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O torcedor
O cara, sem camisa, estava em pé junto a uma grade protetora, no lugar mais próximo do campo. Durante todo primeiro tempo ele não parou de gritar palavrões e toda sorte de obscenidades. O frio não parecia incomodá-lo. Sujeito forte e beirando os 30 de idade ele se irritava com qualquer coisa que acontecia durante os lances do jogo. O juiz, o pobre juiz, merecia dele imprecações de grande profundidade. Mas, as pessoas sentadas nas cadeiras azuis, bem no meio do campo, setor superior, não ligavam a mínima para o estranho que esbravejava.
A loucura do torcedor durou até o intervalo, quando piorou. Então, times nos vestiários, o cara ocupou-se em ofender os policiais fardados que, cachorros ao lado, estavam a postos na beira do campo. Esses homens funcionam como olhos da polícia, observando as idas e vindas da torcida. Com as costas voltadas para o campo, nada parece escapar aos seus olhares argutos, vigias experientes que são.
Pois foi a esses dois homens fardados que o torcedor sem camisa dedicou, a partir daí, a sua fúria. De fato, xingava-os com gosto. Usava o dedo indicador para sugerir obscenidades pelas quais os policias deveriam passar. E os policiais lá, retos, impassíveis, recebendo seguidas imprecações, premiados com gestos e mais gestos absurdos.
A coisa deve ter durado bem uns dez minutos. Então surgiram três homens fardados, um deles enorme, armados de cassetetes. Desceram a escada devagar e abeiraram-se da grade de proteção. Então, o maior deles segurou com força o braço do descamisado que, em vão, tentou resistir, trovejando palavras desconexas. Foi, assim, levado, pouco antes do início do segundo tempo.
Então ficamos com o jogo, de vez em quando algum palavrão proferido por alguém mais como queixa contra algum desacerto em campo que como ofensa. Tudo em ordem até o apito final do juiz quando nos levantamos e, devagar, deixamos o estádio na noite fria de ontem.
Atrás da bola
São dois gols, ambos tendo por traves pares de chinelos velhos. Entre um e outro poucos metros, as laterais do campo duas paredes acinzentadas.
Isso mesmo, o campo de futebol é um corredor, parte externa do apartamento onde mora o zelador, fundo do prédio, último andar. O jogador dos dois times é um menino que corre de um lado para outro com uma bola de borracha nos pés. No vai-e-vem, entre um gol e outro, ora ele usa a camisa de um time, ora de outro. Controlando a bola de repente ele é o craque de um dos times, depois do outro, dizendo nomes de jogadores que repete em voz alta, arfando o peito, correndo para fazer gols e mudar o placar.
Agora é o time da porta da cozinha que desce em direção ao gol do time da janela do quarto e faz um golaço; na volta o time da janela desconta, coloca a bola entre as traves do gol da porta da cozinha e o jogo está empatado. O menino corre de um lado para outro fazendo gols que soma, um a um. Até que chega ao 7×7 e se distrai com o cachorro que atravessa o campo, não sem protestos da torcida e dos jogadores. O menino, nesse momento juiz e locutor, expulsa o animalzinho do campo e prende-o enquanto irradia o fato em voz alta.
Os jogadores esperam o reinício da partida e voltam a correr. Os gols se sucedem, gol aqui, gol lá, num jogo que parece estar fadado a ficar sempre empatado. A coisa toda continua até que uma voz de mulher ecoa no estádio: é a mãe do menino que o chama para o jantar. É hora de acabar o jogo, justamente no momento em que o juiz marca um pênalti contra o time da porta da cozinha.
São 47 minutos do segundo tempo e o pênalti vai decidir o campeonato. O menino, jogador do time da janela do quarto, coloca a bola na marca de cal e olha para o gol à sua frente. No meio dos chinelos que demarcam o gol está um goleiro enorme que usa roupa preta e luvas. O menino não se impressiona com ele. Vai para a bola, bate forte e é gol. Segue-se o ruído da torcida vibrando nas arquibancadas, o abraço dos jogadores e o apito final que dá a vitória e o campeonato ao time da janela.
Mas, não há tempo para erguer a taça. A mãe vem ralhar com o menino e, em um minuto, ele está sentado diante do prato de comida, transpirando muito, mas feliz pela vitória do time da janela do seu quarto sobre o da porta da cozinha cujo técnico é ela, a mãe dele.
Fim de carreira
O tema é recorrente, mas não deixa de impressionar. Trata-se do encerramento de carreira de jogadores de futebol. Chega o tempo de parar e, em geral, a decisão vai sendo adiada, até que o desgaste físico se torna irreversível.
Talvez nenhuma atividade seja tão maldosa com os seres humanos quanto o esporte profissional. Grandes ídolos, habituados à badalação, quando não idolatria do público, da noite para o dia transformam-se em página virada, sendo condenados ao ostracismo. Afora uns poucos que, por uma razão ou outra, depois de parar conquistam algum espaço na mídia a maioria retorna ao convívio dos mortais comuns, longe dos holofotes.
O esporte profissional que agracia os melhores com fama e muito dinheiro é também um devorador de homens. A glória que se apoia em dotes físicos sucumbe na velocidade do envelhecimento. As exceções glorificadas como Pelé - o eterno ídolo - e alguns outros não passam de casos isolados.
Escrevo sobre isso após ler que David Beckham, agora com 37 anos e há cinco meses parado por conta de uma contusão, está de volta ao futebol. Beckham, um dos maiores jogadores de futebol, teve o seu ápice em 1999 quando conquistou vários títulos e recebeu premiações pelo seu desempenho. Outro jogador que tem chamado muita atenção pela proximidade do fim de sua carreira é o artilheiro Ronaldo, idolatrado pela torcida corintiana.
É verdade que nesta vida tudo tem um fim, o tempo não volta etc. Imagino que o período de transição que separa atletas do término de suas carreiras seja muito difícil. A situação envolve uma precoce, mas bem papável sensação de velhice precoce, de perda da força, talvez até de aniquilamento naqueles que não se preparam para a despedida.
O esporte profissional de que tanto gostamos e nos diverte reserva aos seus praticantes uma espécie de acerto de contas com o tempo que passa. Mas nem por isso deixa de ser belo, emocionante, um grande show que não pode parar ainda que ao preço do constante renovamento das suas peças.
Os dinheiros para a Copa-14
Não é verdade que o povo brasileiro seja desligado, ou no mínimo desatento, como se proclama por aí. Prova-o a pesquisa do Datafolha segundo a qual 57% da população desaprovam o uso de dinheiro público para a reforma de estádios para a Copa de 2014.
A notícia chega em boa hora e confronta-se com certo ufanismo tresloucado que corre solto nos meios oficiais e não oficiais. De repente o Brasil está crescendo, deixando sua condição terceiro-mundista fato que gera sentimento de que aqui tudo se consegue, versão nova da famosa “terra em que tudo dá”.
A verdade é que a poderosa FIFA encosta o país na parede e está a exigir muito mais do que, por exemplo, cobrou da África do Sul. Nada serve, o país não está se preparando segundo os combinados, o atraso nos preparativos é grande, a ladainha é longa. Embora haja muito de verdade em tudo isso, o fato é que não escapa aos brasileiros a noção exata das urgências que temos, das prioridades para emprego do dinheiro público. Estão aí os problemas de segurança, do saneamento, da saúde, da educação e, embora sempre empurrada para debaixo do tapete e maquiada por estatísticas nem sempre confiáveis, a pobreza é uma realidade.
Isso não quer dizer que não devemos realizar a Copa do Mundo ou que os brasileiros não a mereçam. O que incomoda é o artificialismo, o ufanismo de autoridades pulando e chorando de alegria com a escolha do Brasil para sediar a Copa, atitudes essas que, pelo visto, foram embaladas mais pelo entusiasmo que por dados concretos. Veja-se nesse sentido o caso de São Paulo, estado mais rico da federação que corre o risco de não ter jogos da Copa porque não possui estádios que respondam às exigências da FIFA.
Todo mundo sabe que Copa do Mundo é um grande negócio, que leva e traz muito dinheiro. Há que se considerarem os possíveis lucros, a projeção do país pela realização do grande evento e outros fatores. Entretanto, ao se propor a candidatura do país, o mínimo que se esperava era a responsabilidade diante de realização de tal magnitude. Afinal, não se tem por aqui a infra-estrura necessária, a começar por aeroportos que deem conta do movimento que há de vir.
No fim, espera-se por algum milagre e atitudes de consenso. O que não dá é para mais uma vez apelar-se para o tal “jeitinho brasileiro” o qual certamente será acompanhado de prejuízos palpáveis.
A boa notícia é que, desta vez, a população está atenta.
Matar ou Morrer
Matar ou Morrer é um faroeste de 1952, estrelado por Gary Cooper que recebeu o Oscar de melhor ator pela sua atuação. Do elenco participa a notável Grace Kelly, mais tarde princesa de Mônaco, cuja vida foi precocemente interrompida por acidente automobilístico.
Matar ou Morrer funciona de modo a dividir com o espectador a tensão de um xerife (Gary Cooper), próximo de se aposentar, que não pode escapar a uma situação insólita: exatamente ao meio-dia, chegará à estação de trem um inimigo mortal com o qual terá que de confrontar. O xerife está para se casar com a bela Grace Kelly, mas seu destino poderá mudar quando da chegada do criminoso - que acaba de sair da cadeia e vem acompanhado de dois comparsas. A direção é de Fred Zinnemann a quem se devem outras obras de relevo como O homem que não vendeu a sua alma.
Lembro-me quase sempre desse filme quando, diariamente, vejo, nas páginas de portais da internet, fotografias de lutadores que competem no Ultimate Fighting. A ideia de quem entra no cercado do Ultimate é exatamente a de matar ou morrer. Ali vale praticamente tudo. Diante da selvageria que ronda a barbárie, as proibições não parecem muito relevantes: não valem cabeçadas, enfiar os dedos nos olhos ou na boca do adversário, chutar a cabeça do adversário caído, golpear a virilha, golpear a nuca e umas coisas mais. Quem acha que as regras são suficientes para que a competição seja apenas uma peça esportiva, certamente não se deu ao trabalho de assistir a alguns embates do Ultimate. Reina dentro do ringue o clima das arenas romanas, onde a sedução dos espectadores não prescinde do sangramento dos competidores. É o sangue que confere maior realidade ao sofrimento, à submissão pela força. A diversão consiste em ver homens testados em seus limites de força e técnicas de luta, muitas vezes massacrados pelos adversários.
Não sou contra o Ultimate, mas confesso certo estranhamento com esse tipo de luta. Sempre fui um aficionado do boxe e isso me valeu uma discussão com um amigo que disse não ver diferença entre as lutas do Ultimate e o boxe. Disse-me ele que, em última instância, o boxe também é uma versão de matar ou morrer, afinal o sangue corre solto e as coisas se resolvem na porrada.
Não tive argumentos convincentes contra a argumentação do meu amigo. Daí que passamos a falar sobre cinema e o filme Matar ou Morrer pintou na conversa. Ele discorda, mas imagino que o nível de tensão dos lutadores do Ultimate seja o mesmo que o de Gary Cooper ao esperar o trem. No fim são todos humanos e para eles não difere muito se a vida é jogada numa arena ou numa estação de trem.
A mão uruguaia
Pertenço à geração que cresceu achando que o Uruguai foi um dos maiores responsáveis pelo tal complexo de vira-lata dos brasileiros. Os uruguaios estragaram a festa brasileira de 50 na tragédia que ficou conhecida como “Maracanazo”. Nomes como os de Obdulio Varela e Ghiggia, jogadores uruguaios, assombraram os sonhos futebolísticos do Brasil por muito tempo. Meu tio assistiu à final de 50, no Maracanã, e falava de Obdulio como de um super-homem. Mil vezes descreveu o tapa de Obdulio na cara do defensor brasileiro Bigode, coisa que nem mesmo sei se de fato aconteceu. E aquela escapada de Ghiggia pela direita, colocando a bola no fundo das redes do goleiro Barbosa, entrou para a história do Brasil talvez como fato mais impactante que batalhas travadas durante a Guerra do Paraguai.
Depois disso o Brasil venceu duas Copas e aconteceu 70. De repente o timaço brasileiro de 70 teve que se defrontar justamente com o Uruguai, em partida do mata-mata. Rapaz, ninguém dormiu. Não importava que os jogadores de 70 sequer se lembrassem da tragédia de 50: era a alma brasileira que estava contaminada pela derrota anterior e uma espécie de fantasma pairava sobre as cabeças. No fim o Brasil venceu o jogo e, dois jogos depois, sagrou-se campeão mundial.
Fiz as pazes com o Uruguai muito devagar. Creio que o armistício começou quando conheci Montevidéu e pude entender um pouco a natureza daquela gente boa que divide fronteira com o Brasil. E não pude deixar de me apaixonar por um país pequeno, cuja população é de cerca de 3 milhões de habitantes, comparável a algum Estado brasileiro. A partir daí acompanhei com tristeza as dificuldades do Uruguai, os reflexos da ditadura que vigorou no país por muito tempo e o verdadeiro desmanche do futebol uruguaio que levou de roldão equipes tradicionais como o Penãrol e o Nacional. E como não simpatizar com os grandes jogadores uruguaios que fizeram história nos clubes brasileiros? Pedro Rocha, Dario Pereira, Lugano, quem se esquece deles?
Então veio o jogo de ontem entre as seleções de Gana e do Uruguai. Creio que muita gente torceu por Gana, pela África, pelo complexo de miséria que, aliás, não é o caso de Gana. Outros torceram por Gana porque ainda não perdoaram ao Uruguai o feito de 1950. De modo geral, exceto pela solidariedade latino-americana, pode-se dizer que o Uruguai entrou em campo praticamente sozinho para jogar contra Gana. De fato, era visível a torcida pela seleção africana para a qual penderam os povos de língua inglesa, por exemplo.
Pois torci pelas ruas de Montevidéu, por Punta Del Este, pelo pequeno Uruguai que, enfim, recupera seu prestígio diante do mundo. Vi com alegria o renascimento da famosa raça uruguaia, a busca da vitória quando ela já parecia impossível. A mão do jogador Suárez que se levantou para impedir a entrada da bola nas redes uruguaias, no último instante da prorrogação, entra para a história como um dos momentos mais significativos de todas as Copas.
Os noticiários da noite de ontem mostraram a alegria do povo nas ruas de Montevidéu. As imagens funcionaram como bálsamo num dia de tristeza no Brasil cuja seleção foi, em campo, o retrato exato, irretocável, das limitações do homem escolhido para comandá-la.
O grande silêncio
O que há por aí é um grande silêncio. É preciso lembrar que muitas vezes o silêncio fala mais que turbilhões de palavras. O silêncio tem seus meios de se expressar: ele permite a comunicação pelos gestos, pelo olhar, tantas vezes pela simples curvatura do corpo ou um gesto apenas simbólico.
O grande silêncio de hoje começou logo após a derrota da seleção brasileira. No começo deixou-se macular pelo choro, por lágrimas e faces contraídas: o tal silêncio às vezes ruidoso nascido de revolta e inconformismo. Depois, tudo foi se tornando calmo, plácido, como um corpo que já não respira, não se bate, torna-se frio e expressivo dentro de sua profunda falta de expressão.
O silêncio que se abateu hoje sobre a nação foi o de derrota, irmão gêmeo de esperanças falidas, de desejos negados, de sonhos acabados. De tão grande, tão imenso e voraz, o silêncio tornou-se agressivo, asfixiante.
Ele está agora lá fora, nas ruas, no coração dos homens. Traz consigo o significado da decepção, de amores subitamente desfeitos, de sexo interrompido.
Hoje a nação torcedora do Brasil não pode gozar. O coito com a bola foi interrompido por uns caras mal ajambrados, coloridos de laranja extravagante, intrusos que acenderam a luz alaranjada antes da consumação carnal do desejo coletivo.
Foi assim que o Brasil perdeu e a Holanda ganhou. E agora este silêncio, a sensação aguda de algo perdido e irremediável, de colapso de talento, da falta de amor próprio de um povo que parece só ser solidário através de uma bola rolando.
Futebol e política
A seleção francesa deu vexame na Copa do Mundo e o presidente Sarkozy decidiu interferir. Sobre esse assunto o jornalista Gilles Lapouge escreveu em matéria publicada na edição do último sábado, em “O Estado de São Paulo”:
“O presidente sabe que os resultados de uma Copa do Mundo de futebol têm influência na política. Em 1998, quando a França derrotou o Brasil, a taxa de popularidade do então presidente Jacques Chirac subiu 15%. A Copa também influi na economia. Ruben van Léeuwen e Charles Kalshoven já provaram que um país cuja equipe conquista a Copa do Mundo contabiliza um aumento de 0,70% do seu Produto Interno Bruto (PIB)”.
Esses dados não são nada desprezíveis. No Brasil, o presidente da República conta com um índice de aprovação de cerca de 80%. A vitória da seleção brasileira na Copa que está se realizando na África do Sul é de interesse imediato do governo. Considere-se, ainda, que o presidente tirou da manga uma candidata à sua sucessão e as pesquisas atuais demonstram que ele está conseguindo transferir a sua imensa popularidade a ela. Do que se conclui que a vitória da seleção na Copa poderá influir – e muito- no resultado das próximas eleições.
Mas, tudo isso são hipóteses o que não significa que venham a se realizar. Em todo caso, a candidata do presidente já está à frente nas pesquisas e a oposição anda perdida quanto às estratégias a adotar para inverter o rumo das coisas.
Seria o caso de dizer que os eleitores de José Serra deveriam torcer contra a seleção brasileira na Copa do Mundo?
“Cala a boca Galvão”
Termina o jogo entre as seleções do Brasil e de Portugal. Jogo fraco, sem emoções, entediante, sonolento. Alguém ao meu lado fala em acordo entre compadres. Outra pessoa corrige: acordo de comadres.
Alguns jogadores do Brasil saem de campo com aspecto triunfante: o que importa é o resultado, a classificação em primeiro lugar no grupo. Os comentaristas das redes de televisão batem na mesma tecla: não havia porque se arriscar se o empate favorecia o Brasil. Ninguém nega a falta de criatividade dos jogadores e o futebol burocrático da seleção. Mas existe uma desculpa: é Copa do Mundo, o que vale é a classificação.
Na TV Globo, o narrador Galvão Bueno lembra que o Brasil pode não ter jogado bem, mas que, no próximo jogo, venha quem vier, haveremos de vencer. Afinal é o Brasil. O ufanismo verde-amarelo parece ser constitucional no narrador.
A frase “Cala a boca Galvão” tornou-se um dos tops da internet. Seria interessante conhecer o perfil econômico das pessoas que concordam com ela. Sendo o veículo a internet é de imaginar que maioria dos adeptos do “Cala a boca Galvão” pertença a classes de melhor formação. Se assim for o fato se justifica: é às pessoas mais bem informadas que incomoda o ufanismo de Galvão Bueno. Brasileiros capazes de enxergar a realidade do país, encoberta pela nuvem de grande progresso que se propaga por aí, são os mais descontentes com a tal “pátria de chuteiras” ou o “sou brasileiro” inscrito nas bandeirinhas pregadas nos carros.
É significativo o número de pessoas que não está torcendo pelo Brasil. O desencanto tem a ver com fatores como o ufanismo, a confusão entre patriotismo e feitos da seleção, o fato dos jogadores serem desconhecidos por atuarem no exterior e o técnico Dunga, em cujo bloco ninguém quer desfilar.
Dentro desse contexto, o ufanismo fácil de Galvão Bueno surge como piada de mau gosto. Galvão faz lembrar aquele Dr. Pangloss para quem se vive no melhor mundo possível. Talvez por essa posição utópica o narrador esportivo venha sendo tão lembrado através da campanha “Cala a boca Galvão”.
Uma coisa não se pode negar: o Galvão é proprietário de um otimismo invejável.
A dor de dente dos jogadores
O pau comeu no bar da esquina, perto de casa: um cidadão comemorou o gol da Coréia em meio a fanáticos torcedores do Brasil que assistiam ao jogo pela televisão. O rapaz do quarto andar do prédio onde moro, aquele que anda sem camisa para mostrar a enorme tatuagem no braço, estava lá e me contou que deram uns sopapos no tal cidadão. Não aconteceria não fosse a cervejada - disse-me o rapaz.
Talvez, talvez. Certa vez fui assistir a um jogo no Morumbi entre São Paulo e o Botafogo de Ribeirão Preto. Na época o anel superior do estádio era identificado como arquibancada – hoje me parece que é geral. Pois comprei uma “bancada” de um cambista e lá fui eu para o anel superior, sentando-me no meio da torcida tricolor. Acontece que fui para o estádio sem pensar no assunto e, na ocasião, vestia uma camisa verde. Foi o que bastou para o pessoal da torcida organizada determinar que eu fosse um palmeirense infiltrado. Depois de muita discussão, não tive outro remédio: tirei a camisa verde e me arranjei com uma do São Paulo que os organizados me deram. Tive sorte: os caras ainda estavam sóbrios, a cervejada veio depois e aí eu já estava integrado.
O rapaz da tatuagem no braço me disse que o cidadão que apanhou não tinha jeito de torcedor da Coréia. Nem olho puxado ele tinha - disse o rapaz. De minha parte, não sei não. Hoje em dia não se pode confiar em ninguém. Não vi o cidadão, mas pode bem ser que ele seja algum estrangeiro que esteve na Coréia ou coisa assim e se apaixonou pelo lugar. O mais provável, porém, é que seja alguém que se irritou com o jeito de jogar do Brasil e tomou a arriscada decisão de torcer contra, bem ali, dentro do bar.
É possível. Leio nos jornais que há gente torcendo contra porque tem arrepios só em pensar que, se o Brasil for campeão, o Dunga poderá ser eternizado no cargo de técnico da seleção. Aliás, escrevem que essa seleção é a cara do técnico: burocrática, laboriosa, empenhada e nada criativa. Isso equivale mais ou menos a dizer que os onze do Brasil jogaram com dores nos dentes, daí que queriam que a coisa terminasse logo para ir ao dentista. Ou coisa parecida. Mas, que os dentes atrapalharam, isso atrapalharam como se viu, tal o desapego dos valentes rapazes com a bola durante o jogo.
E os coreanos? Rapaz, sobre os coreanos o melhor é apenas dizer que são coreanos, embora eu não seja capaz de distingui-los de outros povos orientais. No fim, como se diz por aí, é tudo japonês e pronto. Agora, quanto a chutar bola pode-se dizer, sem medo de errar, que os coreanos não são do ramo. Não faria diferença se a bola fosse só um pouquinho mais achatada ou coisa que o valha. Ainda assim, um daqueles caras de uniforme vermelho de repente arrancou e meteu a bola nas redes brasileiras. Foi quando o tal cidadão comemorou ali no bar da esquina e foi agraciado com uns sopapos em nome na nacionalidade brasileira ultrajada.
O rapaz do quarto andar não vestiu a camisa para entrar no elevador. Entramos no de serviço e, notando que ele estava arrepiado, perguntei se não estava com frio. A resposta dele foi estranha:
- Pô, os nossos jogadores aguentaram sensação térmica de 5º abaixo de zero.
Não compreendi bem a relação de solidariedade e não dissemos mais nada.
Depois do jogo, na televisão só se falava da seleção. Vi jogadores dando entrevistas e pensei em dentes cariados. Jogar com dor de dente é duro, tolhe a criatividade, a coisa não anda e até a Coréia vira ameaça. Só uma coisa assim pode explicar a atuação dos brasileiros.