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Os desaparecidos
Dizia-se dos que deixam este mundo: “foi pro caixa-prego”. Ou: “bateu as botas”. E outros ditos. O estranhamento diante da morte é inevitável. De um minuto para outro tudo para, tudo cessa. O homem que até aquele instante pensava e agia simplesmente apaga-se. No deixar de existir talvez a razão maior do estranhamento em relação a morte. Aquela pessoa que ainda agora…
Moro no 9º andar. Até poucos anos, ao acordar e abrir a janela do meu quarto dava com um casal de velhos na janela do prédio situado no outro lado da rua. Era um predinho de poucos andares, mas quando abria a minha janela, atraídos pelo ruido, os dois levantavam suas cabeças e me olhavam. Nunca reparei nas faces dos velhos nenhuma mudança de fisionomia. Pareciam ter olhares fixos, mecânicos. Observavam tudo o que acontecia na rua e talvez isso fosse um tipo de diversão para eles. Quando eu saia para o trabalho eles já tinham abandonado o posto de observação. Encontrava-os, no mesmo lugar, no fim do dia, quando tornava à casa. Estavam ali, quase imóveis, sem trocar palavras, absortos na vida que corria fora de sua janela.
Estranhei quando, certo dia, ao abrir a janela não os encontrei. Eles cumpriam rigorosamente seus horários. E a janela esteve fechada por quase um mês até, certa manhã, a mulher reassumir seu posto. Séria, parecia ainda mais envelhecida. Supus que naquele período não tivessem vindo à janela por alguma doença. Foi quando decidi perguntar ao porteiro do meu prédio sobre o que teria acontecido ao casal. E ele me respondeu:
- O velho morreu. Desapareceu.
Foi a palavra “desapareceu” que me intrigou. Desapareceu de onde? Ora, da janela. Da vida! Da paisagem. Só então percebi que havia tomado o casal de idosos como uma espécie de figurantes de um teatro da realidade. Havia-os incorporado ao meu cotidiano como se fossem autômatos cuja presença seria obrigatória a cada vez que eu abrisse a janela do meu quarto, após me levantar.
Somos seres que fazem parte da paisagem cotidiana. Desaparecemos sem aviso prévio, deixando lacunas que logo serão preenchidas. A velha da janela também não demorou a desaparecer. Como aconteceu em relação ao marido, a janela permaneceu fechada durante algum tempo. Até que certa manhã a vi aberta e um homem com um pincel na mão a coloria com tons alegres. Dias depois percebi que agora, no apartamento, viviam dois jovens que só vez ou outra se aproximavam da janela. Talvez, nessas ocasiões me vissem. Então, compreendi que eu seria incorporado à paisagem deles. Até que eu viesse a desaparecer, certamente antes deles tão mais jovens que eu.
É a ansiedade de chegar ao dia do meu inesperado desaparecimento o que tem me incomodado tanto.