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Memórias

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Um amigo me dizia que nos últimas décadas de vida os fios da velhice e da infância se ligam. Para ele trata-se de dois polos equidistantes cuja fusão desafia toda a lógica.  Segundo sua teoria é por essa razão que na velhice se tornam frequentes lembranças de memórias perdidas dos primeiros anos. Acontecimentos soterrados na memória emergem de repente e com tanta força que parecem ter ocorrido recentemente.

Os médicos não compartilham da opinião do meu amigo. A aterosclerose cerebral tem como sintoma o esquecimento de fatos recentes. Pessoas de idade relatam minuciosamente fatos passados e não se lembram de coisas acontecidas de véspera. Desesperadores são os sinais do mal de Alzheimer no qual a memória se apaga progressivamente. Um norte-americano especializado em História do Brasil concedeu a algum tempo entrevista na qual declarou ter o Alzheimer. Autor de vários livros ele aguarda a perda da consciência de si mesmo, fato progressivo, irreversível e não menos terrível.

Sempre fui confuso com nomes e me vigio para saber se essa condição se mantém estável. De uns tempos para cá me parece que, na verdade, não dou a atenção devida aos nomes de pessoas que me são apresentadas. Decorre daí que minutos depois não consigo me dirigir à pessoa chamando-a pelo nome. Isso não acontece com aqueles de quem privo convívio frequente. Mas, preocupa, embora tenha sido do mesmo jeito durante toda a minha vida. Em meu favor declaro que, entretanto, tenho muito boa memória visual: sou capaz de identificar um semblante conhecido mesmo quando deixei de vê-lo há alguns anos.

Mas, como não poderia deixar de ser, tenho me lembrado de fatos passados dos quais me esquecera. Em geral trata-se de acontecimentos da minha infância nos quais retornam pessoas e cenas vívidas. Ontem, por exemplo, retornei ao grupo escolar no qual aprendi as primeiras letras. No segundo ano primário tive uma professora que ensinava muito bem com palavras e com as mãos. Naquele tempo bater nas crianças fazia parte da metodologia de ensino. Lembrei-me do dia em que escrevi uma palavra colocando a letra “n” antes do “p”. A professora, que circulava pela sala sempre pronta para entrar em ação, ao ver o meu erro deu-me um tremendo safanão e me fez repetir dez vezes a regra: antes de “p” e “b” sempre se coloca “m”. E ali estava eu, em pé no canto da sala, refreando as lágrimas e repetindo a regra para toda a classe ouvir.

Eu teria uns seis anos de idade quando dois de meus irmãos entraram em luta corporal numa garagem que havia em nossa casa. Ao ouvir o barulho da briga meu pai correu e meteu-se entre eles, separando-os. Dos dois que brigaram o mais velho morreu dois anos depois; o outro viveu até mais ou menos recentemente quando foi vitimado em acidente elétrico. Mas, com que clareza eu os revi enquanto brigavam. Eram jovens e meu pai precisou de muita agilidade e força para separá-los. Já afastados se xingavam apesar das reprimendas de meu pai que a certa altura não conseguiu disfarçar um sorriso ao ver seus rebentos já crescidos e tão fortes.

Essas pessoas estão mortas, mas a lembrança delas continua em meu cérebro que com frequência recebe visitas de gente que já se foi e fatos nos quais eu as vi tão cheias de vida.