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George Shearing
Parem tudo porque George Shearing morreu. O grande pianista sai de cena aos 91 anos de idade, após uma longa e brilhante carreira.
Embora seja desde menino um grande fã do jazz, confesso que demorei a ouvir a música de Shearing. Não sei precisar o ano, mas Shearing veio ao Brasil e apresentou-se no Teatro Municipal de São Paulo no período compreendido entre o final dos anos 70 e o início dos anos 80. O pequeno público que compareceu ao Municipal naquela noite rapidamente descobriu-se um grupo de eleitos para presenciar os acordes de um memorável pianista. Foi a partir daí que me interessei pela música de George Shearing, realmente um grande virtuose do piano.
Eu ainda teria a oportunidade de assistir a um show de Shearing no Village Vanguard, em Nova York. Daquela noite retive a simplicidade não só de Shearing, mas de outros músicos de jazz. Apresentando-se em um clube de jazz, sem a magnitude dos grandes palcos que conferem ao show o status de concerto, mostram-se eles mais à vontade, circulando entre o público com a maior naturalidade. A certa altura sentei-me para um drink no barzinho e eis que, ao meu lado, numa banqueta, estava George Shearing em pessoa. Como sempre, usava o seu discretíssimo terno e o inevitável óculos escuros – era cego de nascença.
Shearing era inglês e foi um dos expoentes do bebop. No grande livro que é “On The Road”, obra prima do escritor Jack Kerouac, há a descrição de uma fantástica noite de jazz num clube de uma cidade da costa oeste dos Estados Unidos. Kerouac descreve a apresentação de Shearing como impressionante e termina dizendo: Shearing é o bebop.
George Shearing foi influenciado por grandes pianistas como Teddy Wilson, Fats Waller, Errol Garner e Earl Hines. Durante a sua carreira compôs mais de 300 músicas, entre as quais a famosa “Lullaby of Birdland”. Em 2006 recebeu da rainha Elizabeth 2ª o título de cavaleiro por sua contribuição com a música.
Shearing deixa-nos discografia gravada junto com músicos de renome com os quais atuou. Para mim será sempre eterno um cair de tarde em que, na mais completa solidão, ouvi um dos discos de Shearing. Estava eu numa casa de montanha que, de um momento para outro, foi envolvida por uma nuvem de neblina. Ficamos, assim, eu e o piano de Shearing, momentaneamente apartados do mundo, dando-me a sensação de plenitude que só logramos alcançar em raros momentos da vida.
Human Nature
28 de julho de 1985, Theatre St. Denis, Montreal, Canadá. Miles Davis começa a tocar no seu trompete a música Human Nature, de Michael Jackson. É acompanhado por Bob Berg no saxofone, Robert Irving III no sintetizador, John Scofield na guitarra elétrica, Daryl Jones no baixo elétrico, Steve Thornton na percussão e Vincent Wilburn na bateria.
Miles é considerado um dos mais influentes músicos do século XX, tendo passado pelo bebop, pelo cool jazz, pelo jazz modal e pelo fusion. Nos últimos tempos tem avançado, solitariamente, para uma combinação entre o jazz, o funk e a música pop o que tem valido a ele críticas por não estar tocando o verdadeiro jazz. Mas ele está no auge de sua popularidade e buscando novos caminhos para chegar ao seu público.
Miles tem agora 59 anos de idade e está acima de tudo isso. Na verdade o grande Miles alcançou o invejável pórtico no qual pode tocar o que quiser. É dentro dessa perspectiva que inicia os seus solos de Human Nature. A partir daí o que se segue é impressionante. Lá está Miles Davis com seus óculos escuros, vestido com uma estranha e bela roupa negra que apresenta símbolos desenhados. Ela anda no palco entre músicos e instrumentos, curvado sobre o seu trompete vermelho que emite notas profundas e maravilhosas.
Miles está no palco e, de repente parece não estar. Na medida em que se entrega à melodia ele caminha dando a impressão de que atravessa regiões desconhecidas, avançando cada vez mais no insólito e levando-nos com ele. Homem e trompete tornam-se um só corpo que vibra em notas musicais apaixonantes. A essa altura Miles prendeu-nos com toda a sua magia e nada pode livrar-nos da imantação a que estamos submetidos, exceto o momento em que a alegoria se desfaz e Miles para de tocar.
Não é um bem um homem aquele que toca no palco do Theatre St. Denis, em 1985. Há no músico que vemos e ouvimos uma parceria com a divindade, o afastamento pouco nostálgico da condição humana, a transcendência do semi-Deus que governa os sentimentos e nos encanta com a sua música.
Já não importa mesmo o que Miles toque. Ele segura o trompete como um gato retém a sua presa, com movimentos delicados e precisos. Seus dedos se movem sobre os botões como gatilhos que disparam sobre nós sonoridades inesperadas.
Miles Davis morreu em 1991, mas continua tocando, revelando-nos muito sobre a as possibilidades da natureza humana enquanto sopra em seu trompete as notas da música de Michael Jackson.
PS: impressões recolhidas ao assistir a apresentação de Miles Davis, incluída no DVD “Miles – Live in Montreal”.