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A última casa da rua
Depois da fileira de casas as construções rareavam na extremidade do vilarejo. Para quem seguia em direção à estação, bem antes de se iniciar a subida, o espaçamento entre as residências era visível. Terrenos cobertos por mato marcavam a distância entre uma casa e outra. A penúltima da rua era a daquele “italiano”, homem sisudo, de poucas palavras, que viera anos antes viver nas montanhas em busca de ar mais puro. Naquela época acreditava-se ser primordial para o tratamento da tuberculose viver em lugares de grande altitude, nos quais o clima favoreceria a boa evolução da doença. Tuberculosos com maiores possibilidades iam tratar-se na Suíça onde bons sanatórios foram edificados nas montanhas do país. Caso conhecido foi o do poeta Manuel Bandeira que no sanatório Cladavel conviveu com o poeta francês Paul Èluard.
O “italiano” era um sujeito interessante. Vivia sozinho e passava os dias provendo o aterramento de um barranco atrás de sua casa, junto ao rio. Sua rotina consistia em trabalhar com a enxada num morro do outro lado da rua, do qual retirava terra para transportá-la com um carrinho de mão. Desse homem sabia-se que tinha um irmão que o visitava raramente, vindo de São Paulo, onde vivia. Dizia-se, sobre o irmão, que fora campeão sul-americano de bilhar, fato confirmado pelo “italiano” nas poucas vezes em que trocava palavras com algum vizinho.
Para além do imóvel do “italiano” existia a última casa da rua que ficava numa curva. Avarandada e com janelas verdes, apresentava-se com ares de abandono. Isolava-a da rua um muro de altura média e um portão de ferro. Na maior parte do tempo a casa permanecia fechada. Entretanto, por volta da metade dos anos 50, para lá se mudou um homem chamado Orlando que não se demorou a tornar-se próximo de algumas pessoas do lugar. Esse Orlando era alto, tez clara e usava vasto bigode ligado à barba ruiva. Lembro-me bem desse homem porque, a certa altura, tornou-se próximo de meu irmão com quem trocava opiniões sobre obras de filósofos. Por várias vezes acompanhei meu irmão até a casa do Orlando porque gostava de ficar na varanda, brincando. Eu ouvia as conversas que, obviamente, não compreendia dada a profundidade do assunto. Entretanto, certo dia, a conversa descambou para o lado pessoal e ouvi coisas surpreendentes para o menino que eu era.
Naquela tarde Orlando contou que viera do Rio após abandonar o emprego e deixar para trás tudo o que tinha. A razão fora terrível decepção amorosa. Casado com mulher a quem amava mais que a tudo, descobrira-a traindo-o com um amigo. A partir daí a vida perdera o sentido. Nenhuma razão parecia a ele suficiente para explicar porque a mulher que a ele jurara amor e a quem tanto se dedicava o tivesse traído. Mas, o pior estava por vir. Desesperado e completamente perdido chegara à situação limítrofe de atentar contra a própria vida. E o fizera de modo inusitado. Sendo falta de sexo com a mulher a quem amava o que mais doía a ele resolveu matar-se se castrando. Sangraria até a morte por amor à traidora.
Foi o que Orlando fez. Obviamente, não morreu. Um parente encontrou-o ainda vivo. Conduzido ao hospital, salvaram-no.
A última casa de rua não existe mais, demolida que foi dando lugar a outro imóvel. Com o passar do tempo, muitas outras construções surgiram, alongando o casario da rua para além da casa avarandada de janelas verdes. Há pouco tempo visitei a hoje cidade e, ao passar pelo lugar onde ficava a última casa da rua, não pude deixar de me lembrar daquele homem ferido de morte por uma paixão. Aliás, Orlando não permaneceu por muito tempo no lugarejo. Depois de um ano mudou-se para outra cidade e, tempos depois, soubemos que enfim consumara seu suicídio.