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Encontro casual
Só reparei que o homem atrás da mesa tinha aspecto que me era familiar algum tempo depois. Antes, enquanto esperava para ser atendido, o sujeito me pareceu um desses funcionários públicos de comportamento pouco amigável. Era desses caras ciosos de seu dever que pouco se importam com os problemas dos contribuintes a quem atendem.
Eu recebera uma notificação de multa, por isso estava ali. Ao me sentar passei ao atendente os meus dados e, para a minha surpresa, ele me olhou com alguma curiosidade. Depois disse que talvez tivesse me conhecido quando menino pois meu nome não lhe soava estranho. Assim, conversa vai, conversa vem, descobrimos que éramos oriundos da mesma cidadezinha do interior. Mais: o funcionário era filho do falecido Pereira a quem conheci muito bem.
Então ele era filho do Pereira. Coisa estranha encontrá-lo. A primeira coisa que pensei é se ele saberia da história do casamento de seus pais. O Pereira fora um fazendeiro de posses que se apaixonara por uma bonita moça que viera para trabalhar na escola local. A moça era professora o que, naquela época e região, a tornava bom partido: tinha emprego e ganhava bem. Mais que isso, a moça dizia pertencer a família endinheirada da qual seria herdeira. Prato feito para o Pereira que naquela época já passara dos 40 anos de idade.
Para encurtar a história os pombinhos não perderam tempo e se casaram. Amores de parte, bom negócio para ambos. Bom negócio? Não demorou para que a realidade se impusesse ao casal. Na verdade o Pereira omitira sua atual condição financeira. Já não tinha terras e estava quebrado. Quanto á professora, nada de família endinheirada. De modo que outra opção não tiveram que a de levar a vida em frente, enfrentando os percalços.
Desse tempo me lembro bem do Pereira a quem encontrei já morando em outra cidade. Era um homem magro, algo imponente, com a barba sempre por fazer. Trajava um terno surrado mas, mantinha o jeito da antiga realeza de proprietário de fazendas com muitos empregados. Quando cruzei com o Pereira ele já passar dos 60 anos e eu teria uns 20. Ao me ver ele me abraçou, perguntou de meu pai e conversamos animadamente sobre conhecidos comuns. O forte abraço na despedida pareceu-me um tanto exagerado, hoje entendo que se tratava de algum tipo de reconciliação do Pereira com o passado.
No fim das contas, na repartição a que fora tinha, bem à minha frente, o filho daquele louco casal que se metera na dura batalha pela sobrevivência cheio de esperanças que, afinal, foram fraudadas. Obviamente, não tive coragem de perguntar nada ao filho do casal. Através dele apenas soube que seus pais há muito haviam falecido e, só depois disso, tratamos do motivo que me levara até lá.
Na rua, depois de sair, lembrei-me do Pereira e da mulher e na luta deles. A morte que tudo encerra havia levado aquelas pessoas e apagado os sinais que deixaram no mundo. Exceto aquele filho que permanecia, atrás de uma mesa, ele tão parecido com o pai no seu modo de ser e falar.
Sobre o Nada
Tem um sujeito, meu conhecido, que a toda vez que é perguntado sobre o que está acontecendo reponde:
- Nada.
Insisto:
- Nada mesmo?
- Nadinha.
Desde muito tomei a liberdade de chamá-lo de Nada. Quando me encontro com ele e o chamo de Nada ele apenas sorri. Mas, convenhamos, o Nada é um homem contido. Desses que se seguram ao limite para não externar emoções. De um ano para cá deixou crescer a barba, certamente para disfarçar o espanto diante da vida. Porque - é bom que se diga – não faz muito tempo a vida do Nada virou de cabeça para baixo. Uma série de acontecimentos infaustos abateu-se sobre ele, inexplicavelmente.
O Nada é dessas pessoas que nos fazem pensar se de fato existem a sorte e o azar. Se de fato algumas pessoas são azaradas, tanto que céus e infernos parecem se voltar contra elas, inexoravelmente.
Mas, a essa altura você estará se perguntando: afinal o que aconteceu a esse tal de Nada? Confesso que não sei detalhes e muita coisa sobre a cascata de má sorte do Nada me escapa. O pouco que soube foi através dele mesmo que certo dia, em fase de desespero, sentou-se comigo para uma cerveja e abriu o bico. Naquela ocasião falou-me ele pausadamente. O Nada mastigava cada frase que parecia sair de seu peito após ser gerada com imensa dor. Confessou-me a falta brutal que faziam a ele os filhos agora vivendo sob a tutela da mãe. A mãe. Justamente a mãe. Ela mesmo, aquele mulherão com quem se casara recusando-se a ouvir os conselhos dos amigos. O Nada deu a ela casa, cama, comida, carro importado de luxo, vida de rica como ela jamais teria vinda que era de berço pobre. Trabalhava ele dia e noite para manter o padrão, feliz por fazê-la feliz. Sempre ocupado, o Nada deixou-a passear várias vezes em Miami, levando dinheiro gordo na bolsa para comprar o desse na telha dela.
Isso durou? Ah, não. Pois foi um sujeito do posto de gasolina que certo dia disse ao Nada que a mulher dele andava com o cara da academia, um personal trainer que ela havia contratado para manter a forma. O que se seguiu foi uma rápida investigação que deu o resultado esperado: ele e o tal personal eram amantes. Seguiu-se a perda da casa que estava no nome dela e até a descoberta de que o carrão já fora passado por ela ao personal. Aborrecido o Nada descuidou-se da empresa e o negócio afundou depressa. De repente dividas, processos etc. Como nenhuma desgraça parece não se dar por completa veio o acidente no qual o Nada se machucou e agora anda puxando por uma das pernas. Tem mais, mas chega.
Naquela noite em que o Nada me falou sobre a desgraça dele, vi um homem cansado da vida, talvez desejando colocar um ponto final no seu estágio entre os humanos. A certa altura, depois de um longo silêncio perguntei a ele:
- E sobre o futuro?
Ele se virou e com algum esforço respondeu:
- Nada.
O Sassafrás
Ainda hoje me lembro da rua com aquela gente toda num ir e vir sem remédio. As pessoas simplesmente vagavam, sem compromisso, talvez bestificadas. Há pouco acontecera fato incomum: um homem baleara um rapaz que fora surpreendê-lo em ato proibido. Comentava-se que não fora aquela a primeira vez que o rapaz se embrenhara na mata atrás do homem. Por fim recebera o esperado. Ensanguentado, percorrera como pudera o trajeto de volta e caíra na praça defronte a igreja.
A notícia do tiro que atingira o rapaz correra do começo ao fim da rua e tornara do fim ao começo. Noitinha, as pessoas que haviam se recolhido às suas casas reabriram suas portas e voltaram à rua. O trança-trança de gente indo e vindo, tentando recuperar fragmentos de uma história inacabada mantinha aceso o frêmito da desordem que se instalara.
Perto das oito da noite o subdelegado enfim conseguiu que a telefonista completasse a ligação para o delegado da cidade próxima. Não se passara uma hora depois disso e um jipe da polícia, recém-chegado, estacionava na rua de chão de terra.
O primeiro que desceu foi o delegado. Atrás dele veio um homem grande, muito forte e com cara de poucos amigos. Depois se soube o nome dele: era o Sassafrás.
O Sassafrás era conhecido na região pela valentia. Dele dizia-se ser capaz de enfrentar qualquer um, em qualquer situação, no braço ou com qualquer arma. Sassafrás não negava fogo, não conhecia o medo. Fora ele quem buscara aquele terrível Tião, devedor de muitas mortes, procurado em três estados. Surpreendera o Tião numa venda de beira de estrada, tomando um trago com dois capangas. Tião, liso no trato do revólver, viu quando o Sassafrás entrou na venda e buscou pela arma na cintura. Não chegou a apertar o gatilho porque num segundo o Sassafrás estava em cima dele. Os capangas fugiram porque cachorro pequeno não entra em briga de cachorro grande. No fim deu o Sassafrás que amarrou bem o Tião e o levou preso.
Era de ser ver aquele Sassafrás varrendo cada centímetro da rua com seus olhos espertos. Viu um a um dos transeuntes, mediu cada um. No bar da sinuca perguntou por um valentão do lugar de cuja fama tivera notícia. Queria ombrear-se com ele porque não conhecia medo de homem.
Não sei dizer com exatidão como tudo aquilo terminou. Soubemos depois que o valentão do lugar esgueirara-se quando soube que o famoso Sassafrás viera com o delegado. Quanto ao homem que atirou no rapaz aconteceu de ele esconder-se por uns dias até ser encontrado e preso. O rapaz? Ah, ele sobreviveu até a semana passada, cinquenta anos depois daquela noite em que levou o tiro, a mesma noite na qual conheci o terrível Sassafrás e o vi em ação.
Caso de amor
Quando o sogro faleceu a sogra veio morar com eles. Dito assim parece que tudo foi simples, natural. Não foi não. A sogra era boa pessoa, mas chata como ela só. Quando a mulher convidou a mãe - isso ainda na volta do cemitério, após o enterro – ele estremeceu. O sogro morrera de repente e deixara a velha sozinha. Natural, pois, que fosse viver com a filha - e com ele. Dirigindo o carro muitos filmes se passaram pela cabeça dele. Já em casa sugeriu à mulher a contratação de uma funcionária que faria companhia à velha. Depois, a velha tinha os seus hábitos, gostava da casa dela, como iria se acostumar à vida no apartamento que, afinal, mal dava para o casal? Demais ele utilizava o outro quarto como escritório, tinha nele os seus papéis, o computador na mesinha. Até a ligação da internet mandara fazer para aquele quarto, como ficariam as coisas se a velha viesse morar com eles?
O assunto rendeu durante algum tempo até que a própria velha acabou cedendo à pressão da filha e se mudou para a casa deles. No fim ele mesmo acabou concordando: o argumento de que a velha senhora poderia passar mal e morrer sozinha bateu forte nele que sofria desse mal incontrolável que é o remorso por antecipação. Se a velha morresse, não se perdoaria, estava dado o passo definitivo de aceitação.
Acontece que a velha tinha um cachorro. Cachorro pequeno que ele imaginou que a velha doaria para não trazê-lo na mudança. Mas, a velha tinha um amor dando pelo cãozinho e sem ele nada feito, ficaria na casa dela. Com desprezar um bicho de estimação, companheiro de alguns anos, ela que já perdera o marido?
Veio o cão. Entretanto, desde o primeiro dia o cão deixou muito claro que não ia com a cara do dono da casa. Bicho esperto mantinha as aparências quando a velha estava por perto. Mas, quando estavam a sós, ele e o cão, o cão rosnava e mostrava os dentes. Animalzinho mal humorado, detestável. Bem que ele tentou dizer à mulher que tudo bem a mãe dela em casa, mas o cão, por que diabos teria que aturar o cão? E não deu outra porque a mulher logo foi dizendo que ele não tinha nenhuma sensibilidade, como afastar da mãe o animal pelo qual ela tinha tanta afeição, além do que o cãozinho nenhum trabalho dava a ele?
A situação ficou assim por alguns meses até que, certa ocasião, a velha saiu do prédio para ir à padaria e foi atropelada. Dois dias depois, não resistiu aos ferimentos e faleceu.
Ficou o cão. Ele odiava o bicho, mas bom coração que tinha, percebeu a tristeza do bicho que perdera a dona. De modo que com o passar dos dias o cão parou de rosnar para ele e até deixou de bancar o guarda na porta do quarto que voltou a ser o escritório de antes. As coisas foram de tal ordem que o cão acabou se afeiçoando a ele e ele ao cão.
Há histórias que têm fim improvável. Pois certo dia o cão adoeceu e veio a morrer. Daí que quando me encontrei com o gajo e ele me contou da morte do cão, imaginei que ele estaria finalmente aliviado, senão vingado. Pois não é que ele se mostrou muito consternado ao ouvir de mim tal observação, confessando que andava sentindo uma danada de saudade do bicho?
Um bom amigo
Nada tão agradável como encontrar alguém a quem não se vê há anos e ouvir: nossa, você não mudou, está igualzinho, poxa, o tempo não passou para você. Claro que há exagero nisso, bondade da pessoa que diz. Mas agrada, afaga o ego, disfarça a impressão que temos de nós mesmos a toda manhã, diante do espelho. Vida é ilusão, repetia um conhecido que sempre teve alguma dificuldade em aceitar a realidade.
Há quem tenha “olho bom” e quem não o tenha. Pessoas de “olho bom” em geral estão de bem com a vida e tendem a um olhar mais benigno sobre as mazelas diárias. Entendem melhor o próximo e são capazes de aceitar o “outro” com as suas imperfeições. Casais formados por pessoas desse gênero mantêm seus laços durante toda a vida, superando juntos desacertos e dificuldades. A vida não é simples, mas pode-se bem moldá-la aparando-se arestas e buscando pelo menos um pouco de felicidade.
Essa pessoa com quem me encontrei pertence ao time da turma do “olho bom”. Foi ele meu colega de colégio e sou-lhe grato por ter me livrado de situação difícil naquela época. Aconteceu passar a frequentar aulas em nossa turma da 3ª série do Ensino Médio um cara que acabara de servir ao exército. Rapazote como nós, tinha físico desenvolvido, bem preparado nos treinamentos ao tempo da farda. Pois certo dia esse cara achou de me provocar, intencionalmente claro. Por sim ou por não, ainda que eu não respondesse, avisou-me ele que me esperaria na saída das aulas para acertarmos as nossas diferenças. Quais diferenças seriam essas até hoje não sei.
Bem, o que se seguiria não passaria de um massacre. Eu bem menor e sem preparo físico para uma luta ia apanhar bastante e pronto. Convencido de que a desgraça iminente aconteceria dei-me ao luxo de ignorá-la. Ao final das aulas saí tranquilamente, no fundo esperando que o tal sujeito tivesse mudado de ideia. Mas, não! Mal pisei fora da escola e lá estava o soldado em posição de luta. Ao redor dele uma turba de alunos, público aflito para que começasse a briga.
Confesso que ao perceber a situação real em que me encontrava e ter a certeza de que não tinha a menor chance no embate passou-me pela cabeça correr. Entretanto, a covardia nunca fez parte dos meus graves defeitos daí que me perguntei se acaso eu não conseguiria pelo menos acertar uns petelecos no gigante.
Creio que o punho do meu adversário já se aproximava do meu rosto quando um braço igualmente forte o conteve. Era o meu amigo que desafiou o meu adversário a brigar com ele porque seria covardia bater em alguém menor e sem preparo. Ao que o tal que tanto se gabava acovardou-se. Rabo entre as pernas, praticamente não disse nada, virou-se e partiu nunca mais se dirigindo a mim no período em que frequentamos a escola.
Encontrar-me por acaso com esse amigo, o homem de “olho bom”, fez-me lembrar do episódio escolar que relatei a ele. Quando terminei ele sorriu. Confessou-me que também ele teria dificuldades caso a briga dele com o outro tivesse acontecido. Em todo caso não poderia, naquela ocasião, se omitir a defender um amigo em situação tão delicada.
Despedimo-nos com um forte abraço e voltei para casa pensando que, afinal, existe muita gente boa nesse louco mundo.
O pai do Gabrielzinho
O Gabriel era meu colega no terceiro ano do curso primário. Moleque pequeno e de boa índole era chamado de Gabrielzinho. Brincávamos depois da escola até que a mãe dele aparecia para chamá-lo à casa. Era uma vida simples, repetitiva, mas alegre, moldada ao gosto de crianças que se divertiam com quase nada de brinquedos. Bolas de gude e estilingues eram as “armas” da patota.
Certa manhã apareceu no Largo de São Benedito um homem que fora arrastado pelo cavalo. Morrera no caminho, pé preso ao estribo. O cavalo fizera a parte dele, voltando e trazendo o dono para casa.
O homem ensanguentado e de corpo ralado ficou no largo durante algum tempo. Corri para lá logo que soube do acontecido e finquei os olhos no cavalo o qual, então, me pareceu do outro mundo ligado que estava a uma tragédia.
O homem ralado e ensanguentado, também morto, era o pai do Gabrielzinho. Depois se soube que ele bebera muito no Bar do Gato, tanto que não se equilibrara sobre o cavalo. Olhe que antes de fechar o Gato oferecera pouso a ele que, embriagado, recusara.
Não era da sorte do homem dormir na casa do Gato, nem era o caso de não cair e morrer enquanto arrastado pelo cavalo. Talvez por isso, questão de sorte, tenha morrido, assim falaram as mulheres durante o velório.
No fim do ano a mãe do Gabrielzinho mudou-se. Foi viver perto da gente dela, a viúva, num lugarejo próximo. Mas, nunca mais vi o Gabrielzinho. Dele restou-me essa história curta que já contei tantas vezes, cada uma delas de um jeito, mas sempre em torno da tragédia da morte do pai.
Talvez eu sempre repita a história porque me parece que o cavalo continue a fazer o mesmo percurso a cada noite. O Gato fecha o bar, o homem se recusa a dormir na casa do Gato, o cavalo arrasta o bêbado que chega de manhã ao Largo de São Benedito, ralado, ensanguentado e morto.
Talvez só eu me lembre dessa história e também por isso tenha recebido a missão de conta-la a cada vez que me lembro do cavalo avançando nas sombras, arrastando o cadáver até o largo de São Benedito.
Lembrança do Pedrão
A idade que avança promove o retorno de pessoas e coisas esquecidas. Os médicos explicam que se trata de artérias cerebrais endurecidas que dificultam a irrigação sanguínea dos neurônios. Sintoma de esclerose - afirmam - é boa memória para fatos passados e ruim para acontecimentos recentes. Lembramo-nos perfeitamente de coisas acontecidas 20, 30 anos atrás, mas nem sempre temos lembrança de algo ocorrido nos últimos tempos. Isso sem falar nas situações em que fazemos um monte de coisas, tão mecanicamente, que um minuto depois não somos capazes de dizer onde realmente estávamos agorinha mesmo. É aquela coisa de fechar o carro e voltar a ele em seguida para ver se realmente o tínhamos fechado.
O lado bom - ou mau em alguns casos – é que nessa fase nos lembramos de situações que nos impactaram no passado e, juntamente com elas, das pessoas envolvidas. Pois não é que de repente me lembrei de um acidente de carro acontecido nos meus tempos de menino? Creio que na época eu não teria ainda 10 anos de idade. Morávamos numa cidadezinha de onde se saia viajando por estrada de terra ou de bonde elétrico cuja estação ficava a 4 km de distância.
Aconteceu que numa noite fomos, em carro de aluguel, levar meu pai à estação onde ele tomaria o bonde. Na volta estávamos eu, meu irmão e minha irmã, sentados no banco de trás quando o motorista errou o percurso e, ao invés de passar por uma pequena ponte, meteu-se ao lado dela, caindo o carro num riacho. Ocorre que o motorista assustou-se e, sabe-se lá por que, evadiu-se do local. Então ficamos, os três, ali no escuro, chorando, até que fomos resgatados pela gente de um caminhão que passou no lugar um bom tempo depois.
Lembro-me bem da revolta de minha mãe quando chegamos à casa e do esforço dela para conseguir uma condução que nos levasse ao hospital de cidade próxima. O meu irmão, mais velho que eu, cortou-se no acidente e ganhou uma cicatriz no rosto que levou consigo vida afora.
Eram outros tempos, entretanto, e as coisas ficaram por isso mesmo. O motorista, o Pedrão, era um bom sujeito, dono do carro e de algumas terras, bem sucedido, amigo do meu pai. Homem forte e de poucas palavras, o Pedrão era lhano no trato e dele sabia-se que tinha por hábito ter sempre, pendurado a um fio, sobre a cama onde dormia, um cacho de bananas. Caso o Pedrão acordasse durante a madrugada, estendia o braço, pegava e comia uma banana e voltava ao sono dos justos.
Esse Pedrão foi proprietário de caminhão e costumava fazer transporte de produtos agrícolas da região ao Ceasa, em São Paulo. Bom motorista aventurava-se na estrada barrenta da serra com grande carga, muitas vezes calçando os pneus com correntes para evitar deslizamentos. Entretanto, faltava a ele coragem para dirigir dentro da cidade de São Paulo. Por isso, fazia-se acompanhar de um ajudante que assumia a direção assim que alcançavam o fim do trecho da Via Dutra.
Não sei dizer ao certo há quantos anos o Pedrão morreu. Dele guardo boa recordação, excetuando-se aquele momento em que nos abandonou à própria sorte após o carro cair no riacho, ao lado da ponte.
Imagino que a atitude do Pedrão naquela noite desperte repulsa nos leitores. Não há como não concordar com isso. Entretanto, prefiro entender aquilo que muita gente poderia taxar como irresponsabilidade ou covardia como ato de pânico de um homem nervoso que talvez tenha fugido de si mesmo, alarmado pela grandiosidade do acidente que provocara. Aliás, leia-se grandiosidade nos termos da época porque, então, naquelas estradas não existia quase nenhum tráfego e a vala onde despencou o carro era de muito pouca profundidade.
Lá no alto do morro
Amigo, não sei dizer por que a memória é assim, porque de repente algo soterrado lá no meio das sinapses – existem tantas - aflora, como um naufrago que tivesse adormecido sob as águas e despertasse com lembranças de coisas que simplesmente já não importam.
Então me lembro, sem mais, sem menos, sem aviso prévio, de mim menino, dando pernas naquele caminho de morro, estrada de terra, primeiro passando medroso ao lado do portão do cemitério, depois seguindo adiante como quem vai para as nuvens, talvez para o céu. Até alcançar a última curva, suando sob o sol, já vendo o casarão que um homem de nome estranho construiu no passado, a casa onde mora um casal e o filho, ela aparentada de minha família.
Pois ela é uma loira atraente, casada com certo Zé cuja face surge agora aqui bem à minha frente, ele tão direito, tão tenaz, zeloso na educação do filho que o chamava de pai, mas que não era filho dele, mas isso já é outra história. Ela, a loira, que me recebe à porta com aquele jeito brejeiro dela e eu entrando na casa e achando tudo muito bonito, a blusa dela amarela -revejo agora quão intenso e belo era o amarelo sobre a pele dela - e o filho que corre para brincar comigo, sempre sob os olhos vigilantes do pai.
Depois as cenas no quintal que na verdade é um cercado de arame, além do qual outro cercado enorme se abre com vacas leiteiras de um branco tão uniforme que todas parecem ser uma só. São as vacas do Zé das quais ele ordenha o leite que vende na cidadezinha bem abaixo do morro.
Estamos brincando, eu e o filho, então aparece aquele outro homem saído não sei de onde e, também, não sei como percebo entre ele e a loira, a mulher do Zé, a troca de um olhar, um só olhar que decide e ordena tudo. Depois é ela indo em direção ao mato enquanto o Zé cuida das vacas e o homem, pouco depois, seguindo na mesma direção enquanto o Zé ou percebe ou finge que não percebe que a mulher dele está com outro, lá no mato, escondida e nua, a certa distância de todos nós.
Não me lembro da loira voltando, só me resta o rosto triste do Zé que só agora, nesta noite, compreendo. Mas isso tudo já não importa e fico aqui me lembrando do Zé perto das vacas, da mulher dele no mato com aquele sujeito saído não sei de onde, de algo que na ocasião não entendi direito, mas que já não importa mesmo porque todas aquelas pessoas estão mortas e eu continuo aqui, sobrevivendo, lembrando-me delas.
Atrás da janela
Você olha pela janela e vê outras janelas, alinhadas, arrumadinhas de outros prédios. Passa pela sua cabeça que atrás de cada janela existem pessoas, famílias com seus gozos, problemas etc. Como será a mulher que mora atrás da janela no 7º andar do prédio defronte? Moça? Velha? Solteira, casada, separada? Você se pergunta sobre isso e então se dá conta de que talvez atrás daquela janela exista alguém pensando em quem está atrás da janela do seu apartamento, enfim cismando sobre quem poderia, afinal, ser você.
E se você tivesse que dizer a ela quem você é o que escolheria para apresentar-se? Será que ela estaria se perguntado se atrás da janela do 7º andar do prédio em frente ao dela – justamente a sua – mora um homem ou uma mulher? Moço(a) ou velho(a)? Solteiro (a) casado (a)? Ou talvez ela - mas, quem disse que se trata de uma mulher? - não esteja interessada em saber de nada porque passa por fase em que tudo está de ponta cabeça e a vida perdeu o sentido?
Mas, hora da verdade. Não finja porque você sabe muito bem que o morador atrás da janela do 7º defronte é uma moça que todo dia chega às 7 horas da noite. Não só e moça como bonita e abre a janela, achando, talvez, que olhos intrusos não estão ligados nela. Mas, você está e espera, todo dia, pela chegada dela, sabendo que ela vai se trocar, vestir-se com algo mais confortável, dessas roupas que usamos para ficar em casa.
Você espera, ansioso, pela chegada dela. Por isso, sempre dá um jeito de trancar-se no seu quarto para que ninguém o surpreenda com de olhos pregados na vizinha do prédio da frente.
De certo modo essa rotina de voyeurismo conforta o seu espírito. Pena que tudo se passe apenas na sua cabeça porque, desde que aconteceu o acidente, você não sinta nada da barriga para baixo. É uma dureza essa vida de deficiente físico, sentado o dia todo no carrinho. Mas, até que você já está se acostumando, ainda mais agora que já se aproxima a hora da chegada da moça e o seu coração está aos pulos dentro do peito.
Dia de caça
- Não sei se aquele a quem chamavam Geraldo era certo da bola. A mim me parece que não. Esses tempos todo tenho refletido sobre o caso e sempre chego à mesma conclusão: ele não era certo da bola, não.
A velha diz isso e pega o fósforo para acender o cigarro. No rosto enrugado destacam-se dois olhinhos vívidos e inteligentes. Ela me olha com a cautela necessária diante de estranhos, embora eu tenha vindo recomendado. Talvez simpatize comigo ou simplesmente veja em mim alguém que seja a ela útil e confiável. Demora-se a acender o cigarro. Tenho vontade de puxar conversa, perguntar sobre o número de cigarros que ela fuma por dia, mas me calo. Depois de algum tempo, a velha traga profundamente e solta uma enorme mancha de fumaça que esconde parcialmente o seu rosto. Depois continua:
- Aquele Geraldo era de fato um homem estranho. Alto e loiro, não chegava a ser bonito, mas de todo modo atraente. O senhor veja que para alguém assim, fogoso e na força do homem, uma mulher se faz necessária, sempre. E não consta que até os trinta anos de idade ele tivesse parte com nenhuma mulher. Veja que isso ele próprio proclamava, dizendo que reservava o melhor de si para quando encontrasse aquela a quem dedicaria todo o seu amor.
- Encontrou?
- Ah, sim, demorou, mas encontrou. Era uma bela moça, mais nova do que ele, que veio passar aqui umas férias. Apaixonaram-se e ele reformou a casa do sítio onde morava para que vivessem ali após o casamento. Não nego que formavam um belo casal, muito feliz. Foi assim até que se casaram e partiram para a lua-de-mel. Que, ao que se sabe, não chegou a acontecer.
- Como assim?
- Pois, dois dias depois do casamento ele reapareceu aqui sozinho. Embora a curiosidade geral sobre o fato, ninguém ousou pergunta a ele nada. A mulher com quem ele tinha se casado nunca mais se viu. Ele se tornou taciturno, quieto demais e triste. Mais tarde se soube que ele deixou a mulher por descobrir que ela não era virgem, isso na noite de núpcias. A virgindade fazia parte do código dele, sabe? Uma coisa assim pode não importar a muita gente, mas era regra para ele que havia se conservado para o dia em que se casasse.
A velha apagou o cigarro no cinzeiro, tossiu e me encarou como se olhasse através de mim e recontasse a si mesma uma história que não saia da sua cabeça.
- Acho que foi um ano depois disso que começou a amizade do Geraldo com o meu filho. Em pouco tempo tornaram-se inseparáveis. O Geraldo vinha muito aqui em casa e parecia renovado, alegre como nunca fora. Meu filho, que mais ou menos regulava com a idade dele, prezava-o muito. E assim foi durante muito tempo, até que aconteceu o que o senhor certamente já sabe.
- Sim?
- Na verdade nunca se soube como as coisas se passaram. Certo dia saíram os dois, como de vez em quando faziam, para caçar. Foi lá que o Geraldo matou o meu filho e se suicidou.
Após dizer isso, a velha se cala. O rosto enrugado se contorce num espasmo de dor. Obviamente, ela não aceita as versões que correm sobre o fato e busca explicação razoável para a perda do filho. De minha parte dou-me por satisfeito. Resta-me fazer algumas anotações sobre o caso e nada mais.
Não há mais o que dizer. Despeço-me da velha e saio em direção ao portão. É uma manhã clara e de céu muito azul. No fundo do quintal um canário canta e o som me parece o de uma marcha fúnebre. Quando chego ao portão, ouço a voz da velha:
- Delegado, o senhor vai descobrir o que de fato aconteceu e me dar uma explicação?
Não sei bem o que responder. Geraldo e o filho dela estão mortos, o caso da tragédia ocorrida num dia de caça está encerrado.