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O terço do Quirino
O Quirino era o único policial da cidadezinha. Dele dependia a segurança dos cidadãos que, a bem da verdade, não confiavam muito na sagacidade dele. É que o Quirino era um tipo bonachão, propenso ao bom papo e cauteloso nas decisões. Vez ou outra prendia alguém que se excedera no álcool e deixava o bebum passar uma noite atrás das grades. De manhã soltava o gajo, não antes de fazer a ele um sermão sobre os males da bebida.
Certa ocasião espalhou-se a notícia de que estaria agindo na cidadezinha um perigoso ladrão. Agia ele durante as madrugadas, surrupiando pertences como roupas penduradas nos varais. Também o acusavam de roubo de galinhas e uma mulher que morava um pouco afastada jurava que o ladrão havia levado de seu curral um porquinho ao qual muito estimava. O fato é que a presença de um gatuno num lugar onde nada acontecia encheu de temor as pessoas as quais, naturalmente, passaram a esperar que o policial Quirino o prendesse.
Entretanto, havia um obstáculo: ninguém jamais vira o ladrão e muita gente suspeitava que ele até mesmo não existisse. Mas, pior que isso, com o tempo aventou-se a hipótese de que o ladrão não seria de carne e osso, na verdade tratava-se de uma alma do outro mundo.
Quirino que fazia suas rondas no período da noite passou a estendê-las até as madrugadas. No começo levava consigo o revólver, a arma de fogo que, como dizia, metia medo em qualquer bandido. Quando se falou em alma do outro mundo Quirino passou a levar nas rondas, além do revólver, um terço.
Era curioso ver aquele homem fardado, ligeiramente gordo, andando pela rua com uma mão sobre o revólver e na outra um terço. Esteve assim durante algum tempo até que o ladrão foi esquecido e a vida noturna na cidadezinha voltou à tranquilidade de sempre.
Bons tempos aqueles em que o crime existia, mas não era frequente. Então, nos interiores do Brasil, nas pequenas cidades e lugarejos, vicejava a paz que hoje vai deixando de existir. Quase não se prestava atenção aos grandes crimes que ocorriam em capitais e mais raramente no interior. Não se noticiava, por exemplo, que num presídio do Maranhão comete-se todo tipo de atrocidades, conjunto de ações desumanas praticadas por gente que há muito deixou de lado os códigos que regem o convívio entre pessoas.
Pelo que fico pensando se o terço do Quirino talvez não viesse a ser um tipo e solução. Quem sabe o que anda faltando por aí não seja um terço ou algum objeto mágico capaz de restituir a ordem ao mundo e o bom-senso às pessoas. De todo modo algo precisa ser feito, porque de tempos para cá a situação fugiu ao controle e já se vive na fase do salve-se quem puder.
A lógica do medo
Fui a uma festa realizada no bairro do Morumbi, em São Paulo. Eram seis horas da tarde e já estava escuro neste mês de junho. Na Avenida Giovani Gronchi, logo depois do Estádio do Morumbi, o trânsito se complicou porque se realizava uma obra no asfalto. Dentro do carro me senti acossado pela muitas notícias sobre crimes que acontecem no Morumbi. Na minha cabeça estava numa região sem lei, à mercê de bandidos que quebram os vidros dos carros, levam o que querem e muitas vezes atiram e matam só para se divertir.
Obviamente, tratava-se de um exagero. Ou não? E se de repente um marginal surgisse ali, revólver na mão, e me escolhesse como vítima de suas pretensões assassinas? Foi esta a primeira vez em que pensei sobre a real necessidade de ter vidros blindados no carro. Com a blindagem há mais segurança, o problema é o alto custo da instalação.
Por outro lado também pensei que, na verdade, não cabia a mim a prevenção de um possível crime. Os impostos são arrecadados para que prefeituras, governos estaduais e federais cuidem, entre outras coisas, da segurança. No trânsito parado e exposto ao acaso de uma agressão tornei-me um contribuinte ainda mais descontente com o destino do dinheiro que pago em impostos.
Depois de algum tempo, morosamente, o trânsito fluiu. Cheguei vivo, participei da festa e voltei para casa feliz porque a sorte me favorecera. Que se entenda bem: a segurança pessoal hoje em dia está ligada à sorte de não ser escolhido como vítima pelos ladrões.
Acontece que o que está escrito acima não é nenhum exagero. É desse modo que as coisas se passam e ao cidadão resta manter os olhos bem abertos e contar com boa dose de sorte. Na capa da revista “Veja – São Paulo” desta semana está escrito em letras garrafais: BASTA! Informa-se que o número de mortes após assaltos cresceu 74% neste ano.
Mas, como colocar um paradeiro nessa onda crescente de criminalidade? Há quem atribua a atual situação desigualdade social. Pessoas vivem em condições precárias e sem acesso a bens básicos. Falta-lhes tudo, recursos, formação, comida, saneamento, cuidados com a saúde etc. Desse meio onde a precariedade é a regra emerge boa parte dos marginais sem escrúpulos que andam por aí. Obviamente, isso é importante, mas não é tudo.
E as tais experiências bem sucedidas no combate à criminalidade levadas a cabo em outros países? A tolerância zero que resultou em redução do crime em Nova York não poderia ser aplicada aqui? Ou algum outro tipo de experiência realizada com sucesso no exterior?
No trajeto até o Morumbi tive contato com a lógica do medo embutida em nossas mentes. Acuados diante de algo maior que a nossa capacidade de reação, seguimos temerosos de que esta seja a nossa vez de cruzar com o crime. Esse medo restringe a liberdade individual e reclama por medidas efetivas para que se possa andar por aí em segurança.
Não é preciso um Super-Homem
Entre os heróis que sempre admirei o Super-Homem ocupa lugar especial. O cara é capaz de voar nisso tornando real o sonho de milhares de seres humanos. Quantas vezes observamos com alguma inveja o voo dos pássaros, a rapidez com que se deslocam de um lugar a outro? Pois o Super-Homem se iguala aos pássaros. A essa qualidade acrescenta sua formidável força. Não foi ele quem fez o tempo voltar, fazendo a Terra girar ao contrário? Pois o Super-Homem tudo pode porque ele é de fato “super”, um herói de verdade cuja única fraqueza é a possibilidade de contato com a kryptonita, material que esgota as suas forças.
Mas, o Super-Homem só é “super” porque ele não é da Terra. Seu pai, Jor-EL, conseguiu tirá-lo de Krypton momentos antes desse planeta explodir, colocando fim na civilização kryptoniana. E a nave que trazia o menino foi cair justamente no quintal do casal Kent que o criou e deu a ele o nome de Clarck Kent.
Todo mundo conhece essa história e seus desdobramentos em milhares de tiras de gibis e filmes que arrastaram multidões aos cinemas para divertir-se com as aventuras do herói. Aliás, um herói perfeito e como deva ser, inclusive com a citada fraqueza que serve à exploração de seus inimigos entre os quais se destaca o inominável Lex Luthor.
O Super-Homem é um indivíduo medularmente bom, desses cujas ações visam apenas o bem. Ele protege o mundo, interfere em catástrofes, evita acidentes, combate tenazmente o crime. Mas, por que gostamos tanto dele, por que ficamos sentados em cinemas, olhos pregados na tela, assistindo a uma trama que sabemos irreal?
Acontece que o Super-Homem encarna a solução impossível para graves problemas contra os quais nada conseguimos. Daí deixarmo-nos levar por histórias nas quais o mundo é salvo e nossas vidas transcorram em segurança.
É a violência diária, estúpida e fora de controle que nos faz sonhar com o aparecimento de um super-herói capaz de devolver as coisas aos seus devidos lugares. Um super-herói capaz de vencer o crime e colocar os criminosos atrás das grades e por muito tempo. Entretanto, sendo isso impossível o jeito é torcer para que as nossas leis sejam mudadas e gente muito perigosa não seja favorecida por benefícios que os devolvam às ruas em pouco tempo. Só assim a guerra civil em andamento nas nossas ruas poderá ter fim e os cidadãos usufruirão de seus direitos e liberdades.
Se é impossível que tenhamos o Super-Homem pelo menos devemos exigir daqueles em quem votamos mudanças nas leis acarretando punições severas para criminosos responsáveis por tanta dor no seio de nossas famílias.
Violência incontrolável
Digam o que quiserem, desculpem-se, justifiquem-se, prometam melhora rápida, mostrem seriedade nas declarações, mas nada disso encobre a dura realidade dos dias de hoje: a violência tornou-se incontrolável.
No caos envolvendo a segurança as pessoas não sabem em quem confiar. A situação da polícia é complicada e erros previsíveis acontecem, infelizmente com vítimas. O assunto do dia é a morte de um empresário de 39 anos abordado pela polícia após perseguição por dez minutos. Quando parou o carro o empresário foi morto a tiros. Os policiais afirmam que o empresário pegou o telefone celular que foi confundido com arma daí atirarem. Uma série de erros de abordagem resultou na morte do empresário que gera protestos. Por outro lado policiais confessam em “off’ a tensão de seu ofício dadas as mortes de alguns deles pelo crime organizado. As autoridades negam tensão na polícia e chamam a atenção para o treinamento dos policiais. O governador do Estado vem a público para garantir que tudo será apurado e os responsáveis por erros serão punidos. Ouvimos isso e damos de ombros porque o perigo nos ronda nas ruas, e mesmo as casas já não estão seguras, vejam-se os arrastões e invasões de domicílios.
As notícias policiais têm grande destaque e ocupam a maior parte dos noticiários. Ouve-se tanta barbaridade que não há como não ter medo. Confesso que fico nervoso quando paro o carro e sou obrigado a ficar dentro dele, seja para estacionar na rua, seja em congestionamentos. Todo mundo sabe que a bandidagem não dá o menor valor à vida e atirar tornou-se exercício simples, hábito, quase brincadeira. A todo instante repete-se que as leis brasileiras estão desatualizadas não correspondendo ao que hoje se necessita para combater a criminalidade. Bandidos matam para exercitar o poder de tirar a vida, por simples prazer e desamor. A eles não importam as tragédias familiares decorrentes de seus atos. Agem animalescamente porque sabem que não ficarão muito tempo presos, mesmo quando condenados. Criminosos gozam de benefícios, indultos, folga para o natal em casa etc. Saem das prisões para o natal e matam pessoas no mesmo dia.
Está circulando na internet um vídeo no qual um idoso está no caixa de um supermercado quando chega um bandido para assaltar. O idoso tem a infeliz ideia de brincar com o rapaz assaltante dizendo a ele que é um policial. O rapaz não tem a menor dúvida: encosta o revólver na cabeça do idoso e atira, matando-o.
O que mais impressiona em relação à criminalidade já nem é o fato de estarmos expostos a ela. O mais impressionante é que a aberração dos crimes praticados em grande quantidade passou a ser “normal”, parte do cotidiano. Já não nos lembramos dos tempos em que a vida era mais segura e não só se dizia como se praticava o axioma “lugar de bandido é na cadeia”. Hoje as cadeias estão superlotadas e menores infratores cometem crimes em série, mas se refugiam num código ultrapassado que os devolvem à liberdade aos dezoito anos de idade. Há tanto crime que talvez as autoridades estejam perdidas em relação ao modo de colocar um fim a este triste e terrível estado de coisas.
Quando matar…
Quando matar se torna comum, o inaceitável se banaliza. Leio que um borracheiro, tomado de ciúmes, matou a mulher e um amigo. O crime aconteceu na sala de estar da residência do borracheiro que fez uso de uma faca para matar os dois. No caso, a suspeita de traição bastou para que os assassinatos fossem perpetrados.
Também leio que um empresário saiu de sua casa e, numa travessa próxima à Av. Pacaembu, São Paulo, foi abordado por um ladrão que queria levar o relógio dele. Mesmo dentro do carro o empresário tentou reagir e recebeu um tiro no peito. A bala atravessou o tórax e saiu pelas costas.
Li isso e muito mais. Basta dar uma olhada nas seções policiais dos jornais para ficar inteirado de inúmeras barbaridades. Um policial mata a mulher que se separou dele, ela também policial; um homem faz reféns a sogra e a filha - é incrível o número de crimes cometidos em nome do amor; bandidos assaltam uma joalheria dentro de um shopping; bandidos roubam o caixa automático de um grande supermercado; e assim vai.
Mostramos indignação diante de alguns crimes, mas permanecemos distantes da maioria. Semana passada um pedreiro violentou a filha de 5 anos de idade; acusado pela própria mulher defendeu-se dizendo: mas, foi só uma vez…
A violência é um dos atributos dos seres humanos, traço da condição animal do ser; de rotina reprime-se a tendência à pratica de atos violentos, quaisquer que sejam as suas proporções; situações adversas que oferecem perigo podem despertar reações violentas mesmo no mais contido dos homens; entretanto, nada justifica ou explica a bestialidade.
Assiste-se hoje a escalada não só da violência propriamente dita, mas da bestialidade. Presencia-se a algo absurdo e sem sentido. Não se trata apenas de desprezo aos valores e normas sociais: o crime segue a trilha da despersonalização, dos embates primitivos, das mortes desnecessárias porque a vida transformou-se em moeda de troca sem valor.
Os discursos sobre a necessidade de conter a violência são benvindos e devem ser acompanhados de ações efetivas. Entretanto, há que se considerarem variantes mais profundas que levam pessoas à prática de atos bestiais, hoje tão frequentes. Existe algo de profundamente errado nos fatos que diariamente presenciamos, desafio à lógica que normalmente é utilizada para a compreensão dos fenômenos sociais.