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O retorno do Banguelão
O Banguelão mora na casa cujo aluguel é pago pela mulher. Ela rala duro num escritório onde o patrão é sujeito de pouca conversa e muita ação: não registra ninguém, tira o couro dos empregados e aponta a rua quando aparece qualquer reclamação.
A mulher do Banguelão sofre como uma danada. O marido não trabalha, às vezes desaparece de casa e quando volta entra exigindo ordem no galinheiro. Galo de raça, o Banguelão tem esse apelido porque faltam na sua boca, bem na frente, uns pares de dentes.
O casal tem uma filha que, segundo consta, não está de bem com o mundo. Em seus quatro anos de vida nada mais fez do chorar e ficar doente, enlouquecendo a mãe e atrapalhando as bebedeiras do Banguelão. Mas a família se sustenta, afinal ninguém precisa de regras e modelos para viver. A felicidade muitas vezes escolhe veredas tortuosas para se instalar, em certas ocasiões viceja até mesmo no meio da desgraça.
O Banguelão, como todo bom malandro, diz que trabalha fato que não se comprova. Tempos atrás saiu de casa avisando que era para sempre. Logo que ele saiu a mulher ajoelhou-se diante do altar de uma Nossa Senhora meio imprecisa – numa bebedeira o Banguelão quebrou a cabeça da imagem tornando-a irreconhecível – e jurou que o marido nunca mais passaria da soleira da porta.
Noite mais noite de solidão resolveram o problema: certo dia o Banguelão reapareceu com sua cara de sofredor e só faltou reclamar da dor dos dentes que já não possui. A mulher enterneceu-se e a filha parou de chorar só um pouquinho. Um belo prato de sopa bem quentinha e uma noite de sexo meio violento recolocou as coisas no lugar.
São passados alguns dias desde o último retorno do Banguelão. A mulher já começa a reclamar para amigas da verdadeira inanição do marido que passa os dias na frente da televisão comendo biscoitinhos que ela é obrigada a trazer para casa todos os dias.
Todo mundo sabe o fim da história, menos as amigas próximas que se perguntam por que a mulher atura um sujeito assim, um desgraçado, vagabundo e explorador. Cá entre nós, elas nunca vão entender que o Banguelão tem os seus segredos, a maioria deles revelados com sussurros nas longas noites junto da mulher.
Não há que se discutir as razões de um império onde os escravos concordam com a escravidão.
PS: essa história me foi contada por duas mulheres com uma graça que não consegui reproduzir.