Adiós Nonino at Blog Ayrton Marcondes

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El Mal Entendido

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Não sei precisar exatamente o ano, mas seguramente foi no final da década de 70. Liguei a televisão a cores – a primeira que comprei após um demorado período de imagens em preto-e-branco - e dei com a imagem de um homem tocando um bandonéon, acompanhado de outros quatro músicos. Tratava-se de tango, obviamente, mas tocado de um jeito diferente, muito forte, bronqueado, sofrido e, principalmente, belo.

Assisti até o fim, preso àquela música que me parecia estranha - ouvia pela primeira vez - mas, que me falava muito de perto. Era um show ao vivo, se não me engano no campus da USP; o músico – soube no final – chamava-se Astor Piazzola.

O passo seguinte foi arranjar um tempinho em meio à correria da semana para ir até á mais cotada loja de discos de São Paulo, o Breno Rossi, localizada na Rua 24 de Maio, centro da cidade. Defronte a ela existia outra loja importante, a Casa Manon, que além de discos, comercializava instrumentos musicais.

Voltei para casa com o long-play de Piazzola. No fim de semana veio me visitar um amigo e começamos a ouvir Piazzola ali pelas duas da tarde, de vez em quando tomando uma cerveja. Eram nove da noite quando ele se foi. Ouvíramos repetidas vezes “Buenos Aires Hora Zéro”, “Adiós Nonino”, “Libertango” e outras famosas composições tocadas pelo quinteto de Piazzola. Ficáramos irresistivelmente encantados.

Desde então jamais abandonei a música de Piazzola, sempre atento às suas parcerias com grandes músicos como aquela com o saxofonista Gerry Mulligan que resultou no estupendo disco “Piazzola & Mulligan” do qual faz parte a maravilhosa “Years of Solitude”.

Piazzola morreu em 1992. Agora sai pela Editora Edhasa uma biografia do músico argentino, de autoria de Diego Fisherman e Abel Gilbert, cujo título é “El Mal Entendido”. Após muitas pesquisas entenderam os autores que Piazzola construiu uma imagem de si mesmo nem sempre verdadeira. Assim, ele teria inventado uma biografia mais pertinente ao que ele deveria ser e realmente não foi. Os autores citam fatos relevantes para comprovar as suas afirmações: Piazzola não tocou com alguns artistas norte-americanos por ele nomeados, não era grande entendido de música clássica e assim por diante.

Mas o livro não se reduz à crítica ao modo de ser de Piazzola. Trata-se de uma biografia que passa pela infância do músico em Nova York, a influência do jazz em sua música, a paixão pelo tango e as relações dele com o peronismo e a ditadura militar argentina. A tônica é sempre a da busca do status de músico sério e importante no contexto local e internacional.

Os autores não deixam de reconhecer a importância do músico e contextualizam a posição dele em seu país. Entretanto, ao folhear as páginas do livro e ler várias partes ao acaso fico com a impressão de que não gostaria de conhecer tantos detalhes que envolvem a trajetória do homem Piazzola. Basta-me o músico que conheço através dos solos de seu bandonéon e composições. O fato é que prefiro apenas o Piazzola que gravou a música “Balada por um Loco” com o “cantante” Roberto Goyaneche.

Pode até ser que o meu posicionamento nada tenha de positivo em relação à exaustiva pesquisa feita pelos autores de “El Mal Entendido” na sua busca da verdade.

Mas, que fazer se me comove, a cada vez que me contam, a história de que Piazzola ao receber, em Nova York, a notícia da morte do pai trancou-se num quarto, pedindo que não o incomodassem e compôs, de uma só tirada, “Adiós Nonino”? Que fazer se prefiro essa versão àquela apresentada pelos autores de que essa história não passa de um mito inventado por Piazzola e pessoas próximas já que ele era um intelectual e escreveu calculadamente notas para fazer chorar?

Tango

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tangoQuase dez da noite de domingo e não se encontram táxis nas ruas de Buenos Aires porque o Boca está jogando e os condutores estão em casa vendo o jogo pela televisão. Para todo lado o que se ouve é Boca, Boca, Booocaaa. Os argentinos são apaixonados por futebol tanto quanto os brasileiros. O principal jornal esportivo, o “Olé”, ainda não perdeu a mania de dar pauladas nos brasileiros embora - fazendo justiça a eles - reconheçam a força e o valor dos adversários. Há na Argentina o respeito pela arte, daí que os grandes jogadores são considerados independentemente das suas nacionalidades.

Na porta do Café Tortoni, o mais antigo da cidade, está a fila de sempre, com pessoas esperando a vez para entrar. O Tortoni é um espaço emblemático frequentado no passado por Carlos Gardel, Luigi Pirandello, Federico García Lorca e Artur Rubinstein entre outros artistas, Os que vêm para o espetáculo de tango não precisam entrar na fila, basta apresentar o ingresso comprado com antecedência para que um rapaz os acompanhe até a sala Alfonsina Storni.

São pouco mais de dez da noite quando o maestro Jorge Rattoni entra no palco com o seu quarteto e abre a noite com um tango de Gardel. A coreografia do espetáculo difere de outros shows de tango mais estilizados e com a participação de vários dançarinos. Aqui a trupe se reduz a um casal que, de vez em quando, vem ao palco para dançar enquanto o quarteto executa um de seus números.

A temperatura musical esquenta depressa com a sucessão de tangos conhecidos, executados em estilo puro e original. Rattoni esmera-se ao piano impondo o ritmo que é seguido pelos instrumentistas do bandoneon, do baixo e do violino. Depois de três números do quarteto, finalmente aparece o “cantante”, com sua poderosa voz interpretando músicas como “Por uma cabeza”.

O grande momento do espetáculo é reservado para a execução de “Adiós Nonino” de Astor Piazzola. É quando o bandoneón cresce em sua execução trazendo ao público imagens ligadas à perda do pai que levou  Piazzola a compor a música. Ao final de “Adiós Nonino” o público aplaude longamente e Rattoni agradece em nome do grupo.

O show dura pouco mais de uma hora. Quando termina fica a sensação de que deveria continuar, ainda que só um pouco mais.

No fim, Rattoni está perto do balcão, junto à entrada da sala Alfonsina. É um homem de estatura média, cabelos e barba muito brancos, que transpira bondade. Aproximo-me dele e pergunto sobre a sua formação clássica. Ele me diz que de fato a sua formação é clássica, mas que derivou para o tango, sua paixão. Falamos sobre música e ele me diz que gosta muito da brasileira. Pergunto a ele se toca em outros lugares. Ele sorri dizendo que há treze anos apresenta-se exclusivamente na sala Alfonsina do Café Tortoni. Gosta de sala pequena, intimista e rica em histórias ligadas ao tango.

A conversa termina quando um homem traz um CD para Rattoni autografar. Despedimo-nos com um abraço e sinto que levarei um pouco de tango na mala de viagem em meu retorno ao Brasil.

Findo o espetáculo, encontro a Avenida de Mayo praticamente vazia. Na porta do Tortoni há táxis esperando por fregueses. O jogo da Boca terminou e os táxis voltaram às ruas. O mundo parece normal quando passo perto do Obelisco, lembrando-me da execução de “La Cumparsita” e de meus pais dançando na sala de nossa antiga casa, eles que amavam tanto o tango, tão bonitos dançando, dançando eternamente.