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Botando a vida em dia
- Fim de ano é sempre assim: a gente tenta botar em ordem as coisas para começar zerado o novo ano. O calendário governa a vida, o senhor não acha?
Esse japonês, o da banca de frutas, sempre tem tiradas filosóficas. Conhece os ensinamentos de Buda, mas não é budista. Às vezes eu o acho um tanto fatalista, observador cansado de um mundo sem remédio onde se deve buscar refúgio na espiritualidade.
Tempos atrás perguntei a ele se gostava do que fazia. Ele sorriu e disse acreditar que a vida apresenta a cada pessoa um leque de possibilidades. Entretanto, o livre arbítrio não existe porque cada ser humano é condicionado por circunstâncias que influem no direcionamento de sua vida. Ocorre, assim, uma redução do conjunto de probabilidades que se apresentam a cada pessoa. A ele sucedeu ser filho de imigrantes e crescer num meio um tanto adverso. O peso das circunstâncias, enfim as necessidades, o impediram de estudar além do curso primário. Gostaria muito de ter continuado nos estudos, mas não foi possível. A certa altura o comércio de frutas pareceu-lhe boa opção e a isso se entregou. Deu para cuidar da família, estudar os filhos, e isso não é pouco. Então, seria absurdo reclamar de algo trabalhoso, mas que deu a ele sustento. O corolário disso tudo é que ele gosta do que faz e se sente feliz por fazê-lo.
Mas, o calendário governa as vidas? Voltei da feira pensando no assunto. O fato é que somos presos a ciclos, todos eles ligados ao calendário. Veja aí a data de aniversário. A vida de cada um consiste num ciclo de anos datados pela ocasião do nascimento. A obviedade desse fato não nega a sua importância: adaptamo-nos da melhor maneira possível ao tempo decorrido de vida, contabilizado em anos. Há nisso encanto e algo de funesto: sabemos que o relógio do tempo avança e jamais retrocede por isso o envelhecimento é inevitável. Ocorre que a cada faixa de idade que se galga são inerentes complicações possíveis, as de saúde por exemplo. Em torno disso desenvolvem-se várias estatísticas muito úteis para previsão e doenças etc.
De todo modo – e aqui entro no assunto que me chama a atenção – nesta época do ano há um frenesi de fechar a conta, quitar débitos, deixar para trás problemas mal resolvidos ou simplesmente solucioná-los. As pessoas parecem querer renascer no momento da virada do ano, esperançosas de um novo tempo de realizações. À falta de outros meios, a humanidade busca se renovar na passagem de ano. Talvez por essa razão muita gente fale sobre a escravização ao calendário. Esses dias mesmo li um artigo em jornal de alguém que perguntava por que diabos a mudança de ano tem que ser acompanhada da busca de renovação. Em que momento fixou-se que o 31 de dezembro seria um marco de fim de um período e início de outro se a vida é continua e tudo, absolutamente tudo, poderá ser como antes amanhã?
Não sei. Confesso que adoro a passagem de ano. O 31 de dezembro sempre funcionou para mim como ponto de inflexão, correção de rota ou o que seja ligado à ideia de renovação. Durante o mês de dezembro estabeleço verdadeira correria para liquidar coisas pendentes e entrar no novo ano com as coisas em ordem, como disse o japonês da feira. Olhe que por trás desse comportamento existem até rotinas ritualísticas como me livrar de papéis que já não importam, limpar gavetas e mandar para o lixo coisas que já não me servem. Se tudo isso é pura bobagem, não sei. O fato é que sempre chego ao dia 31 pelo menos achando que fiz o possível para botar a vida em ordem. Pode ser bobagem, mas isso dá a esperança de um ano melhor.
Uma pequena história para terminar: há cerca de vinte anos passei por um período complicado. Acontece a todo mundo, aconteceu comigo: o mundo virou de cabeça para baixo, desenganei-me dos meus valores, enfim, me danei. Naquele final de ano, com as coisas mal paradas como estavam, decidi ir sozinho para o Rio, passar a virada na Praia de Copacabana. Como não estava bem, imaginei que aquela multidão toda geraria um momento de energia positiva. Bobagem, mas que fazer? O ano tinha sido desastroso e lá estava eu, na praia, em meio à multidão, pensando que, em poucos mintos, um novo ciclo teria início e tudo daria certo, logo adeus ano infeliz.
Foi assim: nos últimos segundos do ano, quando a multidão iniciou a contagem regressiva, dez, nove, oito, eu estava vibrando como se estivesse passando uma borracha no passado. Vieram o sete, o seis, o cinco, o quatro e o três. Pronto, adeus ano ruim. Mas, foi aí que aprendi que não se deve irritar um ano péssimo que termina: no dois um cara mandou para frente um coco enorme, com muita força. Não era possível saber quem atirou o coco em meio a uma multidão como aquela. Mas, posso dizer em quem acertou: foi bem na minha cabeça.
Assim terminou um ano que fez questão de me dar porrada até o último instante. No ano seguinte as coisas melhoraram, por isso acredito em ciclos, calendários ou o que seja.