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Eder Jofre
Jornais e sites estamparam ontem fotos de Eder Jofre ao tempo em que atuava como peso galo. Comemoravam-se os 50 anos da conquista do título mundial por Eder em luta realizada em Los Angeles. O ano era 1960 e o adversário, derrotado por Eder, chamava-se Eloy Sanches.
Não há como recompor por inteiro o perfil de uma época e o peso da vitória de Eder sobre a então combalida estima nacional. O Brasil perdera a Copa de 50, na trágica final contra o Uruguai, em pleno Maracanã; Getúlio Vargas suicidara-se em 1954; Juscelino assumira o governo, em 1956, e dava novo impulso ao país com o desenvolvimento da indústria automobilística e a construção de Brasília; a bossa nova firmava-se como novo gênero musical com o lançamento, em agosto de 1958, do compacto Chega de Saudade, cantado por João Gilberto; Maria Esther Bueno vencia a final de Wimbledon em 1959, tornando-se a tenista número 1 do mundo; e Pelé nascia para o mundo durante a fantástica conquista, pelo Brasil, da Copa do Mundo de 1958.
De repente um país mais que secundário e carente, subdesenvolvido, atrasado e assolado por enorme dívida externa projetava-se no cenário internacional. Buscava-se, a todo custo, suplantar um não confessado sentimento de inferioridade em relação a outros países com vitórias e demonstrações de capacidade do povo brasileiro. Foi nesse contexto que se inseriu a conquista do título mundial por Eder Jofre. Rever hoje as fotografias da luta de 60 e as da grande recepção popular ao boxeador por ocasião de seu retorno ao país é mais que nostálgico: as fotos em preto-e-branco documentam um momento de felicidade coletiva, de um grande grito que se prolongava após a conquista da Copa da Suécia.
Aquele Brasil não se parecia com esse que hoje conhecemos. Talvez seja demasiada a comparação, mas o Brasil de 60 seria uma aldeia enquanto que este se assemelha a uma grande cidade. Naquele mundo Eder Jofre reinou e deu mostras de sua força e categoria. Tornou-se uma paixão popular e, mais que isso, orgulho nacional. Tínhamos um campeão mundial, descendente de famílias de boxeadores, um brasileiro que derrotava estrangeiros. Esse sentimento tornou-se muito evidente quando da luta de Eder contra o irlandês Johnny Caldwell, realizada no ginásio do Ibirapuera. De fato, o combate rapidamente tornou-se uma guerra contra a Inglaterra e regiões próximas. Os jornais atribuíam a Caldwell reações de desprezo ao lutador brasileiro e isso feria o sentimento popular de nacionalidade. Nessa luta, realizada em fevereiro de 1962, Eder derrotou Caldwell e unificou o título mundial dos pesos galos. Na manhã seguinte, os jornais estampavam fotos de Caldwell ajoelhado na frente de Eder numa clara alusão à supremacia do brasileiro.
Eder perdeu o título em 1965 numa luta realizada no Japão contra Fighting Harada. A notícia da derrota espelhou-se no final de uma manhã, provocando grande tristeza. Algum tempo depois Eder abandonaria o boxe, mas voltaria a lutar tornando-se campeão mundial na categoria peso pena.
A comemoração do cinquentenário da conquista do título mundial por Eder Jofre devolve-nos imagens de um país em ebulição, avançando contra sólidas amarras, encarando o seu destino. Mas aí Juscelino deixou o poder, Jânio foi eleito e renunciou, Jango assumiu e não completou o governo porque deposto pelos militares que fizeram a chamada revolução de 1964. Iniciava-se um longo tempo de ditadura e silêncio, mas isso já é outra história.
Águas de março
De vez em quando ouço “Águas de Março”. A gravação feita por Tom Jobim e Elis Regina é classificada por Leonard Feather, um dos mais renomados críticos de jazz, entre as dez melhores de todos os tempos.
Em “Águas de Março” Tom e Elis enfiam a mão no sagrado, sem a menor cerimônia. Eles simplesmente atravessam a fronteira do impossível e nos enviam as suas vozes de um oásis onde tudo é perfeito e absoluto. É de outra dimensão que nos acenam os dois artistas, atingindo o estado superior que o escritor Julio Cortázar traduziu em palavras:
“Se existe um dom divino no artista, esse dom não é a sua arte, conquista humana; esse dom é a entrega generosa que o artista faz de seu cosmos para que outros humanos possam se inclinar sobre ele, maravilhar-se e sentir-se um pouco acima do panorama cotidiano.”1
Maravilhado: assim recebo a generosidade de Tom e Elis a cada vez que ouço “Águas de Março”.
1. Julio Cortázar, Papeles Inesperados. Editora Alfaguara, Buenos Aires, 2009.
Cinquenta anos depois
Vez por outra um determinado acontecimento completa cinquenta anos desde a sua ocorrência e o fato, quando não comemorado, é pelo menos lembrado.
Está acontecendo agora com a ex-tenista Maria Ester Bueno que comemora os cinquenta anos de sua vitória no torneio de tênis de Wimbledon. A “dançarina”, como era chamada, foi tricampeã em Wimbledon, venceu cinco grandes Slams e inúmeros torneios. Jogou numa época em que os atletas eram movidos quase que só por amor e dedicação: viajava sozinha, utilizava meios de transportes mais baratos e não dispunha de retaguarda que cuidasse de seus interesses. Certa ocasião jogou 120 games num só dia, seu braço estourou e adeus carreira de tenista número um do mundo.
A glória de Maria Ester fez parte daquele reboliço que se instalou no país no final dos anos cinqüenta e início dos sessenta. Quem viu jamais se esquecerá. De repente, o país em permanente atraso e descompasso com o mundo parecia acordar. Juscelino Kubitschek exercia a presidência de onde sairia em 1961. Eram os tempos dos cinqüenta anos em cinco, da inauguração de Brasília (1960) e do incremento da indústria automobilística. Em 1958 o Brasil conquistava pela primeira vez a Copa do Mundo, na Suécia, e Pelé surgia para o mundo. No boxe aparecia a impressionante figura de Eder Jofre, um demolidor peso-galo que conquistava o título mundial de sua categoria em 1960. Em agosto de 1958 João Gilberto lançava um compacto com a canção “Chega de Saudade”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, que para muitos representa o marco zero da Bossa Nova.
Tempos febris que de repente estremeceram com a eleição de Janio Quadros para a presidência da República, sua renúncia, o governo Jango e o grande nó que foi a revolução de 64. Desses dias muita gente lembrará facetas diferentes; dias nublados terão sido observados sob ópticas nem sempre coincidentes. Histórias contadas nos dão conta de protestos tantas vezes inúteis, opressão e a mão-forte de um sistema em voga nessa América que parece ter sido descoberta para ser laboratório do mundo, gleba de terras onde ideologias eram lançadas com o único propósito de se colidirem, levando consigo corpos, mentes e muito sangue.
Tantas glórias e desgraças para serem lembradas agora e me pergunto se devem ser comemoradas. Os gritos ao pé dos rádios que anunciavam os dribles de Garrincha e as investidas de Pelé ainda ecoam por aí. Os murros de Eder Jofre, o melhor peso-galo de todos os tempos segundo o Conselho Mundial de Boxe, ainda parecem derrubar temíveis adversários. A raquete que Maria Ester Bueno atirou para cima no momento em que venceu em Wimbledon parece ter entrado em órbita e nunca mais voltou. Tom Jobim e Vinicius de Moraes morreram e João Gilberto resiste bravamente com sua voz peculiar, submetendo multidões para sempre encantadas.
De repente passaram-se cinqüenta anos! Dou-me conta disso assistindo a uma entrevista de Maria Ester na televisão. Lá está ela referindo-se a coisas que se tornaram memória e pó.
Não há como não sentir saudades daqueles anos, de tudo em que se acreditava, de um Brasil infante querendo crescer, de um mundo que passou e já não pode ser descrito com palavras.