dia de caça at Blog Ayrton Marcondes

Arquivo para ‘dia de caça’ tag

Dia de caça

escreva o seu comentário

- Não sei se aquele a quem chamavam Geraldo era certo da bola. A mim me parece que não. Esses tempos todo tenho refletido sobre o caso e sempre chego à mesma conclusão: ele não era certo da bola, não.

A velha diz isso e pega o fósforo para acender o cigarro. No rosto enrugado destacam-se dois olhinhos vívidos e inteligentes. Ela me olha com a cautela necessária diante de estranhos, embora eu tenha vindo recomendado. Talvez simpatize comigo ou simplesmente veja em mim alguém que seja a ela útil e confiável. Demora-se a acender o cigarro. Tenho vontade de puxar conversa, perguntar sobre o número de cigarros que ela fuma por dia, mas me calo. Depois de algum tempo, a velha traga profundamente e solta uma enorme mancha de fumaça que esconde parcialmente o seu rosto. Depois continua:

- Aquele Geraldo era de fato um homem estranho. Alto e loiro, não chegava a ser bonito, mas de todo modo atraente. O senhor veja que para alguém assim, fogoso e na força do homem, uma mulher se faz necessária, sempre. E não consta que até os trinta anos de idade ele tivesse parte com nenhuma mulher. Veja que isso ele próprio proclamava, dizendo que reservava o melhor de si para quando encontrasse aquela a quem dedicaria todo o seu amor.

- Encontrou?

- Ah, sim, demorou, mas encontrou. Era uma bela moça, mais nova do que ele, que veio passar aqui umas férias. Apaixonaram-se e ele reformou a casa do sítio onde morava para que vivessem ali após o casamento. Não nego que formavam um belo casal, muito feliz. Foi assim até que se casaram e partiram para a lua-de-mel. Que, ao que se sabe, não chegou a acontecer.

- Como assim?

- Pois, dois dias depois do casamento ele reapareceu aqui sozinho. Embora a curiosidade geral sobre o fato, ninguém ousou pergunta a ele nada. A mulher com quem ele tinha se casado nunca mais se viu. Ele se tornou taciturno, quieto demais e triste. Mais tarde se soube que ele deixou a mulher por descobrir que ela não era virgem, isso na noite de núpcias. A virgindade fazia parte do código dele, sabe? Uma coisa assim pode não importar a muita gente, mas era regra para ele que havia se conservado para o dia em que se casasse.

A velha apagou o cigarro no cinzeiro, tossiu e me encarou como se olhasse através de mim e recontasse a si mesma uma história que não saia da sua cabeça.

- Acho que foi um ano depois disso que começou a amizade do Geraldo com o meu filho. Em pouco tempo tornaram-se inseparáveis. O Geraldo vinha muito aqui em casa e parecia renovado, alegre como nunca fora. Meu filho, que mais ou menos regulava com a idade dele, prezava-o muito. E assim foi durante muito tempo, até que aconteceu o que o senhor certamente já sabe.

- Sim?

- Na verdade nunca se soube como as coisas se passaram. Certo dia saíram os dois, como de vez em quando faziam, para caçar. Foi lá que o Geraldo matou o meu filho e se suicidou.

Após dizer isso, a velha se cala. O rosto enrugado se contorce num espasmo de dor. Obviamente, ela não aceita as versões que correm sobre o fato e busca explicação razoável para a perda do filho. De minha parte dou-me por satisfeito. Resta-me fazer algumas anotações sobre o caso e nada mais.

Não há mais o que dizer. Despeço-me da velha e saio em direção ao portão. É uma manhã clara e de céu muito azul. No fundo do quintal um canário canta e o som me parece o de uma marcha fúnebre. Quando chego ao portão, ouço a voz da velha:

- Delegado, o senhor vai descobrir o que de fato aconteceu e me dar uma explicação?

Não sei bem o que responder. Geraldo e o filho dela estão mortos, o caso da tragédia ocorrida num dia de caça está encerrado.

Escrito por Ayrton Marcondes

16 outubro, 2010 às 9:47 am

escreva o seu comentário