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Depois da morte
Minha tia tinha horror em relação ao assunto morte. Assustava-a o ato de como e do que morrer. Também o quando. Acompanhara o sofrimento da mãe levada pelo câncer. A mãe tivera câncer no seio. Fizera a mastectomia e, depois, submetera-se à radioterapia. Mas, eram os anos sessenta do século passado. A radioterapia produzira queimaduras extremamente dolorosas. Dai por diante a mulher nada mais fazia que gemer. Seguiu assim até o fim.
Minha tia também se incomodava com o que seria de seu corpo depois de enterrada. Sofria com a hipótese de estar trancada dentro de um caixão, acossada por toda sorte de vermes e insetos. Baratas, ah, as baratas. Mas se a senhora estará morta e não terá consciência disso… É, mas é o meu corpo…
Mais, ainda, minha tinha incomodava-se com o que diriam sobre ela depois que estivesse morta. Que lembranças restariam dela? Que opiniões? Que julgamentos? Difícil ser criticado quando já não se pode defender. Não que ela tivesse, ao que as saiba, grandes erros. Aposentara-se após anos no serviço de educação e não deixara inimigos. Gente boa. Mas, temia o julgamento dos pósteros.
Ao que parece não existem grandes motivos para incomodar-se com o que dirão os pósteros após o passamento de uma pessoa. Afinal, se está mesmo morta a pessoa não saberá de nada. Mas, aos vivos parece importante que sejam lembrados com alguma dignidade. Muita gente fica fora disso pelas vidas erráticas que levam. Mas, embora mortos, não seria bom que nossa intimidade se conservasse reservada?
Meses atrás o apresentador de televisão Gugu Liberato morreu, subitamente, ao cair do sótão de sua casa. Na queda bateu a cabeça, teve hemorragia cerebral e não se recuperou. Amado por seus fãs a morte do apresentador comoveu a opinião. Passado o transe da morte sucederam-se as devassas. Abriu-se a questão do testamento do apresentador no qual excluiu a mulher. Surgiram histórias de que ela e o marido nunca teriam sido de fato um casal. Os filhos teriam resultado de processos de inseminação artificial
Hoje aparece na mídia a notícia de que um chef de cozinha reclama, na justiça, o reconhecimento de união estável com o apresentador. Ele faz isso visando a partilha de bens acumulados durante o período em que estiveram juntos. Como se sabe o apresentador deixou a seus herdeiros considerável fortuna.
Melhor seria se guardássemos de Gugu a lembrança de sua jovialidade e inventividade enquanto apresentador de televisão. Figura simpática, fazia a alegria de milhões. Mas, a posteridade tem sido a ele madrasta. Pouco a pouco surgem fatos sobre seu passado que afetam a imagem que seus seguidores dele faziam. Não que ele estivesse errado e não tivesse o direito a fazer suas opções. Mas, há muito de maldade no modo escolhido por muitos ao julgá-lo.
Fim da linha
Há quem compare com o embarque num trem em viagem sem volta. Na estação final a morte espera pelos passageiros. Na mitologia grega o barqueiro Caronte ocupava-se da travessia do rio Aqueronte que separa os mundos de vivos e mortos. Sob a vigilância do barqueiro as almas dos recém-mortos a deixar o mundo que conhecemos.
O enigma da morte permanece. De modo algum se pode saber se, de fato, existe algo para além do momento em que alguém fecha, definitivamente, os olhos. Morre-se e ponto final. Simplesmente.
Ao observar a face do morto em seu esquife choca-nos o fato de tudo cessar. Não se trata apenas da imobilidade do corpo sem vida. Aquele cérebro que ainda há pouco comandava pensamentos e atitudes silencia-se, irremediavelmente. É o deixar de ser do morto que nos agride. Ele que tão bem conhecíamos deixa de existir. Tudo o que fora e acreditara apagara-se de repente. Por isso o observamos com cuidado e temor. No morto que se nos apresenta figura-se a imagem de nosso próprio destino. Ele, o morto, sou eu amanhã.
O homem que sofre com doença pulmonar levanta-se e vai ao banheiro. Move-se com dificuldade, apoiam-no a mulher e a filha. Quando volta reclama de fraqueza, tontura, falta-lhe o ar. As mulheres o fazem sentar-se por um instante. Ele fala com elas, está lúcido. Pede que o devolvam à cama, sendo atendido. Já deitado, roga pelo oxigênio que é colocado em seu nariz. Mas, é chegado o momento do embarque. O último olhar grava na retina a imagem da mulher e da filha. A morte chega assim, mansa e implacável.
Os detalhes de como tudo aconteceu me foram passados pela família do falecido. Não pude ir ao velório. Ainda agora, passados dois dias do desenlace, pesa-me o estranhamento provocado pelo fim da vida de alguém a quem queria tanto.
A vida é assim. A morte, imprevisível.
Depois da morte
Há quem se preocupe demais com o que será de seu corpo após a morte. Para essas pessoas é como se, mesmo após a morte, a ligação com seu corpo permanecesse ativa. Uma senhora me disse, certa vez, sobre o horror que experimentava ao imaginar seu corpo preso dentro de um caixão e sendo devorado por vermes.
Quem já presenciou uma exumação sabe bem como as coisas se passam. Num cemitério do interior estive presente na exumação do cadáver de uma mulher que, suspeitava-se, falecera em consequência do esquecimento de ferramentas cirúrgicas em seu abdômen. Terra removia, caixão na superfície eis que, ao ser aberto, dele surgiram baratas e outros insetos que se fartavam dos restos mortais. O forte odor de matéria em decomposição e a cena desagradável presenciada foram e são inesquecíveis. No final constatou-se, infelizmente, a presença de material cirúrgico no decomposto organismo da mulher.
A preferência pela cremação tem conquistado muitos adeptos. Com ela desparecem resquícios físicos da passagem dos seres humanos sobre o planeta. Após a cremação familiares recebem as cinzas daqueles que partiram. O destino dado às cinzas varia de acordo com os desejos dos familiares, muitas vezes atendendo a pedidos dos que faleceram. Há pouco tempo um casal de idosos veio a falecer com diferença de intervalo de poucos meses. Os filhos optaram por depositar as cinzas dos dois no solo, junto a uma árvore, numa propriedade rural da família. Em outro caso as cinzas de uma senhora foram lançadas ao mar.
Laboratórios de faculdades contam com a presença de cadáveres que servem ao estudo da anatomia humana. São mantidos em formol para que se mantenham conservados. Há quem doe seus corpos para que sejam utilizados após a morte. Outros cadáveres pertencem a indigentes e pessoas não identificadas. Existem casos relatados de pessoas que desapareceram e, mais tarde, foram identificadas, casualmente, com seus corpos em laboratórios. Na internet se lê sobre o caso de uma estudante que iniciou a dissecação do cadáver da sua avó. Tendo a avó optado por ceder seu corpo para estudos relata a neta visitas periódicas para rever o cadáver.
Por outro lado, não devemos nos esquecer daqueles que acreditam ser possível o retorno à vida mesmo muito tempo depois da morte. Existem locais onde corpos são mantidos em cápsulas que os protegem contra a decomposição de seus organismos. Sob temperaturas baixíssimas e preservando as estruturas orgânicas pretende-se retornar à vida em momento futuro no qual a evolução da ciência permita a reparação das causas que provocaram a morte.
O fim da vida é inevitável. O destino dos restos humanos nem sempre um problema de fácil solução. Noticia-se que na cidade de São Paulo cemitérios contam com grande número de ossos em sacos plásticos, muitas vezes sem identificação. O Serviço Funerário do Estado está a merecer a atenção dos governantes.
A morte é certa. Melhor não pensar nisso ou decidir sobre o que será de nossos corpos quando deixarmos esse mundo.
Apagando vestígios
A moça atrás da mesa é atenciosa. Passa o dia atendendo clientes do banco. A idosa pergunta algo e ela responde devagar, explicando. A idosa não entende. A moça sorri e começa a explicar de novo. Depois de algum tempo, desiste. Levanta-se e leva a idosa em direção ao caixa eletrônico. Fica junto da mulher até que se complete a operação. Depois se despede. A idosa agradece e começa a se dirigir, com passos vacilantes, em direção à porta.
É a minha vez. Estive aqui semana passada para fechar a conta. Há um saldo negativo que devo cobrir, mas não sei o valor. A moça me olha curiosa. Talvez não entenda a minha pressa em fechar uma conta que, afinal, não é minha. Pede que eu espere, consulta o computador e, no fim, emite a guia. Então me recomenda que entre na fila do caixa e pague para depois voltar até ela.
Entro na fila. Na minha frente um senhor que olha insistentemente para a tela, esperando ser a vez dele. Logo ele entra, é a minha vez de esperar. Até que surge o 8, o número do caixa ao qual devo me dirigir.
Depois de pagar retorno à mesa da moça. Ela me vê e sorri. Eu me sento, ela pede o talão de cheques e consulta na tela para ver se todos já foram pagos. Depois liga para alguém, talvez um superior. Diz a ele que está com aquele senhor que já esteve aqui para fechar a conta da cliente que faleceu. A pessoa do telefone manda a moça me fazer algumas perguntas que respondo, prontamente. Sim, estou com os documentos, o atestado de óbito, o inventário, a procuração. Tenho poderes legais para fechar a conta. E já quitei o débito.
Não se demora a que a moça confira o recibo que eu trouxe do caixa. Depois de um tempinho me diz que está tudo bem, a conta está fechada. Deseja-me um bom dia. Agradeço e me levanto, minha vez de ir embora.
Na porta do banco não consigo evitar a sensação de desconsolo. Penso que a falecida fez esse percurso muitas vezes nas suas vindas ao banco. Agora ela também deixou de existir nos números bancários. A conta dela está encerrada.
Saio. Há outros vestígios da morta que preciso apagar até que ela desapareça completamente e só permaneça nas memórias.