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Das tentações
No primeiro domingo da quaresma o padre leu a parte dos evangelhos que trata de tentação de Cristo. Como se sabe Ele se recolheu ao deserto onde jejuou por quarenta dias. Ao final desse período o Diabo resolveu tentar o filho de Deus.
Foram três tentativas. Na primeira delas, sabendo que Jesus tinha fome, o Diabo O incitou a produzir pães; na segunda o Diabo levou Jesus ao mais alto dos montes e ofereceu a Ele posse de tudo à sua vista; na terceira o Diabo conduziu Jesus ao alto do templo de Jerusalém e o desafiou para que Ele se jogasse de lá, pois, sendo o filho de Deus, os anjos impediriam a sua queda.
Jesus rebateu as três tentações do Diabo. Na última foi muito claro com o Anjo Caído, dizendo a ele:
- Não tentarás ao senhor teu Deus.
Após a leitura o velho padre tirou os óculos e os colocou sobre o missal. Depois fez sinais aos coroinhas que imediatamente o compreenderam e foram executar as funções de rotina. Então o padre empertigou-se, afastou-se do pequeno púlpito e desceu os três degraus de escada que o separavam dos fiéis, a essa altura sentados nos bancos da igreja.
O padre demorou-se a falar. Quando o fez estendeu o braço, percorrendo com o indicador em riste as faces dos fiéis. Após esse gesto, algo ameaçador, o padre perguntou:
- Quem aqui pode dizer que nunca sofreu uma tentação?
A resposta foi o silêncio. O padre sorriu e desafiou:
- Que levante o braço aquele que nunca sofreu uma tentação.
Mais uma vez o padre sorriu desta vez com ares de vitória. Entretanto, não se conteve e acrescentou:
- Ninguém, não é?
Foi quando entraram em função os fatores aleatórios que cercam as imprevisibilidades: uma senhora, provavelmente com mais de 80 anos de idade, levantou o braço direito.
De repente, surgia no meio da multidão uma mulher que jamais sofrera uma tentação e talvez jamais caíra em pecado. A sua presença reduziu o ímpeto do padre. O seu aparecimento era de todo inesperado, senão impossível. Quantas vezes não teria o padre, anos a fio, realizado o mesmo sermão, usando os mesmos gestos e palavras sem que alguém se declarasse isento de tentações?
A velhinha manteve o braço levantado enquanto conseguiu. O padre perdeu-se num arrazoado curioso invocando a teoria das probabilidades para explicar a ocorrência de um evento único e raro, mas não impossível. Em seguida, não convencido de suas próprias palavras, desenvolveu a tese de que em muitas ocasiões escapa-nos a natureza dos nossos pecados daí sermos capazes de negar tê-los cometido. O mesmo se poderia dizer sobre as tentações e blá, blá, blá.
Quando a missa terminou, fiquei na porta esperando pela tal velhinha que jamais fora tentada. Depois de algum tempo, lá veio ela com seus passos claudicantes. Seu rosto revelava muita firmeza e seriedade. Ao passar por mim tive a impressão de que sorria levemente, nada mais que um breve arrepio nos cantos dos lábios, sinais talvez de uma galhofa praticada com muita precisão.
Tive muita vontade de perguntar a ela como seria a vida num mundo sem tentações. Nada de olhar pessoas do sexo oposto com outras intenções, nada de tantas coisas que nos tentam e convidam ao pecado.
Mas, creio que ela não responderia. Saiu da igreja no mesmo passo e com as suas certezas. Não vi direito, mas tive a impressão de que antes de desaparecer a velhinha levantou mais uma vez o braço, dessa vez, não tão alto, mas em nível suficiente para referendar o primeiro e definitivo gesto.