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Andando sobre cordas
Das atrações apresentadas em circos a que mais me atraiu, vida afora, foi o número de equilíbrio sobre cordas. Sempre vi algo de realmente mágico na atividade do equilibrista que desafia as alturas e penetra num espaço que se torna só dele para ali jogar com a própria vida.
Há muitos e muitos anos – no tempo em que as minhas crianças, hoje adultas, eram mesmo crianças – fui com eles assistir a uma apresentação do famoso Circo de Moscou no Ginásio do Ibirapuera, em São Paulo. O circo era de fato muito bom e a média dos números excelente. Mas, jamais me esqueci de um equilibrista que assomou aos altos do ginásio, circulando com os pés sobre uma corda, sem qualquer proteção abaixo dele. Nenhuma rede, nada, e lá ia ele, desafiando o perigo com a profunda concentração necessária a seu ofício, aparentemente ignorando as centenas de pessoas que de repente se tornaram mudas, como a esperar pelo pior, pela queda do artista.
Daquela tarde de ida ao circo com as crianças ficou-me, nítida, a imagem daquele homem que parecia andar com tanta naturalidade sobre o abismo que tinha sob os seus pés. Voltei para casa pensando em vocações e no treinamento necessário para a execução de um número daqueles. Mais que isso, como seria a vida de um equilibrista, pessoa a enfrentar a cada espetáculo o grande perigo de um erro e a própria morte?
Lembrei-me disso hoje ao ver nos jornais a fotografia do equilibrista Mich Kemeter, andando sobre uma corda de 25 metros colocada a mais de 900 metros de altura. A cena se passou no parque Yosemith, na Califórnia, e é impressionante. Um homem anda, braços abertos, sobre uma corda e tem, abaixo de si, um abismo de 900 metros de profundidade. Ele está absolutamente só e, pode-se dizer, liberto de tudo o que faz parte da vida cotidiana. A fotografia mostra parte do vale, cercado por montanhas, situado abaixo do ponto onde anda o notável equilibrista. Essa é a única referência de existência do mundo na solidão invadida pelo homem que anda 25 metros sobre a corda.
Sempre associei o equilíbrio sobre cordas a um exercício de libertação individual. No momento em que o artista se dirige, pé ante pé, ao seu destino final, totalmente voltado para si e aquilo que está fazendo, ele liberta-se de todas as injunções que normalmente afetam a sua vida. Ali o artista não faz parte de nada e não pertence a nenhum grupo. Sobre a corda ele se torna senhor absoluto de si mesmo, responsável total pelo seu ato e corre riscos por conta própria. Talvez isso explique porque homens como Mich Kemeter se entreguem ao desafio de circular numa corda a 900 metros de altura. Há nisso uma revolta do homem contra todo tipo de injunções que governam as nossas vidas. Ali, na corda, nenhuma crença poderá salvá-lo caso ele cometa algum erro. Talvez seja essa sensação de plenitude absoluta, talvez até mesmo a proximidade com a divindade, que estimule pessoas como Kemeter a enfrentar desafios tão perigosos.