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Escafandristas

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Essa palavra “escafandrista” tornou-se para mim natural de repente. Morávamos num distrito, distante cerca de 40 km da cidade mais próxima. Não sei dizer que dia da semana seria. No fim de tarde meus pais receberam telefonema sobre meu irmão, mais velho que eu. A notícia não era boa: o rapaz de 21 anos fora nadar e desaparecera sob a água.

Ainda me lembro do sufoco de minha mãe para juntar umas tralhas. Meu pai corria atrás de uma condução que nos levasse na viagem. Eram os anos 50 do século passado. No fim fomos num jipe que se esgueirou pelas curvas da estrada de terra que cortava a serra.

Na casa de minha avó o ambiente era de apreensão. Falava-se baixo, vez ou outra alguém disfarçava lágrimas a custo contidas. Sobre a mesa da copa minha avó deixava alguma comida para os parentes que iam e vinham atrás de notícias. Noite adentro a situação se agravava. Ninguém se deitara. Meu pai fora para o lugar onde o filho desparecera e, desde então, não soubéramos mais nada sobre ele.

Foi em meio a madrugada que pela primeira vez na vida ouvi falar sobre escafandristas. Meu tio vinha de São Paulo, trazendo dois escafandristas que procurariam por meu irmão no fundo do lago. Nos meus poucos anos de vida aquela palavra “escafandrista” gravou-se em minha mente como sinônimo de “herói”. Escafandristas eram heróis com aqueles das páginas dos gibis, seres capazes de feitos miraculosos como o de trazer do fundo de um lago um irmão desaparecido, quem sabe milagrosamente vivo.

Devo ter adormecido. Quando acordei ouvi a voz de meu pai que voltava para a casa de minha avó. Amanhecia. Com dificuldade ele narrou detalhes sobre os acontecimentos. Os escafandristas ficaram algumas horas procurando. No fim encontraram o corpo preso a uma antiga cerca de arame, no fundo do lago.

Trouxeram meu irmão já dia claro. Naquela época costumava-se banhar os mortos antes de vesti-los e coloca-los no caixão. Na banheira da casa de minha avó meus tios depositaram o cadáver de meu irmão e deram-lhe o último banho. Não prestaram atenção ao menino pequeno que ficou num canto observando a cena. Ainda tenho na memória a expressão estática do rosto de meu irmão e os braços desgovernados que obedeciam aos movimentos provocados pelos homens que o manipulavam.

Seguiram-se o velório na sala grande, o afluxo de pessoas, a inesquecível imagem de minha mãe despedindo-se do filho. Era o fim do dia quando o cortejo, seguido por multidão, chegou ao cemitério.

Depois do enterro perguntei a um primo mais velho pelos escafandristas. Não seriam eles capazes de perfurar a terra e retirar de lá o meu irmão, trazendo-o de volta para casa?

Escrito por Ayrton Marcondes

1 abril, 2016 às 6:54 am

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