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A origem do mundo
Acredita-se que o universo, tal como é conhecido, tenha se originado há cerca de 15 ou mais bilhões de anos a partir de uma formidável explosão que os cientistas costumam chamar de Big Bang. Já o nosso sistema solar possivelmente formou-se a partir de uma grande nuvem de poeira cósmica. Girando e condensando-se a nuvem deu origem ao Sol e aos planetas, entre eles essa maravilhosa Terra que a todo custo intentamos destruir.
O enigma da origem do mundo e do aparecimento da vida apaixonou os homens desde a mais remota antiguidade. Hoje se sabe que a vida surgiu nos oceanos há aproximadamente quatro bilhões de anos. Os primeiros seres vivos não passavam de células originadas pelas reações entre pequenas moléculas que, progressivamente, ganharam complexidade.
Se os parágrafos anteriores resumem estudos e descobertas de cientistas o mesmo não se pode dizer sobre outras interpretações sobre a origem do mundo. Visões particulares de filósofos e artistas conferem outras dimensões a respeito de fatos sobre os quais os cientistas se debruçaram ao longo de séculos.
Nesse sentido é muito interessante a interpretação de Gustave Courbet (1819-1877) sobre a origem do mundo no quadro homônimo que desenhou. Coubert foi um pintor francês realista cujas telas são produto da observação direta. Considerado anarquista era amigo do filósofo anarquista Proudhon, do poeta Charles Baudelaire e do caricaturista Daumier. É de Pedro José Proudhon(1809-1865) a célebre frase “a propriedade é um roubo” referindo-se ao fato de que a existência da propriedade torna possível a apropriação do trabalho de outrem. Proudhon foi muito lido no Brasil e influenciou vários intelectuais, entre eles Euclides da Cunha. O professor Miguel Reale destaca em seu livro “A Face Oculta de Euclides da Cunha” o aspecto curioso da simpatia o autor de “Os Sertões” por Proudhon de vez que Euclides repelia qualquer tendência anárquica.
Mas, eu me desencaminho. Voltando a Coubert, por volta de 1850 ele abandou a fase realista e passou a desenhar formas voluptuosas de conteúdo erótico. Em 1866, Coubert produziu o quadro extremamente chocante que é a “Origem do Mundo”. Trata-se de uma representação frontal das coxas e da vulva de uma mulher. A observação do quadro incomoda e desperta várias reações, destacando-se a vergonha. O que está exposto na tela é um nu frontal e sem disfarces da genitália feminina, sugerindo os começos da vida e contrapondo-se ao erotismo que normalmente emprestamos a ela. É a dualidade entre erotismo e geração da vida, mostrada na tela com crueza, que fere o observador estimulando os seus preconceitos. Nada a ver, portanto, com as considerações científicas sobre a origem do mundo e da vida.
Gustave Coubert defendia o socialismo e foi um agitador político. É considerado um precursor do impressionismo e do cubismo. Os críticos de arte e os estudiosos do modernismo garantem que os pintores impressionistas aprenderam muito com a arte de Coubert.
Charles Baudelaire
A minha primeira experiência com as “Flores do Mal”, de Charles Baudelaire (1821-1867), deu-se por volta de meus quinze anos de idade. Havia em casa de meus pais uma pequena biblioteca composta por livros que vinham desde a década de 1920, adquiridos por pessoas da família. Biblioteca de outro tempo com obras hoje consideradas raras, algumas das quais tive a sorte de salvar de tragédias familiares futuras: o destino dos livros em geral liga-se ao de seus proprietários cabendo-lhes, como parte do espólio, os impactos de mudanças, separações, incêndios, fenômenos atmosféricos etc.
Pois me lembro perfeitamente de meu primeiro encontro com as “Flores do Mal”. Na verdade foi um encontro com o livro “Flores das Flores do Mal”, uma edição de 1944 publicada pela Livraria José Olympio, com tradução do poeta Guilherme de Almeida. Não sou capaz de descrever o meu espanto ao ler poesias como “Uma Carniça”, “As Litanias de Satã”, “Spleen” e outras. Terá sido esta ocasião a primeira em que fui atingido pelo verdadeiro impacto da modernidade àquela altura já antiga porque Baudelaire publicara “As Flores do Mal” em 1857. Eram 100 poemas que valeram ao poeta acusações de blasfêmia e obscenidade feitas pelo governo imperial francês. O Segundo Império de Napoleão III pisava em ovos quanto ao perigo de censurar uma obra literária mas impunha-se colocar um freio à libertinagem. Baudelaire foi condenado a pagar uma multa de 300 francos e retirar de seu livro seis poemas considerados eróticos.
Há de tudo em “As Flores do Mal”. O poeta que domina as regras formais do poema esmera-se em metáforas chocantes provocando, intencionalmente, espanto e repulsa. É a subversão da ordem, a corporificação dos contrastes, a lembrança de que o belo é passageiro e seu destino é a corrosão pelos vermes. Assim, há beleza e horror plasmados no casal que, em sua carruagem defronta-se com a podridão de um cadáver animal que, à beira da estrada, se decompõe:
Recorda o objeto vil que vimos, numa quieta,
Linda manhã de doce estio:
Na curva de um caminho uma carniça abjeta
Sobre um leito pedrento e frio,
As pernas para o ar, como uma mulher lasciva,
Entre letais transpirações,
Abria de maneira lânguida e ostensiva
Seu ventre a estuar de exalações
…..
- E no entanto, hás de ser igual a esse monturo,
Igual a esse infeccioso horror,
Astro do meu olhar, sol do meu ser obscuro,
Tu, meu anjo, tu, meu amor!
Sim! tal serás um dia, ó tu, toda graciosa,
Quando, ungida e sacramentada,
Tu fores sob a relva e a floração viçosa
Mofar junto a qualquer ossada.
(Versos de “Uma Carniça” – Tradução de Guilherme de Almeida)
Sexo, drogas, prostituição, decomposição, seres errantes, álcool: a poesia de Charles Baudelaire é a do observador atento que flagra o efêmero durante suas andanças. É o homem diante circunstâncias absurdas que o poeta desnuda, obediente à métrica da construção de sonetos, mas interessado numa outra forma de apresentação que subverte a arte romântica.
Não sem razão o grande poeta Charles Baudelaire é considerado, por muitos críticos, o primeiro entre os modernos. Ainda hoje o contato com “As Flores do Mal” é arrepiante. Exemplares de “As Flores do Mal”, de diferentes tradutores, podem ser encontrados nas livrarias.