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Baú de Ossos

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Baú de Ossos

“As malas vinham (da Europa) atochadas de encomendas feitas Au Bom Marché, de Paris. Primeiro vinham os catálogos cheios de figuras de botinas de senhoras, canotiers, espartilhos, chapéus para homens, capotes, roupas de toda sorte, agasalhos, brinquedos, blusas de mulher, gramofones, perfumes – tudo numerado e com o preço do lado. O catálogo era motivo de longos debates. Feitas as escolhas, mandado o dinheiro, dentro de mês, mês e meio, no máximo dois, o malão era entregue a domicílio. Não havia nenhum cerimonial na alfândega no nosso país facílimo. As chaves já tinham chegado pelo correio. Era só abrir e – que deslumbramento! Lembro bem da última, contendo um terno de casimira azul para meu Pai - que acabou recortado para mim e herdado depois por meu irmão José; aquele costume de veludo preto e minha Mãe, realçado por soutaches negros, mais os chapéu e os sapatos  para serem usados com ele…”

                                                                                                  Pedro Nava, Baú de Ossos, Ateliê Editorial, 1999

A primeira edição de “Baú de Ossos”, do médico e escritor Pedro Nava, é de 1972. “Bau de Ossos” é o primeiro de uma série de seis livros escritos por Nava após os sessenta anos de idade. Até então, Nava podia ser considerado escritor e poeta bissexto, escrevendo ocasionalmente enquanto se dedicava à reumatologia. Mas é a partir dos sessenta que o médico passa a escrever sua grande obra de memorialista que o situa como figura ímpar na literatura brasileira. Para Otto Maria Carpeaux, Nava é mais importante para a literatura brasileira que Marcel Proust para a literatura francesa.

“Baú de Ossos” é o relato fascinante das memórias de infância de Pedro Nava. O texto em epigrafe foi transcrito das páginas 338 e 339 da edição da Ateliê Editorial.  A narrativa sobre as compras e a chegada das malas refere-se a um acontecimento ocorrido por volta de 1915 quando Nava, então menino, morava no Rio de Janeiro.

Lembrei-me justamente dessa passagem hoje, ao receber uma das várias publicações que chegam às nossas casas com ofertas de produtos. Pode-se comprar de tudo pelo telefone ou via internet. Os produtos já não vêm da Europa, são muito diferentes e demoram no máximo cinco dias para chegar. Não mandamos o dinheiro: paga-se com cartão de crédito. Não se compram espartilhos que saíram de moda, os homens mais raramente usam chapéus, os gramofones foram substituídos por home theaters e assim por diante.

As coisas mudaram as pessoas não muito. Ainda olhamos com curiosidade os catálogos e muitas vezes nos esforçamos para reprimir o desejo de comprar algo que nos agrada. E se compramos, é com a mesma vivacidade e alegria das gentes do passado que aguardamos a sua chegada.

Depois que me lembrei do texto de Nava gastei um bom tempo para localizar as páginas sobre as compras de sua família na Europa, via catálogo. Foi como um recuo no passado, retorno a páginas lidas e esquecidas:  encontrei inúmeros nomes de pessoas conhecidas por Nava e citadas por ele. Não pude deixar de pensar que embora todas mortas, continuam vivas para sempre através da pena do memorialista. É possível a sobrevivência através da literatura.

Estava terminando esse texto quando fui interrompido pelo toque do telefone. Atendi e ouvi a voz de uma moça oferecendo-me a renovação da assinatura de uma revista. Tive vontade de perguntar a ela de que lugar estava ligando, se possível de que ano vinha a sua voz metálica.

Não cheguei a dizer grande coisa. Agradeci e desliguei pensando no que aconteceria se o correio me trouxesse um catálogo de Au Bom Marché, de Paris, com data de 1915. De preferência com direito, em caso de compras, à não cobrança de taxas alfandegárias.