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João Vieira
Veio aí o João Vieira, saído de uma página qualquer do passado. O João Vieira é aquele cabra de quem se diz que cinco cascavéis atacando o homem ao mesmo tempo não dão nem para o cheiro. Cabra valente, curtido nas entranhas desse Brasil que não conhecemos bem, viajante de trajetos vicinais, resistente a sóis abrasivos, titular de boleia de pau-de-arara.
De onde veio ninguém sabe direito, acho que nem ele mesmo. Da vida passada um rosário de aventuras pitorescas como aquele caso de ter dado de presente à mulher um bonequinho pelado com o “pirulito” duro. Não é que a mulher, a “Véia” achou aquilo uma indignidade e tacou o bonequinho, na força toda dela, bem na testa do João Vieira? Depois ele andou por aí com a ferida na testa, disfarçando e inventando história quando algum curioso perguntava a ele sobre o acontecido.
Cabra bom o João Vieira, amigo dos amigos, dessas inteligências e sensos críticos desenvolvidos fora da escola, que de ler e assinar ele sempre soube só um pouco. No mais atravessou o mundo com a dignidade de homem pobre que nunca se curva, serviçal sim, mas nunca no limite de desrespeito a si mesmo.
Então o João Vieira reapareceu hoje, vindo do mesmo cafundó onde morou nos últimos anos, lugar impossível de encontrar, bem ali depois de tantos barracos, mas na casinha dele de que tanto se orgulha. Não veio forte como antes e o sorriso que sempre teve nos lábios não estava com ele dessa vez.
João Vieira sentou-se e não reclamou da vida que reclamação não é coisa de homem, não senhor. Mas, estava abatido, melhor dizendo sofrido, ao que pode acrescentar envelhecido. Apertou a minha com a mão dele sempre áspera, mão curtida no trabalho. E foi me dizendo que viera procurar o amigo por necessidade além de seu alcance, coisa que não era para ele, por isso não se vexava. Contou que uma desgraça acontecera: a “Véia” ficara paralítica e não conseguia sair da cama. Por isso, ela precisava de uma cadeira de rodas, coisa além das suas posses.
Fiquei sabendo que o João Vieira recebe aposentadoria, mas o dinheiro todo acaba com a comida e remédios. E, pela primeira vez, vi uma lágrima correr ligeira do canto do olho do João Vieira que, muito depressa, empertigou-se, cortando o fluxo que já vinha, desafiando o jeito duro de ser dele.
Acalmei o João Vieira, disse a ele que vou ver preços, prometi dar uma força. Foi a única vez que aquele sorriso meio debochado de quem ri da vida apareceu na cara dele, meio truncado, mas bem coisa do João Vieira.
Não faz nem uma hora que o João Vieira se foi, voltando para aquele não-se-sabe-onde no qual ele hiberna. Já ia saindo quando se voltou e me disse que não abandonará a “Véia” de jeito nenhum:
- A coisa que ela mais adora é a Igreja. Com a cadeira vou levar ela para ver missa. Até o fim, meu ou dela, vai ser desse jeito. Somos só nós dois nesse mundo, sabe?