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Axé e preconceito
No prédio onde moro há um rapaz que presta serviços de manutenção. Ele passa os dias nos corredores dos andares dedicando-se aos mais variados tipos de tarefas. Nas longas horas de trabalho, em todas elas, faz-se ele acompanhar de um radio de pilhas no qual ouve músicas de axé. Ele ama o axé. Aliás, conhece de cor a letra de todas as músicas, fato que permite a ele cantar junto. Não canta alto demais, mas canta em nível suficiente para que o ouçamos. Para esse rapaz não existe outro mundo que não o do ritmo das músicas interpretadas por Ivete Sangalo, Chiclete com Banana e muitos outros. Não sei dizer se o rapaz alguma vez presta atenção ao que está fazendo. Posso afirmar, sem erro, que ele parece feliz: nenhuma barreira se interpõe entre ele e o som das músicas que o elevam da materialidade banal a um estado de permanente transe.
Tem, portanto, o axé a funcionalidade de falar de perto a uma vasta gama de espíritos conclamando-os ao enlevo e à dança. A agitação incansável dos corpos que se entregam aos trejeitos estereotipados que o ritmo desperta é de conhecimento geral. As apresentações ao vivo dos ícones do axé provocam o delírio das multidões, sendo notável o encolhimento das individualidades que passam a reagir em uníssono. É o que se vê, é o que se constata.
Até ai tudo bem. Mas, existe preconceito contra o axé? Seria esse gênero musical apanágio das camadas sociais incultas que por ele são magnetizadas? Representaria o axé uma subcultura musical direcionada a espíritos mais grosseiros e cerceados culturalmente a fruições de melhor nível?
As perguntas anteriores podem carecer de sentido, mas tornam-se pertinentes a partir das declarações feitas por uma cantora de axé. Segundo ela existe um desprezo em relação ao axé por gente que se acha superior só porque conhece John Coltrane. E assim da noite para o dia, o falecido músico de jazz, John Coltrane, vê-se confrontado com um ritmo popular brasileiro em ascensão, sendo tomado – ele, Coltrane – como parte integrante da cultura de poucos privilegiados que o admiram e ouvem e que, por conseguinte, não aceitam o axé.
Em primeiro lugar torna-se necessário esclarecer que John Coltrane não pode ser tomado como paradigma de determinado nível cultural seja ele qual for. A música de Coltrane pode não ser de fácil consumo, sendo mais afeita aos aficionados do jazz. Nem por isso o próprio jazz pode ser definido como gênero musical restrito à intelectualidade, conforme demostram os mais variados festivais desse gênero musical aos quais comparecem os mais díspares tipos de público. De que o jazz tem cracterísticas próprias e oferece maior convite à introspecção que um gênero como o axé não se discute. Mas, daí a se imaginar uma separação estanque entre os que ouvem jazz e os que ouvem axé há um Rio Nilo a se abrir milagrosamente. Posso gostar de jazz e de axé sem que isso comprometa a minha definição de intelectualidade.
Não creio que exista preconceito em relação ao axé. Se algum preconceito existir não será em relação ao gênero musical, mas ao leque explosivo de camadas sociais que o consomem. Na verdade é a rapidez da mobilidade social e a percepção de que ninguém sabe no que tudo isso vai dar que pode assustar aos espíritos mais cautelosos. É bom lembrar que, assim como o jazz, o axé não pode ser usado como instrumento de caracterização de camadas sociais.
Retorno ao rapaz que canta nos corredores. Nutro contra ele - e em relação a toda a nação de pessoas que acham que todo mundo deve ouvir música o tempo todo - a mais justa indignação. O axé me irrita na medida em que o cidadão encosta o carro em lugares públicos e abre o porta-malas para dividir com o mundo o seu prazer em ouvir música com o som nas alturas. Detesto ouvir axé durante as compras em supermercados, odeio a bebedeira de domingo no terreno próximo à minha casa quando a turma come e dança ao som do axé. Nessas horas preferiria o John Coltrane, de preferência solando My Favorite Things , isso se for de todo impossível realizar os meus afazeres dentro do mais absoluto silêncio.
Para terminar não custa lembrar que qualquer gênero musical torna-se mais palatável quando executado dentro do contexto que a ele é mais apropriado. Não há como não dançar com o Chiclete com Banana durante um show em que eles se apresentam. É uma loucura, alegria contagiante, conforme constatei e adorei certa ocasião durante um FORTAL que, para quem não sabe, é um carnaval fora de época em Fortaleza.