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Gente
Um amigo separa-se da mulher após quarenta anos de casamento. Ele me diz que simplesmente se tornara impossível continuar. Reconhece erros, mas que fazer se a vida a dois já não passava de um ritual de encenações?
Pergunto a ele sobre os filhos. Ora já são adultos, casados e com filhos. A turma entende a situação. Não é o que queriam, preocupam-se com a mãe. Aliás, a mãe segue irredutível, morando sozinha e longe. Por que a mãe não passa uns tempos na casa da filha até tudo se acomodar? Ora, ela sempre foi temperamental. Sangue quente o da mãe dizem os filhos ao pai. E u não sei? - pergunta o pai. Passei junto dela quase que toda a vida, eu a conheço muito bem, melhor que vocês.
No domingo o pai se reúne com os filhos e os netos. Almoçam juntos, depois levam as crianças a um parque. Falam sobre a mãe, sozinha lá, distante. Não seria possível o pai voltar atrás e retomar a vida a dois? Afinal, vocês já estão com quase 70 de idade… Um faz companhia ao outro…
O problema é que o pai - o meu amigo - tem a sede da novidade, de viver intensamente. Envelhecido, não está morto. Agradam-lhe as mulheres mais jovens. O sexo já não é o de antes, mas segue imperativo. Talvez tenha alguma namorada.
Pergunto ao meu amigo se realmente tem outra mulher. Ele sorri. Responde que essas coisas acontecem. Não diz claramente sim ou não, deixa vago o sim. Talvez a confissão o envergonhe. É um sujeito bem apessoado, embora um pouco pesado pela falta de exercícios.
O caso me faz lembrar de um parente que deixou a mulher e se meteu em muitas encrencas. Certa vez esse parente me disse admirar o meu pai que se manteve junto de minha mãe até o fim da vida, enquanto ele… Vá lá que o meu pai tinha os casos dele, mas família é família.
A regra muda com o passar do tempo. No passado o homem se arrogava o direito de ter casos fora do casamento, a mulher nem pensar. A união era mantida a qualquer preço sob juramentos falsos e muitas mentiras porque a todo custo havia que se manter a unidade da família.
Não sei o que dizer sobre o meu amigo. Se ele voltará atrás? Não creio. Está inseguro, perguntando-se se não fez besteira, mas voltar… Acho que talvez as coisas se ajeitassem melhor no tempo de meu pai.
Receitas fáceis
Fico meio enjoado quando leio sugestões de receitas fáceis, indicando que qualquer um pode executá-las. Basta ter ingredientes, um fogão meia-boca com forno, pouco ou nenhum trato com culinária, capacidade de selecionar as medidas certas e muita, muita boa vontade.
Dirão que não é assim, afinal receitas fáceis destinam-se a quem está habituado com a cozinha. Então o melhor é colocar advertências acompanhando essas receitas, avisando a homens que vivem sós e não têm trato familiar com panelas e fogões para que não tentem executar as fórmulas recomendadas.
A vida é imprevisível. Relações aparentemente sólidas desfazem-se de repente, assim como certos doces simplesmente desandam. Mesmo as pessoas mais experientes podem deixar passar do ponto um doce-de-leite ou um simples chantili. Aquele doce de banana que a minha avó fazia era uma delícia só dela, feito pelas mãos dela. Ela sabia, com incrível precisão, o momento de tirar o doce do fogo com isso emprestando a ele um sabor raro e inconfundível. Pois as relações entre pessoas também são assim, de uma hora para outra passam do ponto e eis um homem de quarenta anos ou mais restituído ao mundo, tendo que dar conta de suas próprias roupas e, pior, de sua alimentação.
A legião de homens que está passando ou já passou por isso conhece muito bem o caminho. No começo a coisa se resolve com comida de restaurantes até que isso cansa e, na falta de quem cozinhe, o cidadão decide vencer o grande obstáculo e cozinhar. É bom que se diga logo: talentos desconhecidos se revelam desse modo. Entretanto, na grande maioria dos casos, o que se tem é um inevitável desastre que começa com aquelas comidas semiprontas as quais, como está escrito na embalagem, basta colocar no micro-ondas. O resultado é uma comida insossa que dá para ir levando por uns dias até que enjoa. É nesse momento que o pobre sujeito decide apelar para as tais receitas fáceis e, aí sim, o inferno começa. Raramente a coisa dá certo e ponto final: não são necessárias maiores explicações sobre as tragédias culinárias que passam a ocorrer.
Escrevo essas linhas porque nesse exato momento um amigo está nessa situação. Vindo de casamento que julgava estável, pai de dois filhos, acomodado, eis que a surpresa do desgaste de sua relação com a esposa – desgaste que ele recusou-se a perceber, diga-se – abateu-o. Seguiu-se a rotina que termina e começa ao sair de casa, a nova vida num flat que se julga transitório, as noites imprecisas nas quais não se sabe bem o que fazer nem para onde ir, a procura dos velhos amigos com que se perdeu contato, a busca de uma situação que devolva a vida aos eixos de sempre.
Dias trás o meu amigo me procurou e falou-me longamente sobre as mazelas do seu dia-a-dia. Naturalmente os assuntos foram a mulher dele a quem diz amar muito, o ciúme e medo de que ela tenha alguém, enfim os comemorativos tão bem conhecidos e dolorosos que acompanham situações como a dele. Depois a conversa derivou para coisas práticas e descambou para o tema das refeições, dizendo-me ele que não aguenta mais os restaurantes etc. Foi nesse ponto que declarou sua pretensão de aprender a cozinhar, dizendo que existem receitas fáceis e por aí foi.
Pelo que sei o meu amigo nunca tentou fritar um só ovo e a cozinha é para ele departamento tão complexo quanto a central de cálculos para a construção de espaçonaves da NASA. Entretanto, não tentei demovê-lo de sua intenção, quem já esteve no lugar dele sabe que há que se tentar de tudo, afinal a vida continua, as madrugadas são imensas, a dor maior ainda, mas há vida pela frente. Também não disse a ele, mas o tempo cura tudo e não há de se passar muito para que ele me telefone, contando sobre essa namorada fantástica com quem ele está saindo, gente finíssima, bonita pra caramba e que até sabe cozinhar.
Não há o que tirar nem por na história do meu amigo, afinal essa é a receita da vida.