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Peruntas e Respostas
Num curso superior alunos de uma turma preparavam-se para a prova final de uma matéria considerada difícil. Aliás, não só difícil como ministrada por professor competente e exigente que não dava mole na aprovação de seus alunos. De modo que a semana em que se realizaria a prova começara tensa com muita gente precisando de nota e madrugas insones de estudo.
Entretanto, eis que aconteceu um fato inesperado: um dos alunos entrou na sala dos professores e encontrou uma cópia da prova sobre a mesa. Não havia ninguém na sala, nenhuma testemunha e o rapaz sucumbiu à tentação: pegou a prova, levou-a a um xérox e apropriou-se da cópia.
O passo seguinte foi uma reunião a portas fechadas com todos os colegas de classe. Nessa reunião decidiu-se que o melhor meio seria cada um acertar o número de questões que daria ao interessado a nota necessária para a sua aprovação. Depois disso, feito o gabarito da prova e considerando-se as necessidades pessoais a reunião encerrou-se com a concordância de todos sobre o combinado: fulano acertaria tantas, sicrano outras tantas e assim por diante.
No dia da prova o professor encontrou a turma tranquila. A prova era mesmo a esperada de modo que não foi difícil a cada aluno responder às perguntas propostas sob a forma de testes. Terminada a prova a turma se reuniu para uma cervejada: tinham se livrado de um enorme obstáculo.
Na semana seguinte eis que veio o professor para a aula de sua matéria, trazendo uma pilha de folhas. Receberam-no sorridentes os alunos porque agora receberiam as provas. Mas, não foi bem isso que aconteceu porque o professor entregou a todos nova prova. Diante de tão inesperado acontecimento não houve nem mesmo condições para algum tipo de protesto. Obviamente, o professor descobrira a farsa. Teria ele propositalmente deixado uma cópia da prova na sala dos professores para se divertir à custa de seus alunos?
O assunto ficou pendente até o ano seguinte quando, enfim, os alunos souberam a razão pela qual a prova que tinham feito fora anulada. Aconteceu que a cada um ocorreu a ideia de que se os colegas acertariam o número combinado de questões que mal faria a alguns acertarem todas? Por que não? Foi assim que toda a classe acertou todas as questões e a prova, obviamente, foi anulada.
Essa história me veio à memória agora que membros do alto escalão da Petrobrás e governo são acusados de terem combinado perguntas e respostas para as respectivas participações na CPI realizada no Congresso Nacional sobre a compra da refinaria de Pasadena, nos EUA. Diante de um inexplicável mau negócio realizado com o dinheiro público o jeito encontrado foi o acerto de depoimentos que livrassem a cara dos envolvidos. Entretanto, de repente surge uma gravação na qual o chefe do escritório da Petrobrás revela a armação. O caso estarrece a opinião. Defensores do governo dizem que esse tipo de coisa sempre aconteceu na história do país. A oposição vale-se do episódio para exigir punição dos envolvidos.
O diabo é que os envolvidos na farsa da CPI foram surpreendidos com as mãos na massa. Exatamente como os tais alunos cuja esperteza deu no que deu.
Jornalismo de denúncia
Tornou-se rotina no jornalismo brasileiro: não se passam mais que poucas semanas - às vezes a coisa é quase ininterrupta – para que seja noticiado um escândalo envolvendo personalidades públicas em atividade no governo ou no Congresso. Há poucos dias ressurgiu o caso dos “Aloprados”, dossiê que teria sido encomendado contra José Serra; na sequência está em pauta o Ministério dos Transportes suspeito de elevação de verbas de onze obras. Isso para ficar no mais recente. Um pouco mais atrás está o caso de Erenice Guerra, o mensalão do DEM, aquele outro mensalão e por ai vai.
De todo modo fica claro que os últimos anos foram pródigos em denúncias de negociatas, coincidindo com o período de governos de pessoas que, no passado, proclamavam-se campeões da honestidade. Esses fatos suscitam aos brasileiros perguntas difíceis de responder. Afinal o que acontece? Teria se tornado o jornalismo de denúncia um derivado do sensacionalismo que, afinal, atrai leitores e vende muito? Não haveria algum exagero persecutório na busca incessante de desmascaramento de pessoas e mesmo órgãos do governo? Teria o país sido entregue a uma mal parida e formidável geração de corruptos que praticam a corrupção compulsivamente como se fosse ela traço inalienável do caráter dos políticos? Estaria em vigor legislação de tal modo leniente, constituindo-se em verdadeiro convite às transgressões? Teríamos atingido um ponto irreversível no qual o espaço público estaria aberto a toda sorte de maquiavelismos de que é capaz o animal político? Afinal, qual a raiz de comportamentos como o de prefeitos acusados de corrupção, ministros denunciados de falcatruas, presidentes acomodando-se ao vai-e-vem de necessidades partidárias, desvios de dinheiro público, lodo de negociatas, favorecimentos etc?
Parodiando a letra da música, alguma coisa acontece no coração do Brasil que resiste bravamente à corrupção. Um novo tipo homem parece habitar as instâncias superiores nas quais não hesita em colocar interesses pessoais, ainda que escusos, à frente dos interesses do Estado. O manto do crescimento do país confere a ilusão de destino glorioso, mas acobertando situações absurdas que, sob o ritmo frenético de declarações ufanistas, são encaradas como normais dentro de um processo de amadurecimento.
Enquanto isso o inverno segue. Temperaturas baixas no sul do país flagelam pobres. Um casal e seus sete filhos moram numa casa de tábuas e dispõe de apenas dois cobertores. É aprovado um pacote de benefícios fiscais para a construção de um estádio para o Corinthians em Itaquera. Publica-se que a União pagou R$ 14 milhões por internações de mortos. O BNDES está para patrocinar com a quantia de R$ 4 bilhões um acordo entre o Pão de Açúcar e o Carrefour. E esperamos, sem ansiedade, as próximas denúncias envolvendo órgãos e personalidades públicas. Exagero? Tudo certo? Tudo errado?
Há muitos invernos não fazia tanto frio no sul do país.
Só para lembrar
Renan Calheiros no Conselho de Ética, cúpula petista favorável ao retorno de Delubio Soares ao partido, políticos mudando de sigla a meio caminho de seus mandatos. A política brasileira continua a de sempre e não invejo os comentaristas políticos que diariamente esgrimam nos meios de comunicação, tentando explicar o inexplicável.
Enquanto isso a oposição se esfacela, tropeçando em seus próprios calcanhares. Nenhuma novidade no front, nenhuma proposta nova, tudo como dantes no quartel de Abrantes. As duas frases anteriores espelham a política brasileira atual: um achado de lugares-comuns dos quais se locupleta um público cada vez mais desinteressado.
Existem meias-verdades que podem tornar-se úteis, quem sabe até se converterem em verdades completas. A coisa se passa como naquele poema do Drummond que fala sobre uma porta pela qual só pode passar metade da verdade, nunca uma verdade inteira. No final das contas as duas meias podem depois se juntar e não se sabe bem no que vai dar. A ideia do poema se aplica bem à política: estamos sempre sendo informados de parte de um fato que passa a ser pelo menos metade da verdade sobre ele. A outra metade vem mais tarde, em geral com aval de gente importante. Nesse sentido o caso do Delúbio é exemplar. A primeira meia-verdade era a de que ele estava sendo injustiçado. Assim, com o dedo da Justiça apontado para ele, mas defendido até pelo presidente, ele passou pela porta. A segunda meia-verdade é essa de agora quando líderes do PT decidem colocar fim ao exílio do antigo tesoureiro. Na reunião do partido a acontecer no próximo final da semana Delúbio será reincorporado e a segunda metade atravessará a porta. O que não se sabe é no que vai dar quando as duas meias se juntarem e a impunidade brilhar na escuridão.
Em todo caso não custa lembrar: houve um tempo em que fomos bombardeados por notícias sobre corrupção, políticos renunciaram para não serem cassados e tesoureiros foram afastados de seus cargos. Monumentais acusações fizeram tremer a República e botaram no chinelo aquela outra história de corrupção, a do PC Farias, que derrubou um presidente. Mas, agora a tempestade passou, os que se molharam trocaram de roupa e estão de volta. Caras limpas, como se nada houvera acontecido, página virada, sorrisos largos como convém aos ressuscitados.
As contas que pagamos
Muita gente não se dá ao trabalho de vincular os impostos que paga ao dinheiro público empregado de mais variadas formas. Quando lemos, por exemplo, que o governo anunciou empréstimo de quase 4 bilhões, via BNDES, à empresa petroleira estatal venezuelana PDVSA, com vantagem de que não gozam as empresas brasileiras, dificilmente associamos esse ato a um patrimônio público. O mesmo acontece quando estão em pauta enormes desvios de verbas públicas em atos de corrupção que levam anos para serem apurados, ficando impunes os envolvidos. Exemplo maior é o do mensalão que devagar e sempre vai sendo negado, a tal ponto que elementos-chave do processo de corrupção estão sendo novamente abrigados em seus partidos de origem. Nada como um povo ordeiro e portador de boa vontade para, senão perdoar, dar por vencidas as faturas morais e pecuniárias não saldadas pelos bandidos de plantão.
Agora estão em pauta os salários pagos a pessoas que ocuparam o cargo de govenador nos estados. Revela-se que muitas delas exerceram a governança transitoriamente, muitas vezes por não mais que trinta dias. Apesar desse fato, todas essas pessoas passaram a ter direito a pensões vitalícias da ordem de 15 mil reais ao mês. Existe muita gente nessa condição, mamando nas tetas do Estado, beneficiando-se com o dinheiro arrecadado pelo governo. Temos, pois, enquanto cidadãos contribuintes, parte nesse latifúndio, sendo o meu e o seu rico dinheirinho utilizado para pagá-los.
Pode parecer bobagem dizer isso, afinal quanto do meu dinheiro está envolvido numa transação dessa natureza? Mas, não é não. A justa indignação dos cidadãos diante do descalabro que vem sendo noticiado pela imprensa prende-se justamente ao fato de se trata de dinheiro público e, mais que isso, as benesses absurdas que alguns recebem não são extensivas à população - o que seria também outro absurdo.
Claro que, em contrapartida, existe a questão de direitos adquiridos segundo a legislação vigente. Também não é desprezível o fato de que alguns homens públicos ocupam cargos durante muitos anos em detrimento de seus interesses pessoais. Mas, diga-se tudo e ainda será pouco para encobrir o descalabro das pensões vitalícias a ex-governadores.
Isso tudo me faz pensar nos primeiros mandatários da República brasileira cuja probidade estava acima de tudo. O Marechal Floriano Peixoto, segundo presidente da República governou o país com mão de ferro num período turbulento, marcado por revoltas. Jamais morou em palácio e fazia uso do transporte público para o trajeto entre sua casa e a sede do governo. Quando morreu estava pobre e suas filhas precisaram da ajuda de amigos da família para sobreviver. O presidente Campos Salles recebeu o país praticamente falido e fez um duro governo de contenção de gastos, sendo muito criticado por isso. Entretanto, Campos Salles logrou sanear as finanças de modo que seu sucessor, Rodrigues Alves, pode fazer um bom governo no qual a cidade do Rio de Janeiro, então capital do país, foi modernizada.
Quando Campos Salles saiu do governo estava pobre. Ofereceram a ele serviço em banco, mas não pode aceitar porque entendia que, recém-saído do governo, era detentor de informações privilegiadas. Algum tempo depois, veio visitá-lo, em sua casa em São Paulo, o ex-presidente da Argentina, Julio Roca. Aconteceu a Roca penalizar-se com a condição em que vivia o amigo, uma casa pequena e muito simples, ele que há tão pouco tempo fora chefe de estado da nação brasileira.
Mas, agora, a época e os homens são outros.
Resistindo às intempéries
Uma velha senhora, com mais de 100 anos de idade, dotada de invejável poder de resistência. Sólida, altiva, sempre em pé, ela avança contra rajadas de ventos cortantes, tsunamis ou o que vier ao seu encontro. Às vezes chora, mas baixinho: não quer que a vejam temerosa ou simplesmente chocada pelo modo como a tratam, pelo desrespeito a ela que tanto dá de si aos outros.
Essa senhora vetusta já viveu bastante para conhecer os homens e sua incrível capacidade de torcer tudo em acordo com os seus interesses. Mais que centenária ela conviveu com os mais variados tipos de gente e, quando se desesperou, pode conformar-se por saber que o tempo passa e com ele as pessoas que, iludidas com o poder, terminam por desaparecer. Talvez por isso ela goste muito de visitar palácios e museus para olhar faces às quais conheceu de perto e que, agora, não passam de um retrato esquecido dentro de uma moldura. A historia dos homens que tiveram alguma importância termina pendurada em paredes, esse o pensamento que mais conforta à velha senhora quando se defronta com a imagem de alguém que a desprezou ou falsamente agiu em nome dela.
Quem é a velha senhora, de quem estamos falando, afinal? Ela é conhecida por aí como República. Velha e altaneira, respeitável ao limite, a República talvez esteja cansada de singrar em mares cobertos de lama. Quer ela águas límpidas e honestas, muito sol e verde, alegria e acolhimento aos que dela dependem. Entretanto, isso parece impossível no grande país de glórias sempre inconclusas no qual o Estado tem sido meio útil para realizações pessoais, quando não mesquinhas.
Escrevo para avisar que a República do grande país dos brasileiros está doente. Tentei visitá-la hoje de manhã, mas ela não pode me receber. A equipe médica que cuida da doente publicou um boletim informando que o mal é grave porque afeta o coração, naquela parte onde se instala o gabinete da Casa Civil. Atos indevidos, favorecimentos, tramoias e corrupção, fizeram mal à corrente sanguínea da doente, ela que já vinha abalada por problemas no setor de Receita onde ocorreram quebras de sigilo etc.
Mas, que não nos desesperemos. O boletim médico lembra-nos que a velha senhora é forte e resistirá, como já o fez muitas vezes ao longo de sua vida centenária. A favor dela conta o fato de ser maior que os vírus que a contaminam, daí a cura ser nada mais que uma questão de tempo. Ressaltam, ainda, os médicos que conta a favor da velha senhora o dom de ser muito paciente: ela sabe que, não muito tempo adiante, alguns dos que hoje não a respeitam como deveriam nada mais serão que rostos dentro de molduras. Sabe mais: conhece que a maioria nem ao mesmo será enquadrada, a eles sendo reservado o esquecimento, condição vital para exemplo às novas gerações.
A prisão de Arruda
José Roberto Arruda, governador do Distrito Federal, está preso. Não o prenderam pelos atos de corrupção de que é acusado: seu crime é tentativa de suborno de pessoa apta a testemunhar naquilo ficou conhecido como “mensalão do DEM”.
O fato é inédito. Historiadores buscam nas páginas da História caso em que um governador em exercício tenha sido recolhido à prisão. Mas Arruda conseguiu. De tempos para cá sua figura tornou-se intolerável pela sua cara de pau. Flagrado recebendo dinheiro de um acessor de seu governo veio ele a público explicar que se tratava de verba para a compra de panetones para pessoas carentes. Maior escárnio impossível. O Brasil inteiro viu as imagens de Arruda recebendo o dinheiro. O Brasil inteiro também viu políticos ligados a ele recebendo dinheiro que foi colocado em bolsas, nos bolsos e até dentro de meias.
Mas, o que se seguiu? Ora, um bem armado esquema de blindagem do governador que, para deixar o cargo, precisaria passar por um processo de impeachment. Por outro lado, as investigações sobre lavagem de dinheiro e corrupção demoram, o mesmo acontecendo com os processos, travados que são eles pelas inúmeras possibilidades de recursos impetrados à Justiça.
Vai daí que Arruda podia se dar ao desfrute de posar como inocente e, mais que isso, como injustiçado e perseguido. Escárnio, puro escárnio, no qual as regras legais do jogo forneciam ao governador meios bastante seguros de chegar ao fim de seu mandato.
O que José Roberto Arruda fez pelo Brasil foi levar a graus extremos a desfaçatez, arranhando de modo irreversível a já tão abalada classe política brasileira. Arruda expôs publicamente o emaranhado de artifícios de proteção e camuflagem de que dispõem os homens enquanto no poder. Ele mostrou sem qualquer crise pessoal e a céu aberto a força de manipulação de que podem se servir homens públicos mal intencionados.
O que Arruda fez de maior foi ilustrar o processo de corrupção, o modo de geri-lo e as formas de garantir a impunidade. Talvez por isso sua prisão tenha o sabor de revanche, de justiça enfim realizada, ainda que, depois do carnaval, um habeas corpus possa restituí-lo à governança.
Agiu bem o ministro do Supremo Tribunal Federal ao deixar Arruda preso nas dependências da Polícia Federal. Era o mínimo que a população esperava. A imprensa escrita e falada trata do assunto em tom de alívio, retratando o sentimento geral que domina o país.
Arruda está acabado, pego por um detalhe e não pelo principal de que é acusado. Mas, fincou uma estaca no peito da República. Se por um lado sua prisão nos garante a inexistência de cidadãos acima de qualquer suspeita, por outro nos revela quão frágeis são os meios de que se dispõe para punir aqueles que se locupletam com a prática da corrupção.
Depois da festança
Fraudes, corrupção, quando os homens públicos do país vão tomar jeito?
Você viu o desfile da turma do Distrito Federal ontem na televisão? Aquilo não foi perfeito, foi mais que perfeito. Os acusados de corrupção vieram a público para justificar-se. E não se deram por achados: apresentaram razões mais que estapafúrdias.
Foi um show de caras-de-pau, com direito a óleo de peroba, lustra-móveis e tudo o que dê brilho à madeira bem tratada das faces que se apresentaram sem nenhum rubor.
Tudo limpo, perfeito, honesto e mais: o que víamos eram pessoas flagradas por gente mal intencionada, produzindo cenas deliberadamente incriminatórias. Lembra-se daquele dinheiro limpo colocado dentro das meias? Pois ele teve, finalmente, uma explicação: o cidadão que o escondeu nas suas vestes agiu desse modo por não fazer uso de bolsa e, principalmente, visando a sua segurança pessoal.
Assim, tudo está explicado, tudo justificado. Nenhum mal-estar e quanto à vergonha, deixa prá lá.
Não sei o que estarrece mais: os vídeos dos atos ilícitos ou as imagens dos envolvidos explicando os deslizes que cometeram.
Interessante: o quase geral silêncio da classe política. Explica-se: num ambiente em que todo mundo tem rabo, o melhor é não falar mal do rabo dos outros.
Dinheiro público carregado nas meias
Em matéria de corrupção o Brasil é pós-graduado. Não bastam os atos ilícitos em si: vez ou outra eles são ilustrados com tristes imagens de corrupção explícita. Mas, evolui-se: o dinheiro passou de dentro das cuecas para o interior das meias.
Uma coisa é tomar conhecimento de que fulano de tal é corrupto, tendo praticado tal e tais deslizes; outra é assisti-lo ao praticar o ato, na mesma dimensão que se presencia, por exemplo, uma cena de sexo explícito.
A intimidade de um crime, quando exposta, estarrece e indigna. Além disso, faz de quem a presencia partícipe de um momento de degradação. Existe a natural revolta diante do ato; há a crítica feroz ao que é inconcebível; mas, também vigora a desilusão com a natureza humana e a parcela de vergonha que nos cabe por um erro gravíssimo que, pelo menos em parte, nos faz sentir culpados.
Culpados? De quê? O cidadão mete a mão no dinheiro público e eu tenho lá alguma responsabilidade em relação ao ato dele? Pois é. Mas, esse cidadão pode ter sido eleito pelo meu voto, eu posso tê-lo levado, degrau por degrau, ao cargo que atualmente ocupa, tendo por obrigação zelar pelo bem público. Também não custa lembrar de que o mesmo cidadão pode ter sido acusado, no passado, de atos ilícitos que não levei a sério, achei que não eram graves e resolvi ignorá-los na hora de votar. E aí está o resultado. Então, sendo honesto comigo mesmo, caso tenha agido assim, devo assumir a parte que me toca nesse triste espólio.
Meu caro eleitor, as eleições vêm aí. Você que sempre se pergunta por que neste raio de país o voto é obrigatório, você que preferiria ficar em casa ao invés de comparecer à sessão na qual vota, você que não acompanha política, você que recebe algum tipo de ajuda do governo e acha que vive no melhor mundo possível, você que recebeu promessa de emprego de um candidato, você não pode ignorar o fato de que é um cara muito importante. O seu voto, meu caro, pode mudar muita coisa, no mínimo mudar a cara dos corruptos ou determinar um rodízio entre eles. Portanto, pense muito bem no que estará fazendo na hora em que entrar naquele cubículo onde está a urna ou o aparelhinho em que se digitam os votos.
Olhe, não estou dizendo tudo isso a você gratuitamente. Acontece que a primeira coisa que vi hoje foi a cena do presidente da Câmara Legislativa do Distrito Federal, Leonardo Prudente, recebendo dinheiro do então presidente da Codeplan (empresa do DF), Durval Barbosa. Veja só: o Prudente foi de uma imprudência total porque recebeu o dinheiro das mãos do Barbosa e enfiou parte nos bolsos, parte dentro das meias. Foi exatamente essa cena, a de um político enfiando notas de reais nas meias, locupletando-se com dinheiro público da maneira mais grosseira e explícita possível, que me fez sentir envergonhado.
Quem gravou a cena? O Barbosa. Aliás, também foi ele quem gravou a cena do governador Arruda recebendo aquele dinheiro que, segundo se diz, era para comprar panetone para os pobres.
Depois disso tudo, o mínimo que posso desejar a você é um bom dia.
Fisiologia dos escândalos no Brasil
No país dos escândalos mais um não faz grande diferença, acostumados que estamos com as soluções “à brasileira”.
Vá lá, a descoberta das tramóias é sempre impactante. Personagens importantes estão envolvidas, existem gravações sobre os atos ilícitos e a imprensa deita e rola apontando os corruptos. Páginas inteiras são preenchidas com resultados de investigações, aparecem personagens menores como secretárias e motoristas que de repente atraem a atenção e são chamados a depor nas CPIs do Congresso. A Polícia Federal se agita, o Ministério Público sai a campo até que, finalmente, o processo entra na fase de andamento lento.
É assim que o escândalo vai sendo esquecido, tendo a seu favor uma variável sempre presente: a meio caminho outro escândalo é descoberto e ganha notoriedade, abafando o anterior. Então recomeça o ciclo, novas personagens importantes aparecem, gravações são exibidas, a imprensa denuncia, secretárias e motoristas depõem e todo o aparato policial e jurídico entra em ação.
Se for correto o princípio que define como normal aquilo que é mais frequente, então corremos o risco de normalizar a corrupção e os escândalos dela decorrentes. Se você não concorda pense um pouco sobre a rotina de escândalos no Brasil e as personagens que estão por detrás dela, alguns deles reincidentes e muito hábeis em manobras corporativas que até mesmo os preservam em seus cargos. Veja-se lá o caso Sarney. O ex-presidente da República passou, neste ano de 2009, pelo pior inferno astral da sua carreira. A vida dele foi devassada, podres estouraram para todo lado e quase todo mundo apontou o dedo exigindo a sua renúncia ao cargo que atualmente ocupa à frente do Congresso. E deu exatamente no quê?
A diferença que existe entre pessoas como eu e você e um homem como José Sarney é que ele conhece profundamente as regras do jogo. Sarney enfrenta a tempestade com um sorriso maroto nos lábios, como aquele jogador que usa cartas marcadas e não perde nunca. Além disso, mais que ninguém ele é perito nessa matéria chamada “fisiologia dos escândalos no Brasil”, daí utilizar muito bem a rotina dos desvios de atenção, do novo escândalo que abafa o anterior.
Do mesmo modo o mensalão vai perdendo a sua força, tanto que o antes notório Marcos Valério hoje está reduzido a poucas e diminutas citações na mídia que, há não muito tempo, não parava de falar dele.
E eis que temos um novo escândalo em andamento, desta vez sendo citado até mesmo o governador de Brasília, Sr José Roberto Arruda. Para quem não se lembra, Arruda é o mesmo homem que, em 2001, foi acusado de violar o painel de eletrônico de votação do Senado e acabou renunciando ao cargo por esse motivo.
Está circulando na internet um vídeo estarrecedor no qual Arruda recebe um pacote de dinheiro das mãos de um interlocutor. Não fica claro ao que o vídeo se refere, supondo-se que seja de 2006, ocasião em que Arruda era candidato ao governo do Distrito Federal. Segundo o advogado do governador trata-se de um pacote de dinheiro destinado à compra de panetones para pessoas carentes. Normalíssimo, portanto.
O governador do Distrito Federal está sendo acusado de corrupção. A Polícia Federal realizou uma operação para averiguar um esquema de propina que envolve diretamente a pessoa do governador e alguns de seus acessores. A imprensa já noticia amplamente o escândalo. Existem gravações. Personagens importantes estão envolvidas. O Ministério Público entra em ação. Em pouco correrão os processos, tudo de acordo com o figurino esperado.
Desta vez vai dar em alguma coisa além de uma ou outra cassação de mandatos?
A negativa da ministra-chefe
O depoimento da ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff como testemunha no processo movido pelo Ministério Público contra 39 réus no caso do mensalão constitui-se numa peça e tanto pela natureza do seu conteúdo.
A ministra-chefe negou a existência do esquema do mensalão, dizendo ser impossível que partidos políticos exigissem “vantagem financeira”; afirmou que ex-ministro da Casa Civil e deputado cassado José Dirceu (PT-SP) é um “injustiçado”; negou conhecer o empresário Marcos Valério Fernandes de Souza, tido como o “operador” do esquema do mensalão; elogiou deputado Paulo Rocha (PT-PA), que renunciou ao mandato para se livrar de condenação na época do escândalo do mensalão; e defendeu o ex-deputado Professor Luisinho (PT-SP), que não se reelegeu depois da denúncia do mensalão. São informações publicadas pela imprensa.
E agora? O que nos resta para pensar? Senhora ministra-chefe, a senhora que é pré-candidata à presidência da República, considere, por favor, a situação em que ficamos todos nós, os eleitores que votarão em 2010. Afinal, em quem devemos acreditar? No depoimento que a senhora fez sobre o mensalão aí Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), sede provisória da presidência da República, em Brasília? Ou em tudo o que aconteceu naquele terrível espaço de tempo durante o qual a República teve aberto o seu ventre para a exposição de acusações terríveis que tanto nos chocaram?
Eis aí uma situação que se enquadra à perfeição dentro de um sistema binário do tipo aconteceu/não aconteceu, verdade/mentira etc. Num sistema desse tipo está-se no território que os matemáticos chamam de eventos mutuamente exclusivos, nos quais a ocorrência de um significa a não ocorrência do outro. Enfim: se existiu ou não o mensalão, e ponto final.
Dirão que não é tão simples, o evento em questão é muito complexo, etc. Mas numa coisa devemos insistir: detalhes à parte, nós precisamos saber se afinal houve ou não o mensalão porque o que está em jogo é a confiança que temos nas instituições, nos políticos, nos candidatos que se apresentarão às próximas eleições e, por que não, na imprensa.
O povo brasileiro é calmo e ordeiro, gosta de festa, adora foguetório e quase sempre esquece muito depressa tudo o que acontece, especialmente aquilo que o incomoda. Mas a história do mensalão, essa aí ainda não foi possível esquecer. Afinal, a imensa massa de brasileiros que trabalha e paga taxas muito altas de impostos foi, durante um bom tempo, bombardeada, dia e noite, por um noticiário que incriminava muita gente, envolvendo grandes somas de dinheiro público. Na época houve até gente que, para se livrar de perder o mandato, renunciou e saiu pela porta dos fundos do Congresso, esperando que a fraca memória popular os esquecesse até que pudessem voltar aos seus postos.
Então era tudo mentira? Fomos enganados por alguma campanha maléfica engendrada pela mídia? Ou a própria mídia foi enganada por gente muito esperta e usada para espalhar mentiras que abalaram o país?
Senhora ministra-chefe, eu jamais escreveria isso se o assunto não me incomodasse tanto. Entretanto, como tantas outras pessoas, eu me vejo entre duas versões irreconciliáveis sobre um mesmo fato. Espero, sinceramente, que esse assunto venha a ser esclarecido antes das eleições do ano que vem para que eu possa votar com muita consciência.
Sabe, é um voto só, um votinho. Mas é o meu.