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Rubem Braga

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Quando nada ocorre para escrever e o pensamento parece embotado o melhor é correr os olhos nos títulos de livros enfileirados na estante. Pega-se um ou outro, folheia-se, leem-se alguns parágrafos e, sem que se perceba, de repente o mundo é outro, entra-se no universo acolhedor da literatura.

Lugar seguro esse, não tão calmo, mas seguro. Aqui uma pitada de Cervantes, ali um poema de Borges que vale reler mil vezes. Mais à frente um conto de Cortázar, isso sem esquecer Shakespeare que envia Macbeth, espada em riste e sobre o seu cavalo, entrando pela janela. Há também Faulkner e Hemingway, as poesias de Drummond, a capa com o nome de Pirandello e a Morte Rubra que de repente é lançada diretamente das páginas de um conto de Poe.

Circulando entre livros, apartado da realidade para sobreviver dentro da ficção topa-se com Rubem Braga. O livro é velho, alguém riscou a capa, provavelmente foi comprado em algum sebo. Trata-se de uma coletânea com os melhores contos de Rubem Braga, assim os consideraram aqueles que os colheram em outros livros do cronista e os puseram nesse, preparando-o para esta manhã obtusa em que se busca alguma coisa sem saber bem o quê.

Abre-se o livro numa página ao acaso, aí está o tal casal no ponto de ônibus, o casal da “vida estreita”, noutra página o menino que faz perguntas ao vendedor de passarinhos, mais à frente o caso do homem que passou seis dias trancado com a amada, sem atender telefone. Vai-se passando de uma crônica à outra, absorto, esquecido da hora de sair para o trabalho, pensando se afinal a realidade não passa de uma invenção maldosa de alguém que tinha muita raiva dos homens. Isso dura até que dois carros batem na esquina, o barulho interrompe a leitura justamente quando um narrador encontra um par de luvas femininas atrás de uma pilha de livros. É quando, muito irritado, você sai à janela e começa a gritar, dizendo que as pessoas não devem bater carros, é preciso ler Rubem Braga e coisas assim.

Não demora a que você repare que ninguém o ouve. Então você volta aos livros, desconfiado de que talvez você não seja real e tenha saído das páginas de uma crônica do Rubem, você personagem dele, feito para esta manhã cinza e fria, para o enredo em que um cara não tinha o que escrever e se perdeu olhando para os nomes dos livros da sua pequena biblioteca.

Escrito por Ayrton Marcondes

19 agosto, 2010 às 12:02 pm

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Finados

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Há quem não acredite em certas histórias acontecidas em pequenas cidades do interior e as atribuam à fabulação de escritores. É no que dá ser ficcionista: quem escreve um livro corre o risco de, a partir daí, não ser tomado a sério pela tendência de inventar tudo o que diz.

Não se pode negar que isso de fato aconteça a alguns escritores. Perdem eles o passo da realidade. Conta-se que para Balzac suas personagens eram tão vivas quanto as pessoas reais que o cercavam. Quando ele se reunia com sua família dava notícias sobre suas personagens: aconteceu isso e aquilo com fulano etc.

Outro ponto é que muito do que se conta sobre habitantes de lugarejos precisa ser datado: mesmo as pequenas comunidades foram assoladas nas últimas décadas pelos meios de informação. Daí que se descaracterizaram. Com o surgimento de uma juventude integrada com o mundo exterior os hábitos mudaram e personalidades estranhas ou arredias deixaram de ter espaço para as suas esquisitices.

Feitas essas ressalvas considere-se a existência de pessoas, moradoras de lugarejos, que passam suas vidas no interior de suas casas sem jamais saírem à rua. Estou falando sobre períodos de 30, 40, 50 anos de reclusão voluntária durante os quais essas pessoas ocupam-se de funções domésticas. Algumas delas quase nunca são vistas; outras costumam vir à janela que dá para a rua, onde passam grande parte do tempo. Da janela observam o escasso movimento e têm oportunidade de conversar com outras pessoas. Passam-se assim décadas num estilo de vida que certamente será incompreensível para a maioria das pessoas que vive nas cidades.

Conheci algumas pessoas assim, de saudosa memória. De uma delas, em particular, lembrei-me hoje. Era uma senhora que envelheceu tendo como moldura o batente da janela de sua casa.  Podia-se vê-la ali, todos os dias, excetuando-se os raros períodos em que sua saúde era abalada por um mal sempre menor. Da janela ela via um pedaço do pequeno mundo em que vivia: um trecho de rua não asfaltada e algumas casas defronte a dela.

senhorajanelaReligiosa, a senhora fazia suas orações em horas certas, tendo o rosário à mão e não sendo interrompida pelos passantes que conheciam os seus hábitos. Muito calma e comedida, a mulher da janela agitava-se numa única ocasião durante o ano: às vésperas do dia de finados. Nesse dia desaparecia ela de sua janela durante largos períodos.  Sabe-se que então passava horas no jardim que mantinha nos fundos de sua casa, cuidando das flores que mandaria para o túmulo do filho.

Ao amanhecer do dia seguinte, muito cedo, lá estava ela no seu posto, aguardando a chegada das suas comadres. Quando elas chegavam, repetia-se um ritual que a cada ano atraía mais observadores: a senhora da janela rezava em voz alta; depois, pegava as flores, beijava uma a uma, e as entregava às comadres recomendando que fossem levadas ao túmulo do filho. Então fechava a janela e só voltava a ser vista no dia seguinte.

Com o passar do tempo o lugarejo cresceu: a rua foi asfaltada e as casas defronte à janela deram lugar a prédios. Envelhecida, a senhora já não vinha tanto à janela. Por fim as comadres morreram e a doença que não poupa ninguém prendeu a senhora ao leito.

A senhora da janela curiosamente morreu e foi enterrada num dia de finados. Os tempos eram outros e já ninguém conhecia a sua história. Meses depois a casa onde ela viveu foi vendida e no lugar dela existe atualmente um prédio cujos moradores nada sabem sobre o passado do lugar.

Lembrei-me da senhora da janela hoje, dia de finados. Quando for ao cemitério vou procurar pelo túmulo dela e quem sabe acenderei uma vela.

Pelos velhos tempos.

Bastardos Inglórios

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O diretor Quentin Tarantino é, antes de tudo, um mestre da narrativa. O seu filme “Pulp Fiction” continua sendo uma aula cinematográfica sobre a arte de contar histórias, desenvolvendo-se no mais genuíno estilo dos grandes romancistas.

Em acordo com esse retrospecto não se pode dizer que Tarantino nos surpreende com o seu mais recente filme, “Bastardos Inglórios”. É preciso lembrar que o maior fantasma dos criadores está na necessidade não só inovar como renovar-se. Por essa razão tantas vezes encontramos os chamados escritores de um só livro, aqueles que após a repercussão de uma obra não conseguem repetir o feito. Descontem-se da afirmação anterior os casos em que novas produções, ainda que boas, infelizmente não superam as expectativas do público.

Tarantino não padece desse mal. Para ele a criação surge como universo amplo no qual todo experimentalismo é possível. Com essa concepção filmou “Bastardos Inglórios”. O filme é dividido em cinco histórias cujo fio condutor é o embate entre nazistas aos judeus, tendo como pano de fundo a Segunda Guerra Mundial. Mas é justamente aí que Tarantino inova: ele trata o seu tema como obra exclusivamente de ficção, sendo que em nenhum momento tenta ser coerente com a história real.

É importante frisar que o diretor jamais pretende navegar nas águas da história, repetindo a abordagem usada em outros filmes sobre o holocausto. De fato, Tarantino não fez um filme de denúncia e jamais teve a intenção de mortificar a platéia com cenas de sofrimento de um povo perseguido. Acima do fato histórico e suas conotações está a ficção e nela situa-se o universo no qual Tarantino trabalha.

Quentin Tarantino toma emprestado a um dos maiores traumas experimentados pela humanidade apenas o contexto em que aconteceu e é absolutamente infiel aos fatos reais que o cercaram. Sob seu comando nomes como os de Hitler, Goebbels e Goering não passam de figuras dentro de um processo ficcional cujos destinos em nenhum momento se ligam aos das personagens reais que atuaram na Grande Guerra. Dentro desse contexto as peripécias da trama e mesmo o seu desfecho tornam-se imprevisíveis ao expectador dado pertencerem unicamente à imaginação e desejo do criador.

“Bastardos Inglórios” não é um filme sobre a violência do grande conflito mundial. Antes, trata-se de uma trama na qual o elemento mais forte é a sequência brilhante de diálogos entre as personagens. Há mais tensão na situação entre um inglês disfarçado de nazista e o nazista que o identifica que na ação do grupo de soldados de origem judaica, chefiados pelo incrível tenente Aldo – personificado por Brad Pitt -, conhecidos por torturar e matar soldados alemães.

Há quem tenha visto no filme de Tarantino a intenção de mostrar vingança dos judeus contra os nazistas. Nada mais absurdo. A seu modo o diretor expõe as fraquezas humanas de alemães e judeus mostrando-os capazes dos mesmos delitos cujas proporções dependem de quem dispõe de mais força e poder. A catedral do nazismo é mostrada em sua imperfeição e loucura através de um Hitler fanatizado por fatos menores que o genocídio que se pratica diariamente. Goebbels nada mais é que um aspirante de cineasta que produz filmes para sua glória pessoal e para que Hitler aprove.

Nesse mundo de vaidades, intrigas, violências, medos, perseguições, racismo e fanatismo, ninguém escapa porque o homem é um ser imperfeito e engaja-se em ações que permitam a ele dar vazão aos seus instintos.

Num filme de tal dimensão destaque-se o trabalho dos atores e a produção impecável. Brad Pitt está bem como o tenente Aldo Raine no comando dos judeus que matam nazistas. Mas o grande papel fica por conta do coronel nazista Hans Landa, interpretado por Cristoph Walts que persegue e localiza judeus. O irretocável Landa desde o início nos propõe a direção de suas ações : ele nos avisa que seu mérito é não pensar como alemão e sim como os judeus, daí o seu faro para encontrá-los onde quer que se escondam.

“Bastardos inglórios” é um filme sobre cinema e no cinema se resolve. Consegue isso em dois planos: no universo da ficção trabalhada e nas cenas finais da trama engendrada por Quentin Tarantino.

Página em branco

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papelbrancoOra, aí está você, bem acomodado, página em branco ou um editor de textos ao seu alcance. Como nos videogames, você é o herói dessa história e a sua missão é escrever alguma coisa, um texto qualquer. Esse o seu desafio.

Ótimo, você é maníaco por games, mas de cara percebe que este é diferente, uma vez convertido em herói seus poderes tornam-se ilimitados, pode escrever o que quiser, até mesmo ferir o papel com um rabisco. Entretanto e como em tantas outras situações, você não sabe usar o poder e, cá entre nós, não tem a mínima idéia do que vai escrever. Mas como todo herói de respeito, não deixa que ninguém perceba o seu impasse, sorri e resolve pensar um pouco enquanto suas mãos brincam com essa arma terrível que é a caneta.

Bem, a primeira coisa em que pensa é em contar algo que aconteceu a você e aí surge o primeiro problema: melhor uma história alegre ou triste? Viu só, com um balanço de cabeça e uma ajeitada de cabelo você já saiu de onde estava e atingiu o limiar da comédia e do drama. Você consulta o seu espírito, não, o dia hoje talvez não esteja para piadas, o melhor será um drama, talvez até mesmo uma tragédia. Claro, existem tantas histórias de tragédias, que tal a de um ônibus cheio de crentes despencando numa ribanceira, como se explica que tanta gente de fé morra junto e na mesma hora? Não, isso não, talvez não seja o caso de contar uma coisa assim, lembre-se de que filmes sobre acidentes não estão muito na moda, o mesmo em relação aos de incêndios e terremotos. Monstros? Ah, também não, hoje em dia eles só sobrevivem naqueles seriados japoneses para a televisão, meu Deus como você acha aquilo ruim, não, não, você não escreveria sobre monstros.

Diabo, você já pensou tudo isso e não escreveu nada! Bem, agora surge uma idéia: um sujeito numa estação de trens, as estações têm um ar romântico e de aventura, pode dar certo. Você parte para o primeiro parágrafo, conta que o sujeito está na estação, vai descrever o lugar onde ele está ou não? E o tal sujeito como ele é? Ou poderia ser ela? Caso seja ele, pode ser herói ou vilão; para ela o melhor é que esteja agoniada, esperando por alguém, isso dá um conto de amor, não, você brigou com a sua namorada e não quer falar sobre amor. Ok, então é ele. Velho ou moço? Bem ou mal vestido? Rico ou pobre? Vai falar do seu passado? Olhe que dá tempo enquanto ele espera o trem. Aliás, você não se decidiu ainda, ele está chegando ou partindo? Se estiver partindo, pode estar indo por vontade própria ou fugindo. Claro, você tem razão, alguém que foge é mais interessante, escreva isso, ele é um homem, bem vestido, moço e está partindo, tá bom, fugindo. Mas existe alguém atrás dele? Terá cometido um crime? O trem deve chegar logo para que ele escape da polícia? Pense bem, isso causa impacto, você pode descrever o estado de espírito do homem, não gosta da idéia? Então que seja, ele está fugindo de si mesmo, de um ciclo de vida que se encerrará assim que pegar o trem. Um sujeito moço, bem vestido, fugindo de si mesmo, numa estação, esperando o trem, você pretende embarcá-lo? Vai descrever a chegada do trem, a emoção da sua personagem ao deixar a cidade em que vive? Ou seria melhor inventar, na hora da chegada do trem, um grito às costas da personagem, dado por uma pessoa que chega de repente, alguém que não estava na história, alguém de quem ele estava fugindo? E esse alguém é um homem ou uma mulher? Meu caro, você não queria falar de amor, mas esse é o tipo de papel para ser vivido por uma mulher. Uma mulher gritando numa estação, tentando impedir a fuga do homem que ama, sinceramente, isso dá Ibope. Ah, claro, trata-se de uma mulher, não, nada de descrever o aspecto dela, se é bonita ou feia, na cabeça do leitor uma mulher assim só pode ser bonita, na verdade ela terá o jeito que cada leitor idealizar para a mulher que ele gostaria que o impedisse de embarcar num trem. Além disso, você sabe que uma mulher correndo e gritando compõe com um homem pronto para embaraçar uma cena de ação, daí nesse parágrafo não haver lugar para descrições, não acha?

Nossa, veja aonde você chegou. Ele está para embarcar e ouve o grito dela. E agora, você acha que ele volta? Aí você decide. Se preferir algo piegas, ele volta e, se voltar, meu Deus, que abraço. Se não, ele vai embora, ela não chega a tempo, o trem na verdade não pára, ele pula para dentro do vagão e ela fica na plataforma desesperada porque o perdeu para sempre.

Se a história acabou? Depende de você. Essa pode ser só a cena inicial, agora ele já está no trem, você resolve para onde ele vai, o que vai fazer; na página trinta você conta algo sobre a infância dele, na cinqüenta volta ao assunto, mas só para retomar à cena da estação e explicar porque ele estava deixando a mulher que amava e fingindo estar fugindo de si mesmo. Na página setenta e cinco talvez você abra o jogo com o seu leitor e o informe que o tal sujeito era um pastor que abominou Deus, um filósofo ou, ainda, um criminoso. Mas cuidado, um cara assim talvez não deva passar da página cem, ele foi só um começo, nesse meio tempo surgiu gente bem mais interessante na sua história, melhor arrumar um acidente ou uma doença que o mate antes da página cento e um.

Como? Não gostou da história? Achou banal, repetitiva, sem emoção? Bem, você pode jogá-la fora, faça o que quiser com ela. Ora, se quer mesmo comece um novo texto. Fique à vontade quanto ao seu futuro. Sabe, para dizer a verdade não era você, mas sim eu quem tinha à minha frente uma página em branco. Vamos, por favor, não se ofenda, mas você foi a personagem que escolhi: um sujeito incapaz de contar uma boa história e que apela para clichês. É que gosto muito de games, principalmente desses em que sou o herói e recebo a missão de povoar páginas em branco com gente como você.