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Gibis
De repente entra na minha casa um amigo que não vejo desde a minha infância. Não o vejo pessoalmente, melhor dizendo. Ele é repórter/apresentador de TV de modo que, vez ou outra, topo com ele no vídeo da televisão.
Brincávamos juntos na infância. Amigos inseparáveis quando o pai dele trazia a família para passar férias em nossa cidadezinha. Paulistano, o amigo vivia na capital, de onde me contava novidades. Eram os anos cinquenta.
Rever alguém a quem se esteve muito ligado há muito tempo tem lá suas complexidades. Não se atualizam décadas em poucos minutos. Do onde você mora, ao que você faz, quantas vezes se casou, se tem filhos, que foi feito de fulano e sicrano, seus pais morreram há muito, e outras coisas, passa-se ao presente no qual nos encaramos envelhecidos e olhando para trás.
Mas, o que mais me impressionou nesse reencontro foi a lembrança dele sobre a minha coleção de gibis. Ele se lembrava muito bem dela, mais que eu que, de a muito, a havia sepultado na memória.
Relatei ao meu amigo a tragédia a que foi submetida aquela linda coleção. Em casa tínhamos um baú enorme onde eu abrigava os gibis, em sequência numérica de suas publicações. Ali estavam o “Pato Donald”, o “Fantasma”, o “Mandrake”, o “Brucutu”…
Acontece que meu irmão, mais velho que eu, gostava de gibis, mas não tinha o menor cuidado com eles. Para começar dobrava não só as capas como cada página que acabara de ler. Devolvia-me as revistinhas totalmente irreconhecíveis. Desesperado, achei a solução: levar o baú para a casa de um primo que se casara e morava perto. Pelo menos uma vez por semana eu aparecia na casa do primo, abria o baú, dava uma olhada nos gibis e ficava muito feliz por tê-los sem segurança.
Mas, o tempo passa. Eis que nasceu o filho do primo que logo-logo ultrapassou os dois anos de idade. Eis que certo dia chego à casa do primo e encontro pedaços de gibis para todo lado. O pequeno se apoderara das revistinhas e as destruíra. Era o fim da coleção.
Anos mais tarde, já morando em São Paulo, costumava tomar ônibus no parque D. Pedro. Eis que havia ali uma banca de revistas usadas na qual encontrei verdadeiro tesouro: eram republicações de gibis. O “Fantasma”, o “Tarzan” e o “Mandrake”, por exemplo, estavam à venda e desde o número 1. Não foram necessários mais que poucos segundos para renascer em mim o amor por aquelas joias. Assim, refiz pelo menos parte da minha antiga coleção.
Mas, a vida dá voltas. Houve o momento da minha separação conjugal e a mudança dos gibis para minha nova morada. Pois, certo dia, fui visitado por um primo que, até hoje, se orgulha de sua enorme coleção de gibis. Ao ver o que eu tinha propôs-se a comprá-los. Sei lá o que me deu na hora. Ele era - e ainda é – tão louco por gibis que decidi dar a ele tudo, sem nenhum custo.
Ainda hoje me lembro de meu primo, colocando os gibis no carro e me perguntando se eu pensara bem no que estava fazendo. Na verdade, eu não pensara. Andava meio desanimado e fui tomado por um desprendimento imbecil.
Foi esse o fim da minha ligação com os gibis. Contei isso ao amigo que me visitava e percebi nele certa reprovação. Guardava ele, na memória, as imagens daqueles gibis tão bem guardados, tesouro da minha infância.
O meu amigo se despediu e, sozinho na sala, pus-me a refletir sobre o amor que temos às histórias de nossos heróis dos quadrinhos. Há pouco faleceu Stan Lee, grande criador de heróis dos quadrinhos. Mas, agora, as crianças talvez já não experimentem a gostosa sensação e ter em mãos os gibis que nos davam certa sensação de posse sobre os heróis das historinhas. O espaço dos gibis foi alongado por produções cinematográficas que também acabam sendo vistas na televisão. Pode ser algo meio retrógrado, mas creio que toda essa tecnologia talvez tenha roubado um pouco do frisson que experimentávamos com os gibis.
Novos heróis apareceram, outros foram esquecidos. Houve um momento em que a DC Comics publicou, nos gibis, uma grande guerra na qual muitos heróis morreram. Era o descarte de alguns e a renovação do mundo ficcional envolvendo a presença de heróis.
Filmes sobre o Batman e o Superman têm sido realizados com bons resultados. Eu gostava mais deles nas tiras de papel, mas que fazer? Agora estão para trazer às telas um grande herói: o Capitão Marvel. A ver no que vai dar.
De todo modo as histórias dos gibis são inesquecíveis. Quando o Fantasma circulava pela região portuária, travestido de Sr. Walker - O Fantasma que anda, aquilo era demais. Ele se sentava junto a um balcão, cercado por marujos mal-encarados e bebendo, e pedia um copo de leite. Era o início de uma confusão na qual o Fantasma esmurrava muita gente, deixando neles a marca impressa pelo “anel da caveira”.