível não relacionar a trajetória do navio desimpedido de controle, desgarrado e levado ao mar ao sabor das ondas, com a própria vida de poeta.
Em “Le Bateaux Ivre” Rimbaud serve-se de neologismos e é vigoroso o cromatismo dado por vezes sua intenção ser puramente visual, conforme aponta Augusto Meyer no ensaio “Le Bateau Ivre - Análise e Interpretação”. Meyer divide o poema em quatro movimentos. O primeiro deles - Descendo os rios – descreve o barco levado pela correnteza rumo ao mar; o segundo – O Batismo do Barco – fala sobre a chegada do barco desgarrado à foz do rio entrando em contato com as águas do mar. Observa-se uma mudança do ritmo lento das águas do rio para o forte balanço do mar; o terceiro - A experiência do mar - corresponde ao corpo do poema em que se verifica a originalidade de Rimbaud e sua força poética; o último movimento - Desencantamento – manifesta-se o desencanto do viajante desiludido que se confunde com a experiência de andarilho e aventureiro do próprio poeta.
O ensaio assinado por Augusto Meyer é um anexo do Curso de Teoria da Literatura dado por ele na Faculdade de Filosofia e Letras, da Universidade do Brasil. O texto foi publicado pela Livraria São José, Rio de Janeiro, em 1955. Obviamente, o livro só poderá ser encontrado em sebos. Embora Meyer fale em breve estudo, trata-se de uma poderosa incursão na obra do grande poeta Arthur Rimbaud que certamente será muito valiosa a estudiosos e interessados.
Os poemas de Arthur Rimbaud podem ser encontrados nas livrarias. Existe uma edição em francês de suas obras completas – Oeuvres completes – publicação da Editora Gallimard, 2009. “O Barco Ébrio” já mereceu mais de 20 traduções; a de Jayro Schmidt é publicação da Ed. UFSC, 2006. Também em português: “Uma Temporada no Inferno e Iluminações”, com tradução de Ledo Ivo, Ed. Francisco Alves, 2004.
A importância da literatura
A Editora Cosacnaif acaba de lançar o primeiro volume da coleção organizada pelo italiano Franco Moretti, professor de literatura na Universidade de Stanford, cujo tema central é o romance. Esse primeiro volume tem como título “A cultura do romance” e reúne, nas suas 1120 páginas, vários ensaios de diferentes autores . A ele seguirão outros quatro volumes com os seguintes títulos: “As formas” (volume 2), “História e Geografia” (volume 3), “Temas, lugares e heróis” (volume 4) e “Lições” (volume 5). Participam da obra 178 colaboradores de 99 instituições do mundo inteiro, entre eles vários escritores e críticos.
Em seu conjunto a obra tem, como dela se espera, intenção totalizante, visando dentro do alentado de suas páginas englobar o que se escreveu sob a forma de romance nas diferentes culturas.
O primeiro volume é iniciado com um texto de Mario Vargas LLosa que diz a que vem a obra já no seu título: “É possível pensar o mundo moderno sem o romance?”. Llosa discute não só o papel do romance como o da literatura em geral. O escritor peruano destaca a função da literatura enquanto meio de comunicação entre os seres humanos permitindo-lhes o diálogo independentemente das funções que desempenham, nacionalidades e circunstâncias que os cercam. Em particular só o romance disponibiliza o conhecimento totalizador e imediato do ser humano. E por essa linha segue Llosa, destacando a importância da literatura enquanto denominador comum da experiência humana.
Llosa se propõe demonstrar que a literatura, em especial o romance, não é um passatempo de luxo: trata-se, segundo suas palavras, “de uma das ocupações mais estimulantes e fecundas da alma humana, uma atividade insubstituível para a formação do cidadão numa sociedade moderna e democrática, de indivíduos livres, e que, por isso, deveria ser inculcada nas famílias desde a infância e deveria fazer parte de todos os programas de educação como uma das disciplinas básicas”.
Para mim um aspecto maior da literatura – e por extensão do romance – é o convite permanente à transcendência, lembrando e desobrigando os seres humanos à mesmice de suas rotinas diárias. Ela torna possível uma viagem ao redor de si mesmo através de experiência ficcional que mantém sólidos vínculos e pontos de contato com a experiência pessoal de cada leitor, abrindo-lhe novas dimensões e diversificando suas formas de analise e raciocínio sobre a realidade que o cerca. Mas, e mais que isso, a literatura converte-se em tábua e salvação quando o espírito está a sucumbir diante de mazelas inevitáveis. Nesse sentido basta-nos lembrar a elevação de espírito que se atinge com a simples leitura de um poema através da qual torna-se possível a transferência do estado de espírito do poeta ao leitor. É quando a literatura nos permite a saciedade dos sentidos proporcionando a plenitude dificilmente atingida por outros meios de sensibilização do espírito.
Há quem negue os efeitos mágicos do romance a da poesia embora seja certo que eles existem. A literatura pode, sim, salvar-nos em momentos cruciais das nossas vidas nos quais a beleza parece ter-nos abandonado e um muro de incógnitas se interpõe aos nossos horizontes. Provas desse fato existem e muitas. Uma delas está no noticiário de hoje, no qual se destaca a entrevista de Sidney Rittenberg, publicada pelo jornal “Folha de São Paulo”. Rittenberg, único norte-americano aceito por Mao Tsé-tung no Partido Comunista Chinês, foi intérprete do próprio Mao e de Zhou Enlai, além de chefiar a rádio China Internacional.
Durante a Revolução Cultural, Rittenberg criticou a burocracia do regime chinês pelo que foi condenado e esteve dez anos preso. Sendo o nosso assunto de hoje a literatura é interessante ouvir o que disse Rittenberg sobre o período em que esteve preso:
- Na solitária, consegui manter a saúde mental recitando poemas, lembrando de histórias, atuando performances cômicas. A literatura defendeu a minha sanidade.
Trata-se de afirmação à qual nada precisa ser acrescentado. Tem razão Vargas Llosa quando sugere que a literatura deva ser inculcada nas famílias desde a infância e fazer parte de todos os programas de educação: não se pode negar às pessoas, não importa quem sejam elas, a ligação direta com a possibilidade de transcendência. Para dizer pouco, a literatura torna as pessoas melhores, dá-lhes espírito crítico e opinativo mais aguçado e contribui largamente para que possam exercer maiormente as suas cidadanias.
Giovanni Papini
Você pode escrever sobre tudo ou nada numa manhã de sol nas montanhas. Também pode ficar em silêncio, ouvindo o barulho do vento suave entrecortado pelo canto dos pássaros que nunca se cansam.
Pode, ainda, perguntar-se sobre o significado de tudo e, depressão avizinhando-se, socorrer-se com algum livro de uma antiga biblioteca, da qual restaram poucos volumes.
Livros velhos guardam o pó de outros tempos e exalam odores capazes de reconstituir impressões adormecidas. Basta ter um só deles em mãos para que a biblioteca que conhecíamos e à qual ele pertenceu se erga das cinzas, imponente no ar, tão real que podemos tocá-la com mãos que já não são as nossas, mas das pessoas que fomos no passado.
Abro a porta da estante, pego um livro ao acaso e de repente lá está toda a biblioteca desfeita à minha frente, tão vívida que posso ler nas lombadas alguns títulos e mesmo supor que posso buscar certo livro que se encontra num canto, atrás de uma pilha, ali onde o deixei há muitos anos.
O livro que me entroniza no passado e que agora está em minhas mãos chama-se “Loucuras do Poeta”, de Giovanni Papini. Trata-se de uma edição portuguesa, sem data, publicada por “Livros do Brasil, Limitada – Lisboa”, distribuída no Brasil pela “Editora Globo – Porto Alegre”.
Em “Loucuras do Poeta”, Papini dá a conhecer alguns ensaios nos quais se revelam o poeta e o pensador que faz uso de alegorias muito próximas de parábolas. Do livro me é particularmente caro o texto “O Congresso dos Loucos” ou “Da loucura dos sãos”, verdadeira parábola acerca de uma reunião de loucos que protestam contra o seu aprisionamento em manicômios. A cada momento um dos loucos toma a palavra e o tom dos discursos é a reconquista da liberdade já que as pessoas consideradas normais e não sujeitas à reclusão são muito parecidas com eles – os loucos - em seus hábitos, ações e pensamentos.
Giovanni Papini (1881-1956), escritor italiano, tornou-se católico fervoroso após longo período de ceticismo. Entre suas várias obras destaca-se, segundo a crítica européia, o livro “Gog, uma coletânea de contos filosóficos escritos em estilo satírico. Admirado por escritores como Jorge Luis Borges, Papini escreveu mais de 60 livros destacando-se, além de “Gog”,”Palavras e Sangue”, “Trágico Cotidiano”, “Juízo Final” (contos) e “Um Homem Acabado” (autobiografia) . Seus livros fazem parte do que de melhor foi publicado em língua italiana no século XX.
A lembrança de Giovanni Papini retorna muito forte nesta manhã de muito sol nas montanhas tornando-me capaz de abrir uma estante imaginária e dela retirar um livro a muito perdido, sobre o qual não tenho mais notícias. Na verdade desse livro me restaram apenas a memória da publicação portuguesa e fragmentos de um único ensaio, justamente o citado “O Congresso dos Loucos”.
A literatura tem dessas coisas: ela nos permite participar de aventuras imaginárias, criar ambientes como esse de uma manhã de sol nas montanhas com pássaros cantando, reconstruir bibliotecas perdidas, devolver-nos páginas esquecidas de livros e libertar-nos da realidade imposta por manhãs nubladas, passadas em quartos fechados.