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Sobre um crime
Fala-se muito e se falará durante bom tempo sobre o caso da família chacinada na Vila Brasilândia, São Paulo. Pai, mãe, um filho de 13 anos, a avó dele e mais uma mulher foram mortos a tiros. O pai e a mãe eram policiais e consta que dormiam no momento em que foram mortos. Até agora se acredita que o filho – menino de 13 anos de idade – tenha sido o criminoso, tendo se suicidado após a chacina.
Familiares e pessoas que conheciam o menino duvidam de que ele fosse capaz de tanto, dado que tinha relações afetuosas com o pai e a mãe. Por outro lado sabe-se que o menino sabia atirar e dirigir, tendo sido ensinado pelo pai. Há, também, o depoimento de outro garoto, colega de escola, que garante ter ouvido do menino que cometeria a chacina e depois fugiria.
Existe, também, a turba formada por jornalistas, cronistas policiais, ex-policiais, delegados, psicólogos, sociólogos, enfim muita gente que se arrisca a fazer leituras e suposições sobre o lamentável fato.
De todo modo, o crime da Brasilândia incomoda. Tanta celeuma em torno das mortes acontece justamente porque incomoda. Quer-se a todo custo esclarecer os fatos porque só então os cadáveres estarão realmente sepultados. Olha-se para fotos do menino abraçado ao pai e não se vê na face bonita e feliz nenhum resquício do perigoso assassino que teria consumado os crimes. Torna-se difícil acreditar que um moleque de 13 anos teria sido capaz de tamanha atrocidade cujo final roubou a sua própria vida. Daí levantarem-se hipóteses de que a cena do crime teria sido preparada, sendo produzida por pessoas especializadas que a teriam montando de modo a não existirem dúvidas sobre os fatos ocorridos na casa. Mas, essa é só uma das linhas de raciocínio que se ouvem nos programas de rádio e televisão.
Seria muito conveniente se alguma hipótese que livrasse o menino de culpa viesse a ser confirmada. Não se pode negar que o parricídio e o matricídio impressionam muito, afetam o modo como se encara a vida familiar e gera desconforto na relação sagrada entre pais e filhos. A ter praticado o crime o menino logrou infringir um dos pilares que mantêm estável a sociedade.
Como se vê o bate-cabeças a que assistimos diariamente tem suas razões de ser. Mas, é preciso enterrar logo essa história, acomodá-la ao passado para que a vida siga dentro da lógica de sempre.
Na senda do crime
Divulgado o laudo necroscópico sobre a morte do japonês executivo da Yoki. No laudo consta que a morte se deu por “choque traumático (traumatismo craniano) associado a asfixia respiratória por sangue aspirado devido a decapitação”. Em razão disso a polícia suspeita que o japonês tenha sido decapitado quando ainda agonizava após ter recebido um tiro dado por sua mulher.
O novo dado contrasta com a versão dada pela mulher que confessou ter atirado no marido e esperado algumas horas para esquartejar o corpo dele. O caso também vem sendo apimentado com revelações sobre o tempo em que a mulher do executivo da Yoki atuava como garota de programa. Na internet há fotos tiradas de um site no qual Elise, a mulher, aparece seminua e avisa ser carinhosa a seus possíveis fregueses.
O esquartejamento do japonês continua dando o que falar, mas as práticas criminosas não param, passando pelos arrastões praticados por bandidos em restaurantes e condomínios na cidade de São Paulo. E como se não bastasse tanto horror surge a notícia de que duas meninas de 13 anos de idade matar, outra, colega de infância de 12 anos de idade, a facadas. O crime aconteceu em Belo Horizonte e dele consta um terrível adendo: após o assassinato as criminosas arrancaram o coração e cortaram um dedo da vítima, levando-os consigo para suas casas. As duas meninas têm envolvimento com uma quadrilha de traficantes de drogas e confessaram o crime que cometeram sem nenhuma emoção ou arrependimento, na verdade rindo. Segundo elas as partes do corpo eram para ser mostradas às mães delas como prova de que estariam sendo ameaçadas por criminosos, daí terem sido obrigadas a matar um deles.
Meu amigo, você liga a televisão e fica sabendo que uma idosa de 96 anos foi morta por bandido que invadiu a casa dela e remexeu tudo com a intenção de roubar. E daria para ficar aqui escrevendo sobre a ocorrência de crimes e mais crimes, mas o horror que tudo isso causa, o medo de que um dia nós mesmos possamos ser as vítimas e a permanente sensação de insegurança me convidam a pensar noutra coisa e deixar pra lá qualquer conclusão para esse texto que, aliás, fala por si mesmo.
A “Gang das idosas”
De que o nosso bom e velho mundo está de cabeça para baixo ninguém duvida. Os acontecimentos diários, tantas vezes terríveis, deixaram de ser surpreendentes diante da frequência com que se repetem.
Entretanto, o mundo é vasto, vasto mundo, como dizia o poeta. E não é que – pasme-se – apareceu uma gang formada por mulheres idosas? Pois não? Trata-se de três senhoras que furtam bolsas e carteiras de pessoas distraídas. Como hoje em dia existem câmeras de segurança filmando tudo o que acontece as idosas foram filmadas com as mãos na botija. Sentadas num restaurante elas esvaziaram a bolsa de uma moça distraída e saíram do lugar na maior. Além disso, apareceram em outro vídeo furtando numa padaria.
Meus amigos, essa não. Temos visto um pouco de tudo, crimes terríveis, acidentes provocados por motoristas embriagados, sequestros, homicídios, corrupção crescente e muito mais. Mas, dá tristeza ver aquelas mulheres já velhas, provavelmente mães e avós, reunidas para roubar. As imagens delas furtando de algum modo ofendem a confiança que temos nas coisas que temos para nós como improváveis.
Até agora a polícia não conseguiu localizar e prender as mulheres que fazem parte da “gang das idosas”. Considera-se a possibilidade de que elas venham praticando muitos outros crimes que não foram filmados. Quem são elas afinal? Será muito interessante saber quem são elas e, principalmente, descobrir as razões pelas quais estão praticando seus crimes.
A gangue das loiras
Loira ou morena? O assunto dá pano para manga e não existe acordo na preferência dos homens brasileiros em relação ao sexo oposto. Ainda mais em se considerando que, na atualidade, morena vira loira e loira vira morena com a maior facilidade. Culpa dos cosméticos, tinturas, salões de beleza e das cirurgias capazes de modificar a aparência de qualquer um. Não é que o Silvio Santos tentou assumir os cabelos brancos e agora se notícia que os fãs dele protestaram daí ele anunciar que vai tingir de novo a cabeleira?
Pois é, acontece com todo mundo, de ambos os sexos. Mas, num país em que a morenidade é mais disseminada as loiras, verdadeiras e tingidas, causam furor. Há aqueles machos que têm prevenção e afirmam, categoricamente, que em loira nenhum homem não pode confiar. O besteirol é grande e corre solto nas conversas entre homens que se juntam para um chopinho. Mulher é assunto de homem, assim como homem é assunto de mulher. Há quem proteste contra essa afirmação, mas, enquanto isso, o mundo gira e a Lusitana roda.
Outra besteira que corre em relação às loiras é a de que loira é burra. Isso dá o que falar, mas, piadas a parte, pode terminar em confusão. Anos atrás presenciei um camarada levar um sopapo de uma belíssima loira porque disse na cara dela que loira quanto mais bonita é, mais burra.
Mas, saudações às loiras, às morenas, às mulheres. E vamos ao que interessa.
Agora surge a gangue das loiras. Trata-se de um bando de seis mulheres - cinco delas loiras - e um homem que se especializaram em sequestros-relâmpago. Segundo se informa elas andam muito bem vestidas e aparentam pertencer à classe média alta. Atuando desde 2008 elas atacam as suas vítimas em shoppings e usam os cartões de crédito delas para retirar dinheiro e fazer compras. Está na internet um vídeo no qual uma das loiras da gangue faz compras num shopping e retira dinheiro do caixa eletrônico, para isso usando um cartão roubado. Mais: noticia-se que uma das loiras tinha vida dupla. Morando em Curitiba, casada e com dois filhos, viajava a São Paulo sem conhecimento do marido para se transformar numa violenta e perigosa sequestradora. Assim, afirmam os policiais, a mãe zelosa passava agir de arma em punho e usando linguajar chulo. Segundo o delegado que cuida dos crimes da gangue o caso dessa loira precisa ser estudado de vez que é inexplicável o fato de uma mulher deixar sua vida confortável em Curitiba para cometer crimes em São Paulo.
A curitibana foi presa na casa dela, na frente do marido e dos filhos. O marido está estarrecido, simplesmente não acredita na vida dupla da mulher. Será que ela tem necessidade de mais adrenalina no cotidiano?
Rapaz… Que coisa hein? Que sejam presas e paguem pelos malfeitos delas.
Eh, mundo louco!
Não foi para isso que criei o meu filho
Com essas palavras e chorando muito, uma mãe transmitiu toda a sua agonia aos repórteres que a circundavam. A cena se passou defronte à recepção do Hotel Intercontinental, São Conrado, Rio de Janeiro. Dentro do hotel marginais haviam feito reféns, um deles rapaz de pouco mais de vinte anos de idade, filho da mulher acossada pelos repórteres.
A ação começara pouco antes. Os marginais, traficantes de drogas, voltavam para a favela da Rocinha e deram com a polícia. Durante o tiroteio que se seguiu uma mulher que descia de um táxi foi baleada e morta: depois se soube que ela trabalhava para o tráfico. Pouco depois a mãe pediu ao filho que se rendesse. Tendo ele se negado ela postou-se à frente do hotel, desesperada, aguardando a ação da polícia. Repetia que esse era o seu filho, que apesar de tudo o amava e concluía:
- Sou mãe. Vocês me entendem, não?
Algum tempo depois os marginais se renderam. No meio do grande alívio de hóspedes e funcionários do hotel que passaram a ser abordados pelos repórteres em busca de detalhes da ocorrência, ficou ali a mãe para quem a manhã de sábado fora de todo pungente e, talvez, incompreensível.
Era uma mulher que afirmava trabalhar honestamente e amar ao filho em qualquer circunstância. Algo de muito grande dera errado em seus planos para o filho, por isso chorava tanto.
As cenas do lamentável episódio correram o mundo e entraram nas nossas casas, sem nenhuma cerimônia, como se fossem parte de um filme cujo enredo é conhecido e não nos diz respeito. De estranho e fora do script só a imagem de uma mulher chorando por um filho levado pelo crime, talvez irrecuperável.
Atearam fogo ao ônibus
Um dos problemas relacionados à passagem dos anos é o de que, a certa altura, ousamos ter a impressão de que já vimos de tudo e nada mais poderá nos surpreender. O cotidiano é de fato repetitivo, temos os nossos horários, lemos os jornais mais ou menos à mesma hora, almoçamos, jantamos etc. Os problemas que nos afetam podem se apresentar com pequenas variantes, mas exceto por uma enorme quebra em nossa rotina, podemos dizer que as coisas se passam segundo uma lógica esperada.
Não se está a dizer que inexistem surpresas. O recente terremoto do Chile nos surpreendeu, catalisou as nossas atenções e, ainda agora, acompanhamos de perto os desdobramentos dos infortúnios que assolam o povo chileno. Hoje mesmo comenta-se sobre o erro da marinha chilena ao retirar o alerta de tsunami, fato que pegou de surpresa as populações litorâneas com terríveis consequências. A isso se acrescenta a recente tragédia acontecida no Haiti que tanto nos consternou, justamente causada por um terremoto.
Outra desgraça que nos aflige é o crime que, por ter-se tornado cotidiano, banalizou-se. Se você toma café de manhã com a televisão ligada em algum noticiário, diga lá se as imagens sobre algum assassinato pioram a sua digestão ou o fazem parar de comer. Se você chega a casa no início da noite e está tomando uma taça de um bom vinho após um dia e tanto, conte aí se as barbaridades exibidas por um desses programas policiais televisivos interfere no seu paladar a ponto de fazê-lo deixar de lado o precioso líquido.
Com esses e outros arrazoados nem tanto sólidos o que se quer demonstrar é que nos habituamos até mesmo com acontecimentos em geral inaceitáveis. De repente – e para tristeza geral – passa-se ao estágio de entendimento de que o mundo é assim e se eu levar a sério tudo o que se passa por aí o jeito é me submeter a uma lobotomia ou deixar de viver no planeta.
Entretanto, o horror não tem limites. As imagens de destruição causadas por um terremoto nos atingem num plano superior, aquele que nos dá conta da fragilidade de nossa espécie diante de forças incontroláveis. Acontecimentos de tal ordem nos falam sobre a possibilidade do fim da vida no planeta e o grande medo de que, afinal, a história da humanidade nada mais seja do que um breve capítulo nessa grande orgia de tempo que envolve bilhões de anos. Isso nos traz o sentimento de não passarmos de grãos de poeira, apesar de toda a nossa empáfia e pretensões.
Vá lá que seja assim. Entretanto, em relação ao crime as coisas se passam de modo diferente porque os atos criminosos simplesmente não precisam, nem devem acontecer, embora estejamos habituados à ocorrência deles. Fica, portanto, o nosso asco represado, numa espécie de estado de latência que nos leva a “aceitar o mundo como é” porque o desânimo nos induz à errada compreensão de que pouco ou nada pode ser feito para deter a marcha da criminalidade.
Ocorre que o nosso estado de latência, esse ver sem sentir, essa disposição para ignorar o óbvio como meio de sobreviver, tudo isso tem limites. De fato, algo tão medonho pode vir a acontecer, despertando-nos do estado de letargia voluntária que nos impomos. Quando isso acontece, ocorre uma quebra de rotina e, finalmente, a nossa repulsa aflora em toda a sua intensidade.
Exemplo? Ora, a Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, já foi tema de filme e consta que está sendo protegida por força policial. Ontem, na Cidade de Deus, foi preso um rapaz, traficante de drogas – papelotes de cocaína. Em protesto, os comparsas do rapaz pararam, aleatoriamente, um micro-ônibus, atirando pedras e explosivos contra ele. No momento em que a porta foi aberta, um dos meliantes jogou gasolina para dentro e ateou fogo. O micro-ônibus estava com passageiros em seu interior; uma mulher tentou descer, caiu entre as chamas e foi pisoteada, sendo salva por outro passageiro. Quinze pessoas sofreram queimaduras em mais de 30% de seus corpos e estão internadas.
É preciso repetir que a escolha do micro-ônibus foi aleatória. Poderia ser qualquer outro. O que importava aos bandidos era o “protesto” sob a forma de aviso para que novas prisões não se repitam. Note-se que o motorista e os passageiros nada tinham a ver com o caso da prisão do traficante. Eles simplesmente passavam por ali naquele momento, deram o azar de serem escolhidos, ao acaso, para morrer queimados.
Agora imagine-se tomando o café da manhã antes de sair para trabalhar. O noticiário da manhã que você está assistindo, meio distraído, pela televisão, apresenta as desgraças de rotina. De repente são exibidas imagens de um micro-ônibus queimado e de um homem, numa maca, narrando , entre lágrimas, a brutalidade de que foi vítima. Ele chora, agradecendo por ter escapado e dizendo que tudo o que quer é viver para cuidar do filho.
Então, você sai do estado de letargia em que se encontra: não existe catarse possível para um horror assim. Você para de comer, levanta-se, é preciso fazer algo, alguém tem que impedir que coisas assim aconteçam, passou da hora de decidir entre o que é humano e o que não é; daqui para frente tem que ser olho por olho, dente por dente, assim se expressa a sua revolta.
No fim resta o vácuo, a sensação de impotência, a certeza de que é preciso acabar como crime e condenar bestas a viverem como bestas. Fatos como o ocorrido ontem, na Cidade de Deus, não podem mais acontecer.
O sentido de um crime
- Alô mãe.
-Alô
- Mãe eu fui seqüestrada. Eles querem oito mil reais. A senhora precisa depositar na minha conta, daí eles tiram com o meu cartão. Por favor, mãe.
- Pelo amor de Deus, filha. Quero falar com eles.
- Não tem jeito, mãe. São oito mil ou eles vão me matar.
- Mas eu não tenho. Me deixa falar com eles.
Silêncio. Agora fala uma mulher:
- Alô.
- Alô, aqui é a mãe da Mariana. Por favor, não façam nada com ela. Eu sou uma manicure, não tenho oito mil reais.
- Olha aqui, o prazo vence à uma e meia da tarde. Se até lá o dinheiro não for depositado a sua filha morre.
A sequestradora bate o telefone. Há três dias a filha desapareceu e liga todo dia para a mãe, dessa vez com ultimato dos sequestradores. A manicure desespera-se, não tem o dinheiro e vai à polícia.
Horas depois o crime é solucionado. A polícia prende Mariana que dormia num motel. A moça confessa que simulou o sequestro e a polícia identifica, numa gravação, a voz dela mesma fazendo-se passar pela sequestradora.
A mãe simplesmente não pode acreditar. A polícia descobre que Mariana foi duas vezes ao banco para conferir se o depósito dos oito mil fora realizado.
No fim, o delegado pergunta a Mariana a razão de fazer isso com a própria mãe. Ela faz cara de sentida e responde:
- Eu queria saber se ela gosta de mim.
Um investigador ouve e comenta:
- Eta mundo cão.
As muitas faces do ódio
O título parece nome de filme, mas não é. Muitas pessoas que se odeiam convivem diariamente, tantas vezes sem opção de separação.
As histórias são muitas. Conheci um velho senhor que odiava tenazmente a própria mulher, não sei se a recíproca era verdadeira. Segundo ele me disse, seu erro foi não ter tido coragem de separar-se dela quando moço. Estavam velhos, dividindo o espaço de uma casa pequena, cada um com as suas rotas estudadas para não dar de cara com o outro. Não sei que fim levaram. Moravam numa travessa da Av.Brigadeiro Luís Antônio, numa casinha sufocada por prédios altos e cheios de gente. Eram como resquícios de outro tempo, outra cidade, afastados de tudo e consumindo-se no ódio.
O problema da vida é o varejo, o mundo das pequenas coisas que incomodam e se somam lentamente, quase imperceptivelmente até escaparem do controle. É a partir daí que a convivência chega ao patamar de insuportável.
Um cidadão com quem convivi era chefe de uma repartição estatal, lugar onde conheceu uma funcionária subalterna a ele, que seria a sua futura mulher. Amaram-se, casaram-se, tiveram filhos até que um dia deixaram de falar a mesma língua, isso para ficar no mínimo. Mas não se separaram. Depois disso ele passou a perseguir a esposa no trabalho. Fez isso metodicamente, durante anos, até que ambos se aposentaram. Gastaram a vida nisso, para desespero dos filhos que jamais entenderam porque, afinal, os dois viviam juntos.
Eu poderia ficar horas me lembrando de situações nas quais o ódio serviu como mola mestra para o desencadeamento de vidas desgraçadas. Quantos crimes não acontecem como consequência de situações determinadas pelo ódio de uma pessoa a outra?
Pois é justamente em função desse tipo de crimes que resolvi tocar no assunto. Na verdade dois fatos ocorridos no último fim-de-semana chamaram a minha atenção. O primeiro deles foi o caso de uma mulher simples que descobriu que o marido a traía. Sua vingança foi terrível: estava o marido dormindo no sofá quando ela jogou álcool em seu corpo e ateou fogo…
O outro acontecimento é tétrico: não aceitando o filho gerado pela mocinha com quem vive, um rapaz os espancava com frequência. Isso durou até ontem quando o rapaz quebrou o pescoço de seu filho de quatro meses de vida.
Vi na televisão imagens das pessoas envolvidas nos dois casos e não percebi nelas sinais de arrependimento. Pareciam ter resolvido seus problemas a seu modo, ainda que animalescamente. Foram as suas faces que me incomodaram pois as situações que exacerbaram o seu ódio pareciam justificá-las: num caso a traição; noutro a gravidez e o filho indesejados.
Livro: O Crime do Restaurante Chinês
São grandes as contribuições do Prof. Boris Fausto ao estudo da História do Brasil. Ao longo dos anos tem ele assinado obras de vulto que, além de seu valor intrínseco, revelam-se de grande utilidade a estudantes e pesquisadores em geral.
A mais recente publicação do Prof. Boris Fausto é o livro “O Crime do Restaurante Chinês” –Ed. Companhia das Letras, 2009 - cujo tema é o assassinato, a pauladas, de quatro pessoas – um chinês dono de restaurante, sua mulher e dois de seus empregados. O crime aconteceu na madrugada da quarta-feira de cinzas de 1938.
É de se imaginar a repercussão e o interesse despertado na população da cidade de São Paulo de então por crime tão bárbaro que, a princípio, não se sabia praticado por um ou mais criminosos. Supondo-se que fosse apenas um, desconheciam-se os móveis do assassino e não se fazia a menor idéia de sua identidade.
É dentro desse universo que se move o Prof. Boris Fausto, estendendo os tentáculos de sua pesquisa às notícias publicadas em jornais, relatórios policiais e sucessos ocorridos no Tribunal do Júri.
O livro é precedido por uma “Breve Explicação” na qual o Autor avisa-nos que seu trabalho é uma forma de fazer história denominada “micro-história” cujos misteres são: a redução da escala de observação do historiador permitindo apreciações que lhe escapam nas análises de grandes quadros; ouvir a voz de pessoas comuns; de fatos tidos como corriqueiros extrair dimensão sociocultural relevante; apelar para o recurso da narrativa; e situar-se no terreno da história apoiando-se nas fontes, delimitando-se, assim, claramente a obra ficcional.
É munido de tais premissas, fornecidas pelo Autor, que o leitor passa à Introdução na qual se narra o crime e seus desdobramentos. As circunstâncias do crime, o tom de dúvida quanto à sua autoria, a descrição factual e principalmente a forma de narrar nos conduz, inevitavelmente, à pergunta: está-se no terreno da história ou no de uma obra ficcional baseada em fato real?
A dúvida é pertinente. Desde logo se percebe que o Autor aventurou-se em solo movediço que sepulta, indiscriminadamente, fatos reais e fatos narrados ficcionalmente. Historiador por ofício socorre-se o Autor com farta documentação que só a pesquisa acurada logra fornecer. É assim que nos é dado acompanhar o carnaval de 1938, corso e fantasias, e a Copa do Mundo acontecida no mesmo ano. O Autor não nos apresenta esses fatos gratuitamente dado que funcionam como peças de enredo maior com o qual se relacionam. São os homens de uma cidade que já não existe, o seu modo de ser e agir que nos são devolvidos em flashes nos quais o passado nos ajuda a compreender o presente.
Há muito de romance histórico neste livro de história. Vez por outra, ao longo dos capítulos sente-se que embora o historiador que nos fala não tenha como objeto o passado – o qual apenas interroga – delicia-se com ele. Algo de memorialismo perpassa a narrativa gerando fecunda contradição entre história e obra ficcional. Aliás, fala a favor dessa última o ambiente narrativo indubitavelmente calcado nos cânones da literatura policial: o historiador cede, não sem luta, ao fio condutor do suspense levando-nos até o final em busca de solução para o caso.
É, pois, o livro, talvez a despeito das intenções de seu Autor, obra híbrida que se lê com prazer, daquelas que não se larga antes da página final porque, a todo custo, quer-se um corolário para a narrativa. Também nesse sentido o Prof. Boris Fausto não nos decepciona. O último capítulo reserva-nos relato pungente e confessional. Restitui-nos um menino com seus sonhos e impressões os quais conferem sentido maior ao conteúdo que acabamos de ler. É aí que se apagam o historiador e o professor; surge o homem que fez uso das ferramentas da história para narrar, quase ao jeito de memorialista, os sucessos de mundo desfeito ao qual um dia pertenceu.
Essas breves considerações não pretendem abordar a riqueza temática apresentada pela obra na qual, como ilustra-nos o Autor, figuram o racismo, o funcionamento do aparelho policial e judiciário etc; intencionam elas apenas destacar o historiador com domínio completo de sua ciência no momento em que se reserva o prazer de utilizar a sua arte para contar uma boa história.