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Feijão com arroz
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso escreve em “O Estado de São Paulo” sobre o que pode ser chamado de mesmice da política brasileira. De início o ex-presidente adverte que está a escrever duas semanas antes, mas aposta que os temas que cita serão atuais no dia da publicação de seu artigo. Quais são os temas? O ex-presidente cita a CPI do Cachoeira, a corrupção, os candidatos às prefeituras e suas possíveis alianças, o baixo crescimento do PIB, a inadimplência crescente, a baixa dos juros, as soluções caso a caso para reduzir os estoques das empresas etc. Trata-se, nas palavras do ex-presidente, do “marasmo” enfrentado pelos leitores de jornais, sempre às voltas com os mesmo temas. Faltou só ao ex-presidente adivinhar o futuro e também citar essa coisa terrível que veio a público, ou seja, a denúncia do ministro Gilmar Mendes de que foi coagido pelo ex-presidente Lula. No mais acertou sobre o feijão com arroz do noticiário sobre o país.
De fato é em torno desses assuntos que giram as notícias sobre a política brasileira nos cadernos dos jornais. Verdade seja dita, nos últimos dias têm surgido comentários cada vez mais frequentes, sobre erros do ex-presidente Lula, entre os quais o de levar o seu partido, o PT, a promover a CPI do Cachoeira que agora ameaça voltar-se contra os seus próprios membros. Também se critica o ex-presidente por atropelar a futura eleição para a prefeitura de São Paulo, fazendo propaganda precoce e nacionalizando a disputa que, afinal, trava-se por uma prefeitura.
Mas, nada parece ter o poder de parar o ex-presidente Lula que, curado de seu câncer na garganta, parece ter voltado com toda força ao cenário político, inclusive declarando que será candidato à presidência da República - se a presidente Dilma não se candidatar - porque não vai deixar um tucano assumir a presidência do país. E por aí segue esse homem para quem a visibilidade pública e o poder parecem ter se tornado razão de viver.
Bem, o ex-presidente Lula terá as suas razões para agir como age e não cabe discordar dele até que os resultados práticos de suas andanças apareçam. Em todo caso falo sobre as recentes atividades do ex-presidente porque no domingo de manhã estava eu com o rádio do carro ligado num programa esportivo e ouvi de um comentarista um estranho conselho dirigido por ele a Lula. Dizendo-se conhecedor de vozes porque há 40 anos trabalha com os microfones nos ouvidos o comentarista insistiu para que o ex-presidente largasse mão dessas coisas em que se tem ocupado e se dedicasse a cuidar de sua saúde. O comentarista disse isso depois de elogiar bastante o ex-presidente, mas fiquei bastante intrigado com esse outro tipo de percepção, um quase diagnóstico realizado através da voz.
Espero que o ex-presidente tenha se curado completamente do câncer e possa continuar com sua animada entrega pessoal aos meandros da política brasileira.
A Bienal e “Inimigos”
Está na berlinda a obra “Inimigos”, do artista pernambucano Gil Vicente. Da sua obra, a ser exibida na próxima Bienal de São Paulo, constam quadros em que ele, o artista, aparece assassinando algumas personalidades. Fernando Henrique Cardoso vai receber tiro na cabeça; Lula está prestes a ser degolado. Outras personalidades são assassinadas por meios diferentes.
A OAB-SP protesta por entender que os quadros fazem apologia do crime. Para a OAB as obras mostram o desprezo do artista pelas figuras humanas e o desrespeito pelas instituições que elas representam, daí incitarem ao crime. Reconhecendo que não se pode impedir que uma obra seja criada a OAB-SP afirma que deve-se impedir a exposição em espaço público de obra que afronta a paz social.
A Fundação Bienal considerou tentativa de censura a manifestação da OAB-SP e reafirmou a exibição da obra. E Gil Vicente esclarece que sua intenção foi a de descarregar o inconsciente.
Desde que o grande iconoclasta Marcel Duchamp rompeu com todas as convenções estéticas e foi acusado de matar a arte o mundo da pintura e da escultura pode entregar-se a toda sorte de experimentações. Vanguardista à frente da própria vanguarda, Duchamp assombrou espíritos e intelectos com os seus readymades. Trabalhos como “Roda de Bicicleta”, constituído de uma roda de bicicleta sobre uma banqueta branca de cozinha e “Fonte”, nada mais que um mictório de louça virado para baixo, são readymades famosos. “Fonte” chocou até mesmo os mais avançados modernistas que viram obscenidade na obra classificando-a como “não artística”. Daí por diante Duchamp não refreou sua busca de individualidade, ainda que suas obras pudessem ser entendidas como antiarte.
A citação de Duchamp é feita com o intuito de lembrar que trabalhos aparentemente estranhos podem ter significados maiores, por vezes no futuro. Não há ensaio sobre o modernismo que não se demore na obra de Duchamp, marco de época, por mais bizarra que ainda pareça ser a pessoas que nelas não vejam qualquer significado.
Entretanto, essa não parece ser a sorte dos trabalhos de Gil Vicente. As reproduções de seus quadros da série “Inimigos”, publicadas pela mídia, não diferem muito de cenas de crime que estamos habituados a ver. Copiam a realidade, acrescentando a ela um único ingrediente capaz de chamar a atenção: o fragrante de assassinato envolve personalidades conhecidas. Nada mais atrai a atenção para “Inimigos” do que isso.
E aí? Quem tem razão? De que lado ficamos? Para começar, no caso pouca importam as intenções do artista de vez que obras têm personalidade própria e, quando terminadas, independem de quem as produziu. No mais, a exaustiva polêmica, de um lado sobre censura, de outro de afronta à paz social, talvez careça de sentido. O fato é que Bienal não deveria expor “Inimigos” por uma razão bem mais simples: trata-se do mais puro kitsch. Por isso, e apenas por isso, a obra não vale ser exposta.