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Ao meu amigo
Por acaso revi um amigo a quem estimo muito. Falava ele sobre a imigração italiana na cidade de São Paulo. A fala fora inserida em meio a um noticiário da TV Globo News. Revi, portanto, o meu amigo num programa de televisão e me perguntei por que raios não nos temos falado há tanto tempo.
Tínhamos o costume de almoçar juntos cerca de quatro vezes ao ano. Como sempre o almoço era marcado para o centro de São Paulo, o velho centro de que gostamos tanto.
“Centros velhos de cidades, ainda que decadentes, preservam a fisionomia do passado. Existe um enigma, espécie de auréolas, em torno dos antigos prédios, as quais de um momento para outro podem ressuscitar atmosferas de outros tempos em toda a sua plenitude. De fato, não é impossível que de repente as ruas centrais cedam lugar à passagem de antigas gerações de pessoas que pisaram no mesmo solo no qual hoje seguimos. Nada morre de verdade nos velhos centros das cidades.”
Depois que revi o meu amigo na TV perguntei-me por que não nos temos falado, justamente nós a quem nunca falta assunto dado que nossas conversas sempre foram intermináveis. Mas se me basta apenas pegar o telefone, discar um número e eis que do outro lado soará a inconfundível voz do amigo…
Atribuo a culpa da minha ausência ao tempo que passa. Na complexa travessia de nossas vidas nesse louco mundo aos poucos nos descobrimos avarentos em relação às palavras. Há quem diga que a transição para o silêncio começa devagar e prossegue lenta e perigosamente. De todo modo aprende-se a não dizer, a evitar comentários que antes faríamos apenas pelo gosto de jogar conversa fora. Talvez por isso eu tenha me afastado de tanta gente de quem tenho saudades.
Escrevo com a pretensão de que o meu amigo algum dia leia esse texto. Tenho a certeza de que ele entenderá as razões da minha prolongada ausência, até porque, se bem o conheço, acontece a ele agora o mesmo que se passa comigo.
Velhos camaradas
Depois de certa idade rareiam-se os encontros com velhos amigos. Não sei se por conta de tendência a isolamento ou porque vai crescendo a preguiça em frequentar barzinhos, ir a shows etc. Segunda-feira passada Keith Jarret tocou na sala São Paulo e não me animei a assistir à apresentação do grande pianista de jazz. Olhe que se tratava de momento raro porque Jarret é de fato uma raridade. Ainda agora tenho na memória os acordes do famoso The Köln Concert gravado no Opera House na cidade de Colonia, Alemanha. Ouvi muito e de vez em quando ainda ouço o CD que substituiu o LP de Jarret cuja música convida a uma viagem ao imaginário com direito a variantes sempre novas.
Mas, aos amigos, pessoas que ficamos sem ver durante anos e de repente topamos com elas, inesperadamente. Dias atrás me encontrei com um antigo colega de faculdade, amigo no passado. Não sei dizer a quanto tempo não nos víamos e fiquei muito feliz ao encontrá-lo bem disposto, bem de vida, aparentemente bem em tudo. Entretanto, confesso que após alguns minutos não encontrávamos assunto em comum para falar. O longo tempo em que estivemos distantes funcionava como cadeia de montanhas a separar-nos em latitudes diferentes. Já não tínhamos nada em comum exceto a recordação dos tempos perdidos na memória. Trocamos informações sobre velhos colegas, através do meu amigo soube de dois outros que faleceram e do triste fim de uma nossa colega desaparecida em acidente.
Pois foi nesse ponto que a nossa conversa tomou rumo diferente. Contou-me o amigo que na verdade a colega desparecida em acidente fora sua mulher. Casara-se com ela anos depois de terminada a faculdade. Encontrara-a numa recepção, aproximaram-se e deu no que deu. Confessou-me ele amá-la muito e ainda agora não ter-se consolado. Tiveram dois filhos e uma vida feliz.
Despedimo-nos com abraço forte, prometendo-nos novo encontro que sabíamos não virá a acontecer exceto por puro acaso. Depois que ele se foi lembrei-me da moça que mais tarde se tornou a mulher dele. Fora ela em sua juventude moça muito bonita e algo sonhadora. Conversava com ela que, entre outras qualidades, gostava de poesia. Era fã incondicional da poesia francesa e recitava sem ler versos de Verlaine e Baudelaire. Destacava-se no aprendizado profissional, inteligente que era. Confesso que naquele tempo jamais eu poderia supor que um dia ela viesse a se casar com o amigo que encontrei agora. Era ele um tipo reservado, mais para autossuficiente, determinado, cuja personalidade não se ligaria à de uma sonhadora e amante de poesia.
A vida é surpreendente, não? Não é que os dois casaram-se e foram felizes? Pois é esse lado inesperado, a capacidade de juntar extremos que aparentemente nada tem em comum que faz da vida um mistério fascinante.
Segundo seus biógrafos as últimas palavras de Machado de Assis foram: “A vida é boa”.
Pois é, a vida é boa.
Amigos
São coisa para se guardar dentro do peito, assim diz a letra da música. São muitos? Poucos? Verdadeiros? Como anda a amizade nesses tempos pós-modernos, loucos, invertidos, desagregadores? Pode-se confiar nela?
No grande isolamento imposto pela vida atual, na reclusão e marginalização dos seres humanos pressionados por fatores diversos e necessidades múltiplas, as pessoas se procuram, buscam pontes de acesso umas às outras, rebelam-se contra o isolamento ou conformam-se com a solidão, não sem protestar.
Pano de fundo de toda a situação, a confiança está na berlinda. Amizade não prescinde de confiança e algum desapego. Mas, como confiar dentro de uma guerra de interesses e colisões quase sempre inevitáveis?
Pois, estas mal traçadas estão aqui para dizer que a amizade tem resistido bravamente aos assédios a que é submetida. Conserva-se ela como valor do qual não prescindem os seres humanos, patrimônio inseparável da felicidade. Haverá quem veja nesses dizeres muito de pieguice e, talvez, tenham razão. Mas, vale o que disse certa vez o poeta Drummond em relação às cartas de amor:
Cartas de amor são ridículas. Mas, ridículos mesmo são os que nunca escreveram cartas de amor.
A afirmação se aplica inteiramente à amizade. Escrevo sobre isso após, em duas semanas seguidas, presenciar e participar de reuniões nas quais pessoas demonstram muita afeição entre si. Habituado à sisudez das relações comerciais e às imposições da etiqueta vigente no mundo dos mercados, não nego que me surpreendi. Na primeira reunião, jovens deram mostras de verdadeira amizade; na segunda, pessoas mais velhas valorizaram as relações desinteressadas e confessaram o prazer de contatos movidos, unicamente, por amizades duradouras.
Não entro em detalhes para preservar a identidade dos participantes das duas reuniões. Mas, não me furto a escrever sobre esse assunto. Quem sabe sirva ele a alguém que já não acredita na verdadeira amizade e a leve a rever seus conceitos. Acreditem: a vida torna-se bem mais fácil quando se tem bons amigos.