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A casa da minha avó
Dizer que o mundo mudou é pouco, tanta mudança houve. A história se passa dentro de um ritmo de acontecimentos que transferem a ilusão de velocidade excessiva. Mas, em todas as épocas os dias foram e são iguais com as mesmas 24 horas, embora um cientista tenha alertado que, depois do terremoto do Chile, os dias encurtaram em alguns milésimos de segundo.
O tempo passa, o tempo voa e o mundo de hoje parece mais acelerado que o das décadas de 50 e 60, por exemplo. Volto a dizer que isso é uma coisa muito louca porque os dias continuam com a mesma duração. Mas, é melhor deixar esse assunto de tempo, velocidade etc. para os discípulos de Einstein que entendem pacas de teoria da relatividade.
Uma das mudanças mais óbvias acontecidas nos últimos decênios foi o exagerado crescimento populacional. Foi para dar abrigo essa gente toda que as cidades cresceram, novos bairros foram inaugurados e assim por diante. Mais gente também significou mais pessoas apressadas, maior competição, maior desenvolvimento industrial etc. Entretanto, a par de tantas coisas consideradas boas aconteceu uma brutal mudança na arquitetura das moradias que foram se tornando menores, cada vez menores…
Foi assim que passamos a viver em apartamentos, sendo obrigados a nos desfazer rapidamente de coisas muito grandes para abrir espaços. Vai daí que o cidadão tem a sua televisão de LCD de 52 polegadas, mas encontra dificuldades em achar lugar para guardar coisas como, por exemplo, as malas grandes que vez ou outra a família usa para viagens. Claro que morar em ambientes menores também tem se apresentado como opção para pessoas que querem desobrigar-se de excessivas atividades caseiras.
Cada época tem o seu modo de ser, não tem jeito. Mas que as velhas casas eram boas, ah, como eram. A casa da minha avó era uma dessas, movida a simplicidade, mas com todo o requinte indispensável a uma vida boa e farta. Começava por aquela porta enorme – na verdade um portal – que dava para uma escada; essa levava a uma segunda porta e, aí sim, chegava-se à sala.
Quando se fala em sala que se apague qualquer noção ligada às salas atuais. A sala da casa da minha avó era enorme, um retângulo que parecia se abrir em espaços cada vez mais insondáveis de vez que ali se realizavam desde a recepção a visitas a cerimônias como casamentos e o velório dos parentes que iam morrendo.
É importante lembrar que a casa a que me refiro nunca foi nem pretendeu ser bem dividida. Ela pertencia a uma concepção arquitetônica que vinha do passado. Tinha apenas três quartos, absolutamente imensos, que se tornavam tantos quartos quanto necessários por ocasião da vinda da parentada. Cada um desses quartos dava para a rua defronte, a ela se abrindo com janelas enormes, magníficas, cujos batentes seriam hoje alvo de muitos colecionadores.
Não será necessário descrever a copa, o corredor, a cozinha, o quartinho do meio no qual diziam existir fantasmas, os dois banheiros, o jardim e o quintal. Mas não há como ignorar o formidável porão, um vasto território escuro, do tamanho da casa, sobre o qual andávamos. Verdade que às vezes o porão servia a nós, crianças, como esconderijo, fato tantas vezes fator de brigas entre os tios que juravam que seus filhos jamais tinham posto os pés ali. Entretanto, casa que não tinha um porão grande e escuro não era casa.
Ainda existirão em algumas cidades casas assim. A casa de minha avó não existe mais. Ela foi demolida há alguns anos e, em seu lugar, foi construído um prédio.
Passei pelo lugar outro dia e pensei que os moradores dos apartamentos não passam de intrusos que ocuparam um lugar sagrado para nós, pessoas da família. Imaginei os antigos habitantes da casa, todos já mortos, indignados com a ocupação que jamais teriam previsto.
Cheguei a parar o carro, ia dizer algo ao porteiro em nome dos mortos. Mas eu tinha pressa. O mundo anda rápido demais, ficou para uma próxima vez.