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As minhas palmadas
Por favor, deixem as minhas palmadas intocadas. Elas vieram das mãos de minha mãe, já falecida. Teve ela, para dá-las, as suas razões, com as quais certamente não concordei ao recebê-las.
É preciso considerar que as mãos de minha mãe traziam, nas palmadas que tão precisamente aplicavam, a tradição e a cultura de tempos pregressos, habilitadas em formar homens. Eram mãos que buscavam não pecar pelo exagero, baseando-se num conceito de justiça certamente elementar, mas eficiente.
Lembro-me que, por ocasião do enterro de minha mãe, no instante em que fecharam o caixão, a última coisa que vi dela foram justamente as suas mãos que, finalmente, repousavam sobre o corpo esquálido, consumido pela longa doença. Mãos imóveis que se despediam do mundo com a certeza de dever cumprido, de tradição repassada, de geração continuada.
Mas, repito, por favor, deixem as minhas palmadas intocadas. Elas me pertencem e constituem-se numa ligação perene com minha mãe e os princípios com que ela me criou, os quais têm norteado a minha vida. Não faço o pedido em vão: acabam de aprovar uma lei proibindo as palmadas. A lei foi assinada pelo próprio presidente da Republica e certamente proposta por gente entendida em educação, com a intenção de coibir tantas violências que se cometem contra crianças.
Não há como discordar da lei que condena as palmadas, afinal lei é lei e o governo deve saber bem o que está fazendo.
Todo mundo sabe que qualquer lei só passa a valer depois de promulgada, daí não ter efeito retroativo. Entretanto, a lei das palmadas me parece uma daquelas estabelecidas para corrigir erros anteriores que não podem continuar acontecendo. Se assim for, pelo menos em conceito, a minha mãe terá agido errado e com isso não posso concordar.
Portanto, ao pedir que deixem as minhas palmadas intocadas, estou cumprindo um dever de cidadão e filho. Solicito, também, um adendo à lei, qual seja o de isentar de erro as milhares de mães brasileiras que, ao longo da história do país, fizeram de tudo para educar as suas proles.
Peço isso pela memória da minha mãe, por aquelas mãos que me abriram tantos caminhos.
Violência contra crianças
É assustador o volume de notícias de violência contra crianças. Diariamente tomamos conhecimento sobre crianças vítimas de espancamentos. São menores indefesos que ficam à mercê do sadismo de adultos cujas razões profundas nem sempre são claras. Como sempre acontece nesses casos os espancadores negam o seu feito e atribuem as marcas da violência a acidentes absurdos. Ontem mesmo foi preso um homem que batia muito num menino de cerca de dois anos de idade. O menino apanhou tanto que teve ruptura de órgão interno, sendo submetido à cirurgia. A explicação? Ora, trata-se de criança muito ativa que vive se batendo em tudo. Como isso tencionava o espancador explicar os olhos roxos, as equimoses e o péssimo estado de saúde da vítima.
Análise mais profunda do que move pessoas a crime tão hediondo é assunto pertinente a psicólogos e psiquiatras. São eles os mais aptos a observar em cada caso os desvios mentais que levam alguém a agir violentamente contra menores, descarregando neles toda sorte de desequilíbrios e insatisfações. Entretanto, vale lembrar que não a muito tempo a cultura educacional em nosso país era mais voltada para a pancadaria que ao diálogo.
Às vezes falo sobre esse assunto com pessoas mais jovens e elas dizem que estou inventando. Você tem alma de ficcionista – afirmam. De nada adiantam os meus protestos, nem mesmo jurar que estou falando a verdade. O fato é que nas escolas brasileiras, creio que até o final dos anos 50 e início dos 60, a pancadaria comia solta: professores desciam a mão nos alunos. Usavam as pancadas como meio de impor respeito e garantir o aprendizado que se fazia na marra.
Tive nos bancos escolares alguns mestres de triste memória. Um deles, de quem me lembro bem, era superiormente dotado na arte de punir com as mãos e acessórios como réguas, varas etc. Mas era nos punhos cerrados que residia a maior eficácia do professor. Certo dia ele demonstrou isso muito bem com um espetacular direto na boca de um dos meus colegas do qual jorraram sangue e um dente. O menino que apanhou era um sujeito adorável, um negrinho muito meu amigo, pobre de dar dó. Mas, naquele tempo, os pais não reclamavam: parece que havia consenso de que umas pauladas seriam muito úteis para colocar os meninos “na linha”.
Houve um dia em que cheguei à casa algo machucado, após receber umas e outras do referido professor. Foi a única vez que meu pai, algo alheio à educação que ficava por conta de minha mãe, revoltou-se e decidiu retribuir as pancadas ao professor. O fato é que ele não encontrou o professor na escola e dia seguinte, sabe como é, é dia seguinte e os ânimos esfriam, daí que a coisa ficou por isso mesmo.
Há alguns anos encontrei-me por acaso com um companheiro daquela época. Não é que ele me perguntou se eu conhecia o paradeiro do tal professor? Ora, haviam se passado mais de 30 anos, como eu poderia ter idéia do caminho seguido por aquele desgraçado? Acontece que o meu ex-colega não conseguira se livrar das surras que recebera do antigo mestre e continuava disposto a bater nele. Na ocasião lembrei ao ex-colega que o professor seria um velho e que ele não bateria numa pessoa assim. Ao que o meu ex-colega respondeu:
- Ele batia em mim quando eu não podia me defender. Que mal há em eu bater nele que agora que ele também não pode se defender?
Quem estudou em escolas públicas nos interiores desse Brasil é bem capaz de contar historias semelhantes. Quero dizer que espancar crianças sempre foi um “divertimento” de adultos mal-intencionados, escudando-se sob o manto da educação. Muitos deles, quando não sob vigilância, chegam à barbárie. Aliás, é a barbárie que distingue relatos sobre pancadas em escolas dos atos hediondos praticados contra menores, tão comuns hoje em dia.
O que há com os jovens?
Tudo bem, o rapaz cresceu na favela, não teve oportunidades, compreendeu que o Estado não vai resolver o problema dele e foi iniciado bem cedo no crime. Para ele a violência é algo natural, faz parte do cotidiano, matar não passa de um ofício estimulante com o qual se consegue alguma coisa. Tudo isso sem crise, porque filosofia é coisa de gente estudada, de filósofo e sociólogo, da gente toda que quer explicar o inexplicável que é essa merda de vida.
Tudo bem. Então o rapaz que está nessa é capaz de atirar num casal dentro de um carro só para roubar qualquer coisa, ele faz isso sem remorso e do mesmo jeito que mastiga um pão com mortadela. Para esse carinha aí até que se pode buscar alguma explicação, para ele que mata, depreda coisas, destrói por destruir, arrebenta bens públicos e comete toda sorte de maldades que nos deixam parvos e revoltados. Explicação, nunca justificativa.
Mas, que dizer dos bem nascidos, dos que crescem em lares separados do mundo por paredes firmes, dos muitos que até viajam para o exterior de vez em quando e dessa cambada da camada alta que opta pelo mesmo caminho dos bandidos em formação? Pois esses outros carinhas, os bem-nascidos, não trazem em seus currículos passagens por favelas, momentos de fome, obediência a milícias, adestramento para uso de armas avançadas e tudo o mais que corre solto entre a bandidagem.
Você aí me diga: o que há com esses jovens bem-nascidos que fazem o diabo, desrespeitam leis, depredam os ambientes escolares e até botam fogo em índio e mulher grávida? O que há com esses rebeldes sem causa que fazem questão de ser iletrados ainda que a eles se ofereça o que há de melhor em termos de formação?
Alguém tem que responder a essas perguntas para que alguma coisa possa ser feita contra a disseminação da violência gratuita a que assistimos quase todo dia. Isso digo por que não é possível aceitar e compreender todo esse arsenal de atitudes condenáveis e absurdas.
E não adianta comparecer com as explicações de sempre: o exemplo vem de cima, os pais trabalham fora e não cuidam da educação dos filhos, é preciso resolver o problema da droga na porta – e dentro – das escolas, num país onde existe tanta impunidade só pode acontecer isso, a corrupção é uma epidemia difícil de controlar daí afetar diretamente os valores em que se acredita, existe demasiada liberação de costumes etc.
As imagens recentes exibidas na televisão, mostrando estudantes arrebentando escolas, são inaceitáveis e apontam para um tipo de deformação decorrente de falha social. O crime não se justifica independentemente da origem de quem os pratica. Se não podemos aceitar a violência dos jovens oriundos de favelas ou de condição social inferior o mesmo se pode dizer, com maior ênfase, em relação aos jovens pertencentes a camadas sociais mais privilegiadas.
Tudo bem? Não, nada de tudo bem, nada está bem.