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Enterrado vivo
Leio sobre um homem que compareceu ao próprio velório em cidade do interior da Bahia. A tantas os parentes velavam o corpo e eis que surgiu o morto, bem vivo, na sala fúnebre. Familiares haviam reconhecido o corpo, mas enganaram-se. Não era ele. Desfeita a confusão o morto foi identificado e entregue à sua verdadeira família.
Tempos atrás assisti a um filme que de vez em quando se repete na TV paga. O título do filme esclarece magnificamente a trama que se vê na tela: “Enterrado Vivo”. De fato o espectador convive por mais de uma hora com um sujeito encarcerado dentro de um caixão tentando, desesperadamente, conseguir socorro através de contatos telefônicos. Grande parte do tempo ele está no escuro o que representa grande economia de cenários. O filme é inquietante dada a situação em que se encontra a personagem, mas cansativo porque o problema não se resolve. O espectador fica preso até o final apenas por querer saber no que vai dar aquilo tudo. O homem enterrado vivo safa-se ou não? Quem quiser saber tem que assistir ao filme.
“Enterro Prematuro” é o título de um fantástico conto de Edgar Allan Poe. Nesse conto toda atmosfera de terror que envolve a situação de alguém encarcerado num caixão e ainda com vida é expressa em voltagem máxima. Poe cita casos de esqueletos encontrados em cemitérios em posição diferente das que foram enterrados e, se bem me lembro, evoca a catalepsia que consiste num estado de paralisia que é confundido com a morte. Não sei dizer se hoje em dia, mas no passado havia quem se preocupasse com estados de catalepsia, temendo ser enterrado vivo. Entre nós muitos são os casos narrados de pessoas que se suspeita tenham sido enterradas ainda com vida. Anos atrás se divulgou que um famoso ator de teatro, precocemente morto, teria sido enterrado ainda vivo, fato que, segundo se afirma, foi comprovado tempos depois quando houve necessidade de abrirem o caixão onde estavam os seus restos.
Não havendo certeza sobre enterros de pessoas vivas o melhor é ficar com a história da volta de um sujeito que afinal não foi. Consta que ele vive longe da família e surpreendeu-se ao saber que era tão estimado pelos parentes. Trata-se de final edificante para acontecimento que não deixa de ser estranho.
Os meus medos
Aquele tio Nenê era na verdade tio de meu pai, irmão de minha avó. Sujeito sempre muito magro e falante descendia de italianos e viera do Sul de Minas, trajeto feito a cavalo, bom cavaleiro que ele era. Depois dele veio sua família: a mulher e dois filhos, que o terceiro, mais velho, morava no Rio.
De todo modo esses meus parentes abancaram-se numa casa próxima à nossa, na mesma e única rua do então vilarejo, hoje cidade com turistas e os comemorativos que fazem parte das hordas de invasores que andam por aí. Pois esse Nenê trouxe as mais terríveis histórias fantásticas as quais tinha ele muito prazer em contar. É bom lembrar que, na época, a energia elétrica da região era fornecida pela Companhia Sul Mineira de Eletricidade que, a bem da verdade, não funcionava lá grande coisa. De modo que se dispunha de iluminação fraca e muito propícia à criação de ambientes tétricos para um menino de cerca de dez anos que eu era então. Afinal e como todo mundo sabe nas sombras escondem-se os seres sobrenaturais.
O caso é que à noite, na casa do Nenê se juntavam uns tantos ao redor do fogo – fazia frio, muito frio – e ali a tradição oral rolava solta com cada um contando os seus casos escabrosos, boa parte deles envolvendo mitos conhecidos como lobisomens, capetas, sacis e outros seres imaginários que ali eram apresentados como reais e sempre ameaçadores. As melhores histórias eram sempre as do Nenê, ele proprietário da arte natural de narrar com algum enredo e recursos de gerar expectativas.
Mas, os meus medos não nasciam tanto dessas histórias que eu adorava ouvir por pura teimosia de vez que, depois, voltava a casa pela rua escura e temia ser assaltado por um desses seres estranhos. Meu maior medo sempre foi de almas de outro mundo, essas sim aterrorizantes. Minha infância foi povoada pela narrativa de fatos sobrenaturais de modo que, a partir daí, o sobrenatural passou a fazer parte da minha vida e jamais o deixei. Para isso muito contribuíram as minhas precoces leituras dos contos de Edgar Allan Poe que legaram personagens que me acompanham vida afora. Foi através de Poe que adquiri, em menino, grande temor da catalepsia, medo esse embasado no conto “Enterrado Vivo”. Quando temor me causou, anos a fio, o conto chamado “O Estranho Caso do Sr. Valdemar”, história de um homem doente que foi hipnotizado antes de morrer e ficou preso ao hipnotizador que não o deixava partir. E que horror puro e profundo naquele “Retrato Oval” que me infundiu o receio dos quadros com retratos de pessoas mortas que, naqueles idos, tinha-se por hábito pendurar nas paredes das casas.
Assim, iniciado na literatura de horror e ouvinte de relatos fantásticos desenvolvi o medo dos lugares escuros, dos corredores em cujo fim alguém do outro mundo poderia esperar por mim, das portas entreabertas, dos quartos onde dormiram pessoas já mortas, dos cemitérios onde almas vagavam madrugadas afora à espera de um momento para saírem dali e assombrar os incautos do mundo.
Já não tenho medo dos mortos, nem as assombrações me impressionam. Às vezes, quando acordo durante a madrugada e ando pela minha casa às escuras me pergunto se alguém a quem conheci e morreu não poderia de repente surgir à minha frente. Em algumas dessas ocasiões não é impossível experimentar a sensação epidérmica de alguma presença intrusa, fato evidentemente provocado por autossugestão. Ademais, confesso que não sei qual seria a minha reação caso a antiga casa de minha avó se erguesse das cinzas e eu tivesse que dormir, agora, naquela enorme e soturna sala que tanto medo me dava na infância. Quantos corpos de parentes mortos foram ali velados num tempo em que não eram muito habituais os velórios em necrotérios, isso em cidades do interior.
Por fim, destaco a importância do medo em minha formação. O contato com o sobrenatural contribuiu para a noção de relatividade da vida, a impressão de que existe algo de falso na realidade e, principalmente, para a constatação de que a incerteza é fundamental para que nos mantenhamos vivos, espécie de pacto com o imponderável que torna mais palpável o enigma da vida.