envelhecimento at Blog Ayrton Marcondes

Arquivo para ‘envelhecimento’ tag

Na virada

escreva o seu comentário

Sempre me emociono com as primeiras notícias da manhã nos dando conta que o Ano Novo já começou em ilhas da Oceania. Meia-noite em Auckland, em Welington, em Sidney. O mundo é redondo. Milhares de pessoas nas ruas para assistir à queima de fogos. O homem saúda o novo tempo que chega, apostando na virada como meio de deixar para trás tristezas, infortúnios e até mesmo alegrias fugazes.

É o momento das retrospectivas. Coleções de fatos importantes, mortes etc. Os profissionais da mídia esmeram-se na busca de detalhes, desta vez alongando-se no período da década que se encerra. Chama-me a atenção o artigo de um cronista elegendo a morte do jogador Sócrates como o maior acontecimento desportivo da década.

Cada pessoa tem sua história, seus feitos e acontecimentos em que esteve envolvido. Cada um terá opinião sobre o que mais disse a ele respeito nesse emaranhado de ocorrências, diárias, anuais, de década vivida. E talvez neste dia, exatamente nas horas que precedem a morte de 2019, talvez se pergunte sobre o que, afinal, terá o impressionado, marcado, ao longo desse tempo. Cada um será capaz de enumerar suas impressões e justificá-las. E eu? Que terá me parecido mais impactante no período que se encerra?

Para mim três constatações emergiram da primeira década do segundo milênio. A primeira delas a constatação da pequenez de nosso mundo no universo em que se situa. A Terra não é nada quando tomada em perspectiva com o bilhões de corpos celestes que compõem o universo. Eis aí um fato mais que sabido, mas em relação ao qual não nos damos o trabalho de prestar atenção. Do alto de sua empáfia os homens entregam-se a animalesca disputa permeada de interesses nem sempre razoáveis. Desnecessária a citação de guerras, miséria, fome e tudo o mais. Agigantam-se os esforços para viagens espaciais, Marte é a próxima meta. Um asteroide gigante passa perto de nosso planeta. Astrônomos e cientistas apressam-se a divulgar sobre a catástrofe caso ocorresse a colisão. Mas isso não nos abala. Somos o homem. Conquistamos o nosso pedaço, temos a segurança de nossas casas…

A segunda contatação é sobre algo que tem chamado a atenção dos observadores. O homem é animal cuja superfície é plasmada através de um verniz civilizatório que permite a ele a convivência em sociedade etc. Entretanto, nos parece que a capa de verniz começa a rachar. Tamanha violência, sectarismos, polarizações e desrespeito à vida humana figuram como indícios de que o verniz não esteja contendo a fera interior que se liberta para a prática de agressões, atrocidades. O homem tem medo do homem, essa realidade dos nossos dias.

A terceira e última constatação diz respeito à passagem da vida. Chega-se a uma idade na qual passamos a testemunhar o desaparecimento de tanta gente que conhecemos. Os jovens que um dia conhecemos e de quem privamos amizade envelheceram. As fotografias tiradas em reuniões de amigos de ontem trazem idosos a quem, por vezes, temos dificuldades em identificar. Olhamo-nos nessas fotos, mesmo que não estejamos nelas. Fazemos parte desse grupo cujos membros tornaram-se avós, alguns até bisavós. Os antigos colegas da sinuca e do pebolim, dos bancos das escolas, são esses mesmos respeitáveis senhores e senhoras que nos olham da foto, envelhecidos. Fazemos parte de um exército em rota de deserção.

Não há como não pensar na precariedade do futuro quando a soma de anos ultrapassa a média comum dos que deixam esse mundo. Mas, há, sim, alegria. E perseverança. Amanhã será o primeiro dia de um novo ano e a criança que nunca deixou de existir em nosso peito sorrirá feliz aos raios de sol da nova manhã.

Casa de repouso

escreva o seu comentário

Daqueles remédios que se dá para corvo que parou de voar. É um desses que me receitaram e estou tomando.

Assim, assim. Com mais de 80 anos recolheu-se a uma casa para velhos - abrigo de pré-falecidos, diz ele sorrindo. Conta ter aprendido a zombar da morte ainda rapaz. Estava na boleia de um caminhão que caiu da ponte e afundou num rio. Ele não sabia nadar. Mas, não é que justamente ali, no meio da água, ia navegando um pedaço de tronco de árvore? Pois. Agarrou-se à madeira salvadora e esperou pelo socorro que, ao que se lembre, não demorou tanto. Foi por isso que, depois do acidente, aprendeu a nadar.

Nado como um peixe - completa.

De muitas coisas já não se lembra. Vive se esquecendo de coisas do dia-a-dia.  O passado vai e vem na memória, de muitos fatos faltando pedaços. Avisa que suas histórias podem ter interrupções, dai que pula de uma coisa a outra bem mais adiante porque o do meio, o entre as duas coisas, apagou-se na cabeça. Coisa de velho, completa.

Veio para o abrigo por decisão própria. A mulher morrera há algum tempo. Os filhos não queriam deixa-lo se mudar, de jeito nenhum. Mas, fez pé firme. Vida afora sempre foi sujeito de opinião forte. Veio porque quis, ninguém pode impedi-lo.

Não fala sobre os velhos do lugar. Não reclama da vida que diz ter sido muito boa. Passa os dias olhando para um pequeno lago. Contando marrecos. Tem hora que marreco parece gente. Ou gente é que parece marreco, diz.

É meu tio. Deixo-o na espreguiçadeira e sigo pelo corredor. Uma fileira de portas entreabertas, revelando quartos com velhos deitados ou sentados. Silêncio. Ouço apenas os meus passos num som que ali me parece ensurdecedor.

Na sala do médico. É um rapaz simpático, quase bonito. Informa que meu tio melhora da depressão. Já engole as cápsulas que antes cuspia. De tempos para cá voltou a comer bem. Se quisesse poderia voltar para casa. Mas, não quer. Que fazer se o homem simplesmente não quer ir embora?

No trânsito, dirigindo, penso em escolhas. Meu tio deu-se bem na vida, ganhou bom dinheiro no mundo dos negócios. De repente bateu nele o desânimo. Parece ter se cansado do mundo, quem sabe da v ida.  Então escolheu o isolamento na casa de repouso. Ali passa os dias, esperando.

O velho do ponto

escreva o seu comentário

O velho parado no ponto de ônibus trazia no olhar o desencanto pela mesmice. Para ele o mundo talvez não mudara nada nos últimos 50 anos. As pessoas que passavam por ali seriam as de sempre, seres humanos, simplesmente. O olhar do velho não era de julgamento: mostrava o desinteresse por um mundo no qual deveria seguir vivendo apesar do enfado. Talvez não ansiasse pela morte. Aceitaria o enigma da existência sem questioná-lo.

Mas, por que estaria o velho ali, àquela hora, parado no ponto por onde nenhum ônibus passaria? Não saberia ele que o ponto fora desativado desde que a engenharia de tráfego da cidade mudara o sentido do trânsito? Não fora informado de que o novo alcaide, um rapaz reformador, parecia tirar da cartola mudanças radicais que geravam protestos como aquele na ponte no qual uma moça fora atingida e morrera?

O velho parado no ponto talvez fosse insensível às notícias recentes. Seu olhar traduzia a amargura de acontecimentos passados e talvez não tivesse mais força para novidades.

Foi assim que eu o vi. De dentro do carro encarei o velho. Tamanha impressão me causou seu rosto que suspeitei que, talvez, não fosse real. Velho imaginário, então? Ou seria a minha própria imagem, parte do que fui sou e serei?

Tenho passado pela mesma rua regularmente. Não encontrei mais o velho. Aliá, nem o ponto de ônibus que, pensando bem, talvez nunca tenha existido.

Escrito por Ayrton Marcondes

1 outubro, 2015 às 10:46 am

escreva o seu comentário

Velhice

escreva o seu comentário

Tema recorrente, todo mudo fala, mas dos outros.  A “minha” é sempre intocável. Por que? Ora porque não me acho velho. Tá bom, não tão velho assim. Será que aquela mocinha bonita na sala de espera do dentista reparou em mim?

Posso estar errado, mas acho que a velhice dos atores é mais difícil. Não estou na pele deles, não os conheço, mas deve ser meio complicado um cara que já foi muito bonito ver-se agora no espelho, acabadão,  observando sinais de antiga beleza serem progressivamente apagados.

O tempo passa e a turma do oba-oba não perdoa. Você vê na internet aquela coisa de mau gosto que é colocarem duas fotos da mesma pessoa, uma quando jovem a outra na velhice. A atriz de corpo escultural, a gostosa que fez a alegria da moçada no passado, transformou-se no que se transformou. Perdeu o viço, engordou, envelheceu, é a vida. E daí? A quem importa? Todos nós chegaremos lá um dia, repita-se: é a vida.

Que dizer dos atores envelhecidos que vão sendo esquecidos, desaparecem misteriosamente das telinhas e, vez ou outra, vêm a público reclamar do abandono? O cara trabalha durante 30 anos numa organização televisiva e, de repente, vence o contrato que não é renovado. Por que? Ninguém diz claramente, mas todo mundo sabe, inclusive ele.

Quem está para sair da raia é o David Letterman, seguidor do ídolo Johnny Carlson. O Letterman faz por mais de 30 anos o Late Show no qual conta piadas e entrevista personalidades de várias áreas. Ele é o tal, mas agora vai se aposentar. Diz-se cansado e reconhece que já não pode fazer o que fazem seus competidores, gente mais nova.  A certa altura declara que a TV exige faces mais novas e por aí vai.

O diabo é saber quando parar. E existe o agravante de “poder” parar. Acontece em toda parte a tristeza da dificuldade de sobrevivência quando a velhice chega. Lembram-se das irmãs Linda e Dirce Batista, cantoras e rainhas do rádio?  Mais recentemente a Norma Benguel[A1] ?

Pois é, né?

Escrito por Ayrton Marcondes

18 maio, 2015 às 3:23 pm

escreva o seu comentário

Velhice

escreva o seu comentário

Aconteceu dias atrás. Estava eu na cozinha de minha casa quando minha mulher me perguntou se eu não atenderia ao telefone. Ao que respondi perguntando: mas que telefone? Então ela me disse que o meu celular estava tocando. Juro que não ouvi. Verdade que o celular estava em cômodo distante na casa. Mas, se ela ouviu por que eu não?

Chateado fui verificar. De fato no telefone havia uma chamada identificada. Mais chateado ainda comecei a duvidar dos meus ouvidos. Logo eu que sempre tive o tal “ouvido de tuberculoso”, audição apurada da qual sempre me orgulhei? Não seria possível estar distraído a ponto de não dar importância ao chamado ocasional de um telefone?

De lá para cá passei a prestar atenção à minha capacidade auditiva. Infelizmente ela se reduziu mesmo. Não, não estou surdo pelo amor de Deus. Continuo ouvindo bem. Ouvindo bem, mas não muito bem.  Pois é.

Outro dia um amigo queixou-se de algumas perdas provocadas pelo envelhecimento. Chegamos à óbvia conclusão de que por mais que lutemos contra o processo é irreversível. O que se dá é que em geral negamos a aceitar-nos com limitações físicas. É aquela história de encarar o carregamento de coisas pesadas quando a coluna já não demora a gritar.

Para mim o problema são os impulsos. Aceito que se sempre fiz alguma coisa serei capaz de prosseguir realizando-a. Em meio a algumas dessas atividades mais ousadas pode acontecer a surpresa de verificar que já não é tão possível fazer tudo o que já fui capaz.

Sempre detestei fazer exercícios. Nunca frequentei academias. Mas, adoro correr. Há alguns anos era capaz de percorrer 20 km sem me cansar. Acho que há uns cinco anos passei a correr 4 km. Agora são 2 km e olhe lá.  Confesso já ter me passado pela cabeça deixar de correr e passar a simplesmente andar. Vejo pessoas idosas caminhando para fazer exercício. Tenho me recusado a entrar clube dos andarilhos. Sei que a minha recusa tem prazo de validade, mas vou me aguentando.

O que muda de verdade na velhice é o olhar. Percebo que os meus olhos não são os mesmo de antes. Agora mais comedidos parecem escolher o que vale a pena ser visto. Acho até que em certas ocasiões acabam deixando de lado coisas importantes. Esse modo de ser pode simular a outras pessoas algum descaso. No fundo trata-se de comportamento geral que não posso evitar. Dias atrás um rapaz, meu aparentado, falou-me sobre um grave problema que o atormentava. Achei o tal problema tão irrelevante e não pude evitar dizer a ele. Isso não soou bem. Vali-me na ocasião da experiência que bem ou mal adquirimos durante a vida. Parece aquela história do soldado que volta da guerra e ouve falar sobre um tiro no fim do quarteirão. Mas, só um tiro?

Em meio ao processo de envelhecimento aguardo aos próximos avanços de perdas irreversíveis. Na minha família nunca houve um caso de Alzheimer. É um consolo. Quero chegar ao fim pelo mesmo lúcido, com a cabeça funcionando corretamente. Talvez seja um om jeito para ver o fim das luzes.

Escondendo a idade

escreva o seu comentário

Tem muita gente criticando pessoas que tendem a esconder a idade que possuem. Quando eu era criança um sujeito de 60 anos não passava de um velhote. Aliás, “velho” era mesmo a palavra, nada de idoso ou a terrível “melhor idade”. Ele é velho - sentenciava-se e assunto acabado.

Hoje em dia os recursos da cirurgia plástica, as tinturas para cabelos, os treinamentos em academias, a alimentação controlada e as reposições hormonais fazem milagres. Os homens perderam o receio de críticas por cuidarem da aparência. Dificilmente se vê alguém de 60 anos ou mais na televisão com os cabelos totalmente brancos. Olhe que as tinturas são tão bem aplicadas que nem se percebem os cabelos tingidos.

Eu pensava que os homens não se preocupassem em esconder o envelhecimento. Imaginava que homens dificilmente se submeteriam a cirurgias faciais ou aplicações de Botox. Ledo engano. Tempos atrás em conversa com conhecido cirurgião plástico ele me disse que boa parte de suas cirurgias são realizadas em homens. Verdade que as mulheres o procuram em maior número, mas isso não significa ausência de homens nas mesas cirúrgicas.

Há pessoas que envelhecem muito cedo, provavelmente em razão de suas heranças. Outros envelhecem, mas mantêm traços mais jovens e boa forma. Cada um carrega em suas células o DNA que determina o que acontecerá a ele/a ao longo da vida. Espera-se que a engenharia genética evolua ao ponto de se poder retardar ou até mesmo parar o envelhecimento. Não imagino como seria um mundo em que pudéssemos viver mais de 100 anos. A vida é boa, mas cansa. A morte pode ser um fantasma a nos atormentar, mas sempre figura como uma esperança de termo dos nossos problemas. Há quem diga que gostaria de morrer, mas em geral quem diz isso está apenas saturado. Morrer é algo tão definitivo e o pós-morte enigma insolúvel. Talvez por isso nos agarremos tão fortemente à vida.

Escrevo sobre isso porque o Lazio, time de futebol italiano, contratou um jogador que declara ter 17 anos de idade embora aparente bem mais.  O jogador é um camaronês cujos amigos de infância juram que ele está próximo dos 40 anos de idade. Já se exigem exames para determinar a verdadeira idade do jogador e o empresário dele justifica a aparência de mais velho pelos sofrimentos que teria sofrido na infância.

Milana, o jogador camaronês, reagiu retirando seu perfil do Face book e bloqueando suas fotos no Instagram. Além disso, deixou a seguinte mensagem: “Inveja é a fraqueza do homem, e pessoas com a alma pobre ferem os outros quando você está na Série A. Amo vocês! Força Lazio”.

Assim, assim. A ver como isso vai acabar.

Passagem do tempo

escreva o seu comentário

Contabilizamos a duração da vida em acordo com o calendário gregoriano. Promulgado pelo Papa Gregório XIII, em 1582, o calendário determina a duração do ano civil, sendo utilizado no mundo inteiro. Dias, semanas e meses fazem parte do calendário e norteiam a passagem do tempo de nossas vidas.

Bem, nenhuma novidade no que está escrito no parágrafo anterior. Todo mundo sabe disso e nada há a fazer em relação ao tempo que devora a existência. O problema é que nem sempre nos damos conta de que o tempo realmente passa e existe um fim para a vida. De repente, não mais que de repente, o jovem saudável do passado descobre-se envelhecido. Progressivamente suas aptidões físicas e mesmo mentais se reduzem. O organismo começa a pagar pesados tributos aos desgastes provocados pela longevidade. Doenças acossam, males podem vir acompanhados de muito sofrimento. A página que fecha o livro da vida em geral não contém relatos de fatos agradáveis.

Entretanto, uma boa vida pode muito bem ser coroada com período final caracterizado por muita compreensão e felicidade. Cada fase da existência tem seus prós e contras, com a velhice não é diferente. Não se trata de fazer coro à tal “melhor idade” que de melhor não tem é nada. Não custa, porém, recordar que na velhice as pessoas têm a seu favor a experiência acumulada e certo olhar mais compreensivo em relação ao fenômeno vida. Daí que não se justificam tantos inconformismos observados por aí afora. Quem não conhece pessoas que ficaram velhas e simplesmente não aceitam ou se revoltam contra as limitações trazidas pela idade?

Escrevo isso por ter contato com pessoa extremamente ativa em seu passado, dotada de muita inteligência e realizada economicamente através de seu próprio esforço. Bela história de superação pessoal a dela que vinda de baixo hoje em dia goza de conforto e tornou-se dona de seu nariz como se diz por aí. Pois nada disso serve a ela como estímulo. Vez por outra me fala ao telefone e repete o mote que adotou de tempos para cá: a velhice é triste.

De nada adianta lembrar a essa pessoa sua imensa capacidade de superação, o sucesso de sua carreira, os filhos bem criados, os muitos netos, a família que a reverencia. Tudo isso parece sucumbir diante do fantasma do envelhecimento cuja marcha progride a cada minuto e dia do calendário.

A pessoa de quem falo queixa-se do envelhecimento, mas não quer morrer. O apego à vida a mantém ereta frente à batalha que tem pela frente a cada manhã.  Sabe que o tempo não tem volta, nisso a razão de seu inconformismo.

A rebelião das pequenas coisas

escreva o seu comentário

De tempos para cá, certamente por erros de calendário, a minha idade tem aumentado. O fato é que não concordo com a progressão do calendário e me revolto com as imagens que os espelhos me devolvem. Não me reconheço nelas, definitivamente não sou eu, não tenho dúvida de que está em andamento uma conspiração atrás dos espelhos cuja finalidade é deturpar a minha aparência. O mais terrível é que a trama que se passa nos espelhos é progressiva, vejam-se os fios de cabelos brancos que aumentam a cada dia, a pele que devagar e metodicamente perde a sua flexibilidade e um mundo de transformações que acontecem à minha revelia, sem que eu as aprove.

Entretanto, isso não é o pior. De repente coisas inanimadas se rebelam contra mim como se em algum momento eu as tivesse ofendido ou a elas declarasse guerra. A situação tem se tornado tão grave que está a exigir algum tipo de atitude de minha parte, embora eu não saiba exatamente qual. É verdade que algum incauto, ao ler essas linhas, poderá deduzir que enlouqueci afinal coisas inanimadas não se rebelam etecetera e tal. Será que não? Pois afirmo que comigo tem acontecido e posso provar. Aliás, não vou citar aqui mais que o necessário. Basta dizer, por exemplo, que fatal e progressivamente, de tempos para cá os objetos, todos eles, têm ficado mais pesados. Coisas que sempre carreguei com pequeno esforço passaram a exigir cada vez mais empenho e força para que eu possa movê-las. Uma bolsa, uma pequena mesa que tenha que se arrastar de um canto a outro, as sacolas de compras de minha mulher que, como de costume, ficam a meu encargo. Todas as coisas - prestem bem atenção - todas decidiram que ficariam mais pesadas e parece não haver nada que eu possa contra essa fatalidade que tanto me apoquenta e me causa até dores musculares.

Obviamente, o problema é mais profundo e não se resume a isso. Existe um inferno de pequenas coisas que todo mundo tem a fazer em sua rotina diária e que, para mim, injustificadamente, têm se tornado difíceis. Imagine-se que algo tão simples como amarrar os sapatos de repente enche-se de dificuldades coisa que atribuo a uma engenhosa resistência dos fios ao contato com os meus dedos. Realmente é impressionante como os fios se negam aos mais simples dos nós e, mesmo quando amarrados, muitas vezes se desfazem sem a menor explicação. Tenho comigo que talvez a intenção dos fios seja a de me fazer tropeçar neles, provocando quedas com consequências imprevisíveis.

Como disse anteriormente, não é o caso de apresentar provas contra uma rebelião que se passa a olhos vistos.  Entretanto, não resisto e lamento falar sobre algo que muito me incomoda, qual seja a desavença que os zíperes passaram a ter comigo. Não sei ao que atribuir esse fato porque nada fiz contra os zíperes e sempre os tive como fiéis aliados e protetores. Pois agora deixaram de sê-lo dado que se recusam a obedecer aos meus comandos manuais de abrir e fechar. Por natureza detesto ser explícito, mas não posso fugir a isso em relação aos zíperes das calças que deram de travar justamente quando mais se precisa deles, em banheiros, por exemplo, por ocasião de realizar necessidades fisiológicas.

Deixo aqui essas observações que, na verdade, constituem-se em advertência para muita gente. Repito que há uma rebelião de coisas inanimadas em andamento e talvez pouca gente se dê conta desse fato. Lembre-se, caro leitor, que também pode suceder a você o que acontece comigo. Fique de olho no espelho, veja se não estão a mexer na sua imagem, na sua pele, na tonalidade dos seus cabelos que, misteriosamente, começam a ser refletidos brancos. Esse é o sinal do começo de uma trama complexa que poderá alterar drasticamente o ritmo da sua vida.

Fique atento, é tudo que posso recomendar porque ainda não me ocorreu solução para o grande problema que tenho enfrentado.