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Tratamento fútil
A verdade é que ao chegar perto dos 70 anos de idade a gente pensa, de vez em quando, na morte. Como será morrer? Morrerei do quê? Será que existe alguma coisa depois da morte ou ela é mesmo o ponto final de tudo?
Há um poema de Drummond que sempre me vem à lembrança. Trata-se do homem que acorda de manhã no dia em que vai morrer. Entretido com a banalidade do cotidiano ele se prepara para sair de casa em seu último dia de vida:
Barbeio-me, visto-me, calço-me.
É meu último dia: um dia
cortado de nenhum pressentimento.
Tudo funciona como sempre.
Saio para a rua. Vou morrer.
E se hoje for o dia em que acordo de manhã sem suspeitar de que este será o meu último? Mas, deixa prá lá. O que mais importa é pensar que, seja como for, venha a morte como vier, o que todo mundo quer é passar desta para a melhor sem sofrer. Sem dor, por favor. Sem gente rondando o quarto de casa ou do hospital sem saber o que fazer, esperando que o homem do alfanje venha finalmente recolher sua vítima. Sem pressentimentos ruins, sem aviso prévio, assim como simplesmente dormir para não acordar mais.
Meu pai contava que o avô dele era fazendeiro no interior de Minas Gerais e, certo dia, sentou-se com a família à mesa para jantar. Comeu, bebeu, contou histórias e feliz da vida, gargalhou jogando o corpo para trás. O velho não voltou da gargalhada, o corpo largado na cadeira mais parecia um ato teatral da morte que passara por ali afobada e o levara, sem tempo para maiores explicações.
Muita gente morre no leito, após muito tempo de sofrimento. Doenças terríveis de progressão lenta castigam corpos que teimam em resistir inutilmente, causando dores insuportáveis para as quais não há remédio. E ficam ali os doentes terminais assistidos por remédios que prologam o período de sofrimento e dor, submetendo um ser para quem já não há esperança às agruras de um triste fim de vida.
Então e finalmente chega a notícia que tardou tanto, a boa notícia de que afinal se dá aos doentes terminais o direito de recusar tratamentos que só servem para atrasar o momento da morte. A partir de agora a vontade do doente terá que ser respeitada mesmo que sua família não concorde e queira segurá-lo, só mais um pouquinho, no mundo dos vivos. Trata-se da vitória da morte natural, sem a intervenção de processos paliativos inúteis que certamente são dispensados por todos os que sabem que suas aventuras humanas estão encerradas.