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Anos depois
Gostava de filmes de terror. Matando aulas do ginásio, assistia as sessões da tarde no cinema da cidade. Usava-se, então, a fardinha cáqui como uniforme escolar. Mas, havia um problema: ordem do juiz proibia a entrada de estudantes nas sessões da tarde. O jeito era trocar de roupa no banheiro da estação. Depois deixava-se o uniforme no bar da estação cujo dono era bom amigo.
Havia outro problema: a censura dos filmes. Menores de 14, por vezes 18 anos de idade, não podiam assistir a certos filmes. Aí entrava em jogo a camaradagem do porteiro. Obviamente, os documentos eram adulterados, mas tão mal feitas as rasuras que bastava bater os olhos para perceber. O porteiro, um gordote bonachão, fazia vistas grossas e ria. Vez ou outra perguntava pela idade. Os meninos se assustavam e custavam a se lembrar da idade escrita no papel. O porteiro ria. Os meninos éramos eu e o Gilson, também mestre em faltar às aulas.
São passados sessenta anos desde aquelas tardes no cinema. O Gilson já morreu há uns dez anos. Fumava muito e não se aguentou durante crise cardíaca inesperada. Toda vez que eu encontrava o Gilson falávamos sobre as sessões da tarde. Gostávamos dos filmes de vampiros. Drácula com Christopher Lee era simplesmente demais. O branco-e-preto na tela acentuava o clima de horror que envolvia o pequeno público presente.
Os vampiros dos filmes antigos eram especialistas em toda sorte de maldades. Viviam em castelos escuros para os quais atraiam donzelas por cujo sangue ansiavam. Seres sinistros os vampiros metiam os dentes nos pescoços de toda gente e sugavam. Mas, tinham suas fraquezas: passavam as horas de luz do dia dentro de caixões porque a luz os destruiria; crucifixos e alho eram a eles insuportáveis; para matá-los o caçador de vampiros deveria fincar em seus corações estacas de madeira.
O medo é sentimento negativo, mas que pode ter seus atrativos. Eu morria de medo de vampiros, mas a existência deles provocava-me algum frenesi. Essa sensação dúbia, envolvendo horror e prazer faz parte da natureza de muita gente e talvez explique a estranha atração pelas histórias de terror. Basta ver, hoje em dia, a enorme quantidade de filmes de terror produzidos fato que demostra o grande número de aficionados do gênero.
Sessenta nos mais tarde suponho ter perdido a tal natureza que balança entre o medo e o prazer de senti-lo. Aconteceu-me não mais gostar de filmes de terror. Aliás, toda história que envolve situações trágicas causa-me repulsa. Mas, por que terá o aluno do ginásio mudado tanto ao longo dos anos?
Penso que ao tempo da minha puberdade o mundo em que vivíamos era bem menos intenso e perigoso e isso condicionava nossas reações e modo de ser. Havia, sim, a maldade que ela é apêndice inseparável da natureza humana. Crimes hediondos ocorriam, assim como hoje. Mas, reinava a distância entre o homem e os acontecimentos que, de modo algum, chegavam a ele com a velocidade de hoje. Se um bandido esfaqueia um policial em Xangai, ficamos sabendo disso cinco minutos depois através dos telejornais e internet tão pressurosos na caça permanente de notícias. Assim, o mundo de hoje tem se tornado um tipo de flagelo que nos açoita dia e noite com notícias ruins sobre ocorrência que não param de acontecer.
Talvez em função disso, dessa exposição constante à desgraça cotidiana, o medo genuíno provocado pelas obras de ficção tenha se esgarçado no íntimo de muita gente, como no meu caso.
Dias trás reli um dos contos de Poe – “A queda da casa de Usher”. Em verdade não precisaria relê-lo dado que me lembrava da trama e seu desfecho. Mas, havia o prazer da escrita de Poe, o modo incrível de tratar o enredo de um caso horrível. Terminei a leitura e fechei o livro sem ânimo para iniciar outro conto.
Eu já não era mais o mesmo.
Cuidado com vampiros
Confesso que não faz muito tempo que deixei de ter medo de coisas ditas sobrenaturais. Durante muitos e muitos anos, principalmente durante a minha infância, tive medo dos mortos, de que fantasmas aparecessem e coisas ligadas a esse gênero.
Mas, o medo tem duas faces, uma delas a de repulsa e outra a de atração. Quando o assunto é o sobrenatural pode acontecer que aquilo que tememos paradoxalmente nos atraia. Creio que por isso sempre fui um aficionado das histórias de terror, nisso se incluindo a literatura e os filmes do gênero. Li, quando adolescente, de cabo a rabo os contos de Edgard Allan Poe e vida afora assisti a filmes estrelados por Bela Lugosi, Christopher Lee, Peter Cushing, Vincent Price, Boris Karloff e tantos outros atores. Morria de medo, mas adorava os filmes sobre vampiros. E a coisa não parava aí: num mundo que não tinha as distrações tecnológicas de que dispomos hoje e a televisão estava em formação as reuniões e conversas em família eram rotina, muito frequentes. Pois nessas intermináveis conversas sempre havia alguém para contar um caso estranho, algo sobrenatural que infundia nos presentes, senão medo, pelo menos apreensão.
Bem, de lá pra cá o mundo mudou bastante e imagino como teria sido se às pessoas daquela época alguém falasse sobre internet, TV a cabo e telefones celulares, isso para ficar no mínimo. Certamente elas ririam dessas invencionices, pura ficção científica como hoje nos parece, por exemplo, a possibilidade de viajarmos rapidamente para fora do sistema solar.
Entretanto, se o mundo mudou, a verdade é que as pessoas podem ter-se adaptado aos novos modos de ser, mas, substancialmente, continuam como sempre foram, inquietas, talvez inseguras, gerindo suas vidas dentro do contexto que as cerca. Permanecem, como sempre, as velhas perguntas sobre o destino da humanidade, o sentido da vida e por que não, sobre o que de fato existe após a morte.
É nesse ponto que se apoia a sempre crescente literatura e filmografia sobre o terror. O fato é que os vampiros estão mais vivos do que nunca. Verdade que os vampiros atuais já não estão presos às limitações a eles impostas no passado. Hoje os vampiros podem andar por aí em plena luz do dia e até existem aqueles que se privam do sangue humano. Os vampiros dos livros e filmes como “Crepúsculo” são assim. Trata-se de seres que lutam contra sua sede de sangue humano e se comportam muito bem socialmente, inclusive lutando contra outros vampiros que sugam pessoas.
Enfim, muda o cenário, mas as atrações principais são as mesmas. Vampiros e monstros continuam nas telas dos cinemas e fazem sucesso em públicos de diferentes idades. Livros sobre vampiros e lobisomens apaixonados são vendidos aos milhares em todo o mundo. O que nos leva a constatar que de fato os homens continuam os mesmos embora o mundo em que vivem tão velozmente se transforme.
Quando menino eu lia histórias sobre vampiros e temia muito que viessem, durante a madrugada, para cravar seus caninos em meu pescoço. Por isso, tinha sempre um dente de alho na janela do meu quarto e um crucifixo perto da cama. Os vampiros de então eram afastados pelo alho, não suportavam o contato com a cruz e morriam se expostos à água corrente ou a luz do sol. Os de hoje são diferentes, mas não creio que devam ser desprezados porque, queira-se ou não, em sua gênese os vampiros são sempre seres do mal. Portanto, caro leitor, cuidado com os vampiros.