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No calor da hora
Pessoas voltadas à pesquisa são habituées de velhos documentos. Guardam esses papéis emoções de momentos passados e quase sempre revelam, senão a verdade, pelo menos a visão de pessoas que participaram ou presenciaram acontecimentos marcantes, alguns deles decisivos para a história dos povos. Os velhos documentos ressuscitam cotidianos e são impregnados pelo sabor de fatos vividos no calor da hora. Nada há a se corrigir neles: são o que são e a intromissão em seu conteúdo com olhos e saberes do futuro funciona como uma espécie de vírus fadado a contaminá-los e distorcer aquilo que os homens de uma época viveram e sentiram num dado momento. Mais geral e profunda será a análise histórica, essa sim armada de métodos úteis para a interpretação posterior dos acontecimentos. Não será a análise histórica baseada num único veículo ou documento, ou na opinião de uma só pessoa que, na época dos acontecimentos, dispôs-se a interpretá-los: é do confronto de fontes e totalização de informações que poderá nascer o texto que dará forma, senão final, pelo menos mais aproximada aos fatos pesquisados.
Faço essas observações após receber a notícia de que o Arquivo Público do Estado de São Paulo disponibilizou o “Fundo Última Hora” composto por 166 mil fotografias, 500 mil negativos, 2.223 ilustrações e uma coleção de edições da Ultima Hora do Rio de Janeiro entre os anos de 1951 e 1970, em papel ou microfilme. Os interessados devem acessar o site http://www.arquivoestado.sp.gov.br/uhdigital/index.php no qual estão disponibilizadas, amostragens de edições do jornal ao lado de fotografias e ilustrações. Para que se tenha ideia do valor desse material basta escolher a data de uma das edições disponibilizadas no site, por exemplo, a do dia 14 de dezembro de 1968. No dia anterior o então presidente da República, General Arthur da Costa e Silva, decretou o Ato Institucional nº 5 (AI 5) que teve profundos reflexos sobre a história do país.
A edição de 14/12/68 do jornal “Última Hora” notícia o fato com manchete em primeira página:
ATO-5: O OBJETIVO É MANTER A REVOLUÇÃO
Em letras menores e acima do da manchete principal lê-se:
1. CONGRESSO EM RECESSO POR TEMPO INDETERMINADO
2. HABEAS-CORPUS SUSPENSO PARA DELITOS POLÍTICOS
3. PODER PARA CASSAR, DEMITIR, APOSENTAR E REMOVER
Assim o público leitor recebeu, através da “Última Hora”, a notícia do Ato Institucional sobre o qual ainda hoje se debruçam estudiosos da história do país. Pagava-se, nas bancas, NCr$ 0,30 pelo jornal. Além das medidas dos governo, ficava-se também sabendo que os últimos atos políticos não haviam influenciado o movimento bancário, as vendas de natal e a frequência de banhistas às praias do Rio de Janeiro.
É desse modo que os fatos cotidianos da última sexta-feira 13 do ano de 1968 nos são devolvidos pela edição do dia seguinte do jornal “Última Hora”: notícias quentinhas, colhidas no calor da hora.