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Há 50 anos
Exatamente há 50 anos, no dia 06 de abril de 1967, o Coronel Fontenelle foi demitido da diretoria de trânsito na cidade de São Paulo. Designado para o cargo pelo então governador Abreu Sodré Fontenelle permaneceu no comando do trânsito apenas 57 dias. Mas, aquilo foi o diabo.
Controverso, irreverente, determinado, gênio, maluco, violento, Fontenelle era adjetivado de muitas maneiras pela população. Seu norte era botar ordem no trânsito caótico da cidade. Com suas medidas a cidade iria pegar fogo, dizia. Sabia ser violento, afirmava. E não era sujeito de ficar atrás da mesa. Saia às ruas, fechava estacionamentos irregulares, esvaziava pneus de carros estacionados irregularmente. Odiava filas duplas etc. O carioca Fontenelle era o cão.
Fontenelle desativou a estação Júlio Prestes, ponto de convergência dos ônibus que chegavam à cidade. Os ônibus foram remanejados para 4 pontos diferentes conforme a rodovia que utilizavam. As agências de venda de passagem ficavam na rua, em casinhas de madeira. Foi o caos.
Naquele Brasil de 1967 a ousadia de Fontenelle era inaceitável. A imprensa paulista batia duro no diretor de trânsito. Daí que não pode durar no cargo. Demitido, a cidade respirou.
É difícil ou até impossível reconstruir o passado. Dar vida a um momento, animar as personagens de um tempo que se foi é tarefa complexa mesmo para quem presenciou a evolução dos fatos. Ao tempo de Fontenelle no trânsito eu era um rapazote que morava em casa de um tio. A toda manhã meu tio praticamente enlouquecia com um exemplar de jornal nas mãos. Perguntava por que o governador biônico do Estado não demitia aquele louco. Era inaceitável que uma pretensa autoridade esvaziasse pneus nas ruas, infringindo a lei. E isso publicamente, sem punição. Afora o péssimo exemplo para a nova geração que se formava.
Mas, havia quem concordasse com Fontenelle. Eu não tinha noção de como resolver o problema do trânsito na capital, mas simpatizava com aquele transgressor de normas numa época em que o país era governado por uma ditadura militar. Mas, o ano era 1967 e ainda não chegáramos a 1968 quando o AI-5 seria decretado, restringindo as liberdades. Iniciava-se o período de exceção no qual os governantes podiam punir arbitrariamente os que fossem inimigos do regime ou como tal considerados. Mas isso já é outra história.
Renúncias de presidentes
Os brasileiros foram atingidos por duas renúncias de presidentes da República o que, pensando bem, não é pouco num período de cinquenta anos. A primeira delas foi a de Jânio Quadros, em 1961, cujas causas ainda hoje seguem controversas. De todo modo o país foi surpreendido com a renúncia de um presidente que chegara ao governo levando a esperança de milhões de brasileiros por dias melhores. Tentativa de retorno com mais poderes, simples pileque e até mesmo a solidão do governo em Brasília estão entre as muitas explicações para o intempestivo abandono de Jânio do cargo de primeiro mandatário do país.
O segundo renunciante foi Fernando Collor de Mello que se apeou do poder após o impeachment ser votado pelo Congresso. Eleito, Collor trazia para o governo central juventude e ousadia que já nos primeiros dias manifestou-se por medidas econômicas radicais como o congelamento de 80% dos depósitos bancários. Cada brasileiro passava a ter em conta corrente NCz$ 50 mil fato que desgostou e causou enormes embaraços à população. Congelamento de preços e salários, criação do IOF, aumento de preços de serviços públicos e outras medidas que logo se mostraram confusas e ineficazes tornaram-se verdadeiro tormento. Por trás desse aparato crescia a corrupção, comandada por PC Farias, fato que quando veio à luz provocou a renúncia do então presidente. As acusações ao presidente foram feitas pelo próprio irmão dele, desencadeando enorme revolta popular.
O Brasil teve, portanto, nos últimos 50 anos, história bastante conturbada na qual se inclui o longo período de ditadura militar instaurado no país, em 1964, com a deposição do então presidente João Goulart.
São fatos sobejamente conhecidos, mas que devem sempre ser lembrados para que nem por sonho o país torne a experimentar período de tanta turbulência. É justamente por isso que os brasileiros acompanham com atenção o julgamento do mensalão do qual se espera o veredito final de culpa ou inocência dos acusados de corrupção. Eis aí um fato que pode ser incluído na categoria do “nunca antes neste país” porque, sinceramente, pessoas que já viram de tudo no passado, sempre sob o acobertamento da impunidade, jamais esperariam que um dia a mais alta corte do país se empenhasse num julgamento como o atual.
Há quem diga que o que se espera não é Justiça, mas punição. Políticos aliados aos acusados do mensalão tentam desfigurar o julgamento taxando-o de manobra para depor presidentes etc. Além disso, estranhamente continuam a bater na mesma tecla, qual seja a de negar a existência do mensalão sobre o qual já se acumulam provas incontestáveis.
As punições dos corruptos talvez não seja o que mais interessa nessa história toda. O mais importante é que o julgamento que ora acontece no STF funciona como divisor de águas, estabelecendo-se no país um novo código de conduta e modo de ser daqui por diante. Rasga-se o véu da impunidade e os homens públicos são alertados sobre a honestidade necessária no desempenho de suas funções.
Um novo Brasil deverá emergir após o término do julgamento do mensalão.
O fantasma do Chile
Salvo engano parece-me que os homens públicos que se notabilizaram por atos condenáveis, quando não inaceitáveis, têm vida mais longa nas memórias, sendo citados com mais frequência. O mais marcante exemplo desse fato é, sem dúvida, Adolf Hitler, cujo nome tornou-se sinônimo de barbárie, daí sobreviver por tanto tempo não havendo perspectiva de que venha a ser esquecido.
Degraus abaixo de Hitler estão os ditadores que atuaram e atuam em períodos marcadamente violentos da vida dos povos de diversos países. Nesse sentido, o caso da América Latina é exemplar. De fato, nas décadas de 60 e 70 instalaram-se no continente sul-americano ditaduras militares que se caracterizam como regimes totalitários fechados, responsáveis por perseguições políticas e torturas. Esses regimes proliferaram sob o beneplácito dos Estados Unidos numa história que ainda não foi verdadeiramente contada.
Não deixa de ser curioso que, pelo menos aparentemente, a ditadura militar brasileira tenha legado à posteridade marcas menos impactantes que as impressas pelas ditaduras argentina e chilena. Existiu, sim, no Brasil um quadro violento de repressão, tendo as mãos do Estado de então alcançado e punido exemplarmente contestadores e dissidentes. Não ficou o Brasil isento de perseguições de fundo ideológico, encarceramentos, torturas e pessoas desaparecidas. Entretanto, talvez pela natureza do povo brasileiro, decorridos cerca de 20 anos do fim da ditadura o assunto figura como pertencente ao passado: realmente não se volta a ele a todo instante.
O mesmo não acontece em relação à Argentina e o Chile, países em que os cadáveres dos sangrentos períodos ditatoriais continuam insepultos. A Plaza de Mayo localizada defronte a Casa Rosada, em Buenos Aires, continua a receber, as “Madres de la Plaza de Mayo”; recentemente o governo da presidente Cristina Kirschner autorizou testes de DNA, visando identificar crianças que foram doadas durante o período de repressão; e os envelhecidos generais, membros de governos militares, ainda são processados e condenados.
Já o Chile continua a ser assombrado pelo fantasma do ditador Augusto Pinochet. A figura do presidente socialista Salvador Allende suicidando-se no Palácio de La Moneda, quando sob o ataque de tropas militares golpistas comandadas por Pinochet, parece ser um filme sem fim. Isso é o que se observa ainda nos dias de hoje quando as eleições presidenciais chilenas apontam para um retorno da direita ao governo.
Próximo ao palácio governamental de La Moneda, em Santiago, existe uma estátua de Salvador Allende. Ele parece estar ali para garantir que o retorno à democracia chilena, ocorrido há 20 anos, persista. Mas quem circula por Santiago hoje em dia percebe o receio popular de que isso possa não acontecer. Afinal, a direita pode vencer as eleições e quem sabe uma estátua de Augusto Pinochet apareça na cidade, dando forma em bronze ao fantasma que tanto assusta ao povo chileno.