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Trem-bala
Confesso que sou favorável às obras que resultarão num trem-bala que ligará Campinas ao Rio de Janeiro. Sei que existem prós e contras, parece até que mais contras do que prós. Em todo caso o Brasil é carente em matéria de transportes, estando o setor ferroviário inexplicavelmente abandonado. Linhas férreas ligando partes distantes deste país imenso seriam muito benvindas. Facilitariam não só a vida dos cidadãos em trânsito como o transporte de cargas, quem sabe desafogando as estradas que, por sua vez, estão em condições precárias.
Mas, ao trem-bala. Imagine você um trem ultrarrápido que permita aos passageiros o movimento entre o Rio e São Paulo sem ter que usar a ponte- aérea. Não adianta me dizer que a obra é faraônica e existem outras prioridades. Prioridade por prioridade não se construiriam estádios monumentais para a Copa do Mundo utilizando, em parte, dinheiro público. Depois, se há uma coisa que aprendi sobre o Brasil é que quando algo realmente útil deixa de ser feito, o dinheiro some do mesmo jeito. Juscelino fez aquela loucura de construir Brasília, na época endividando ainda mais o país. Bem, Brasília existe, está lá, ninguém mais discute o assunto. Sei que não é simples assim, o raciocínio é simplista demais, mas que fazer?
Demais, gosto de trens. A gente nova que anda por aí de carro talvez não conheça o encanto de uma viagem de trem. Quando menino e rapaz fui usuário da Estrada de Ferro Campos do Jordão (EFCJ) que liga Pindamonhangaba a Campos. O bonde saía de Pinda em direção a Campos - e vice-versa - pegando e deixando passageiros em paradas intermediárias. No trecho do Vale do Paraíba a composição circulava com três vagões. No trecho de serra, muito íngreme, apenas um dos vagões circulava. Esse foi o meio de transporte de muita gente durante décadas de vez que a estrada de terra era péssima. No período de chuvas a estrada tornava-se intransitável obrigando veículos que nela se aventuravam a usar correntes em torno dos pneus. A EFCJ ainda existe, mas já não tem a importância de antes. Hoje em dia o trecho de serra é percorrido por um bonde de luxo no qual viajam turistas que se encantam com as belezas naturais da Mantiqueira.
Também fui usuário, nos meus tempos de rapaz, da Estrada de Ferro Central do Brasil (EFCB) que liga São Paulo ao Rio. O trecho era percorrido por um trem de luxo, o “Trem de Aço”, nome dado pelo aspecto metálico de seus vagões. Mas, existiam outros trens de passageiros, menos chiques e bem mais baratos. Fui algumas vezes ao Rio num trem de segunda classe que passava pelo Vale do Paraíba tarde da noite. Eu embarcava na estação de Taubaté. Passagem mais barata, bancos duros, vagões apinhados por passageiros que faziam o possível para cochilar um pouco. Eu amava aquilo. Amava ainda mais o raiar do dia e a chegada do trem na Estação de D. Pedro II. Era a glória. Estava no Rio, em geral só com alguns trocados no bolso, uma aventura e tanto. Dormir? Ah, num dos bancos da própria estação, isso após um giro geral noturno na Cinelândia que por aqueles tempos fervilhava.
O Rio era lindo, o trem tinha seus encantos, a juventude fazia todo o resto. É em função disso que espero, ansiosamente, pelo trem-bala. Serei dos primeiros a embarcar e quero ter o prazer de descer na Estação de D. Pedro II. Quem sabe, nesse dia e só nele, seja decretada uma trégua no Rio para receber o trem-bala. Então será possível sair da estação e circular a pé pelo centro da cidade, sem medo, sem balas perdidas, sem camelôs, admirando aquilo que foi e será num único dia de festa.
Ah, não será mais preciso dormir no banco da estação.
Retratos
- Fiu,fiu,fiuuuuu.
O menino assovia avisando que o jogo deve parar porque está na hora do trem da Central do Brasil. As crianças correm; um rapazote espigado pega a bola e a segura debaixo do braço com ares de proprietário.
Agora o trem apita e logo a locomotiva aparece puxando os vagões. As crianças estão sentadas na calçada esperando o trem passar.
Logo depois o jogo recomeça e é a vez do sorveteiro gordo passar no meio da criançada empurrando o carrinho.
Faz calor. O sorveteiro segue lentamente até que, de repente, curva-se e cai. Dois homens que passam o ajudam a levantar-se. Um dos homens acompanha o sorveteiro até casa dele, ajudando com o carrinho.
Mais tarde o sorveteiro vai ao médico. Tem os pés inchados e o médico avisa que é problema do coração. A solução é tratar-se em São Paulo, no Hospital das Clínicas.
O sorveteiro pega o trem da manhã para São Paulo. Ninguém vai com ele à estação, nem mulher, nem filhos. No meio da viagem os pés incham demais: ele tira os sapatos e adormece. Quando acorda verifica que alguém roubou os seus sapatos. Descalço, ele desembarca na estação rodoviária e desse modo se apresenta no Hospital das Clínicas.
A última notícia sobre o sorveteiro é a do roubo dos seus sapatos. Um mês depois uma cunhada dele vai a São Paulo procurá-lo no Hospital das Clínicas. Lá é informada de que o cunhado morreu e seu corpo está no IML à espera alguém que o reclame.
Lembrei-me desses fatos hoje de manhã ao encontrar, em meio a velhos papéis, duas fotos. Numa delas vêem-se meninos sentados na calçada esperando a passagem do trem. Na outra está um homem gordo e sorridente junto do seu carrinho de sorvetes.
O sorveteiro era meu tio; a cunhada que foi procurá-lo, minha mãe. Do sorveteiro e dos meninos sentados na calçada restaram essas fotos que tornei a guardar e talvez nunca mais tenha ocasião de revê-las.
As memórias se apagam, lentamente, como as fotos que se desbotam. Do mesmo modo desaparecemos: devagar, desbotando, para sempre.