fim da vida at Blog Ayrton Marcondes

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O tempo não para

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As pessoas morrem, simplesmente. De repente, desaparecem. Tudo aquilo pelo que lutavam, suas crenças, ideologias, posicionamentos, tudo para o vácuo do deixar de existir. Para aquele que viaja no barco de Caronte nenhuma salvação é possível. O barqueiro do Hades navega pelas águas do Aqueronte numa viagem sem volta para seus passageiros.

Foi Dante quem nos revelou o inferno. Sem ele não saberíamos o que esperar após uma longa vida de pecados. Virgílio nos apresenta aos nove círculos do inferno, os últimos reservados aos piores pecadores. Um rapaz a quem conheci apaixonou-se pela Comedia de Dante. Tanto que passou a temer o segundo Ciclo, o dos ventos, reservado aos que na vida se perderam pela luxúria. Temia ele, pelas suas paixões, terminar no lugar onde as os pecadores são arrastados por ventos tremendos que os jogam e os ferem. E assim por diante.

Mas, nada se sabe sobre o lado de lá. Dante deu forma ao espetáculo que nos aguardaria após a morte. Muitas vezes reli o conteúdo dos círculos, tentando me enquadrar em algum deles caso exagerasse em meus pecados ao longo da vida. Aliás, por falar em pecados, penso que a entrada no céu seja quase que uma utopia. É preciso coragem, força e uma vida de conduta ilibada para atender aos pré-requisitos exigidos para a felicidade eterna.

Mas, aos que se foram, estejam onde estiveram. Na medida em que envelhecemos avolumam-se as deserções. Pessoas que conhecemos desaparecem como que por mágica. Não é raro que sejamos avisados da ocorrência de algum velório. Quase sempre um espanto diante da notícia. Mas ele? Ela? Se não estava doente… Logo nessa época em que as pessoas vivem mais e melhor…

O assustador nos desaparecimentos é o brusco cessar do pensamento. Pessoas que estão envolvidas nas suas contingências são bruscamente apartadas de seus planos, preocupações. Há pouco faleceu um amigo, proprietário de terras. Vivia em função de seus negócios, preocupado com o desenrolar de decisões, muitas delas na esfera jurídica. Perto dos 80 anos mantinha-se atividade. Reclamava de tanto trabalho e responsabilidades. Falava constantemente com advogados, viajava a suas propriedades.

Aconteceu a ele numa dessas manhãs. Ao sair do elevador tropeço e bateu a cabeça. Levado ao hospital, sucumbiu em consequência da hemorragia cerebral. A morte apartou-o de tudo. O homem que precisava sempre de mais um dia para resolver suas coisas desapareceu, simplesmente. Sem aviso prévio.

A vida é assim. A morte também.

Eclipse

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Amanhã haverá eclipse lunar. Em nossa cidade, quando escurecer, a Lua já estará encoberta. São Jorge não estará no céu. Restarão as estrelas, pontinhos luminosos cuja luz terá viajado por milhões de anos para chegar até nós. Daí que estrelas já desparecidas, quem sabe engolidas por algum buraco negro, continuarão a brilhar no céu, enternecendo nossas noites.

Ah, se pudéssemos brilhar depois de mortos. A luz emanada pelos nossos corpos circularia por aí, errante, último sinal do que um dia fomos e sentimos. Mas, o homem é mesmo um ser condenado a eclipsar-se. De repente o ciclo se fecha. Somos seres de datas marcadas. Uma delas é a do nosso fim.

Certa vez ouvi de uma astróloga que viveria muito. Ainda jovem encarei o futuro como algo muito distante, impalpável. Agora percebo meu engano. O túnel da vida só parece longo, mas chegamos ao fim dele depressa.

A morte talvez nada mais seja que um sobressalto. Como será morrer? Há quem tenha medo de morrer. Uma amiga, que já dobrou os 80, me liga com frequência. O assunto dela é a morte. Sente que está próxima. Mulher agitada não confessa, mas não se habitua com a letargia de seus movimentos. Incomoda-a a fraqueza dos músculos. É dura a constatação de não haver mais nada a se fazer. Missão cumprida. Agora permanece à espera nesse banco duro de estação por onde, sabe-se lá quando, embarcará no trem da morte.

Recomendo a minha amiga que deixe de pensar na morte. Deixe a morte de lado! Ela nega que a morte a apoquente. Está feliz com o que viveu, dentro da proposta que se fez ainda na mocidade. Espera o momento de se encontrar com Deus a quem se dedicou vida afora.

Mas, sim, é o medo inconfessável que a transtorna. O deixar de ser, de existir. O não mais fazer parte. O próprio nome gravado numa lápide. O silêncio do depois.

Enfim, todos nós chegaremos lá, de um modo ou de outro. Há os que abreviam sua estada neste mundo. Partem inesperadamente. Leva-os a doença, o acidente, o suicídio e tantas outras formas de desertar do mundo. Mas, o epílogo é sempre o mesmo.

Minha amiga me faz pensar em meu próprio fim, assunto que absolutamente não me interessa. Nem me interessam as hipóteses sobre o que poderá existir depois da morte. O nada? O inferno? O céu? Um livro onde estarão anotados os meus pecados e serei submetido a um julgamento sumário? A Justiça divina?

Amanhã olharei para o céu, para ver o eclipse da Lua. Depois de desaparecer nas sombras ela ressurgirá como faz em cada noite, renovando nossas esperanças de um dia após o outro, indefinidamente.

Ainda ela

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Sim, a morte. Não ia falar sobre ela, mas…. Não é que se apresentou de novo? Sem avisar. Inesperadamente. Sorrateira como sempre. Como sempre não se fez anunciar. Sem pródromos.  Assim, num piscar de olhos, certeira, roubou mais uma vida. Talvez ela tenha prazer nisso. Aprecia instalar a desordem, desconstruir. Deixar atônitos os que presenciam seu ato. Intimidá-los. Avisar a cada um que talvez seja ele o próximo. Rir a cambalhotas, olhando os que choram em torno do caixão. Futuros pendentes. Mais hora, menos hora, virá buscá-los. Um a um.

Desta vez foi uma velha conhecida a quem eu não via a algum tempo. Semana passada fez contato. Estava bem, apesar da idade. Uma dorzinha na perna esquerda, quem sabe a coluna, quem sabe a necessidade de trocar o colchão. Falamos sobre noites mal dormidas, travesseiros altos, preocupações disparatadas que nos agoniam justamente nas madrugadas. Ensaiamos iniciar conversa sobre os filhos, mas depressa desistimos. Por onde andarão esses que se alongaram de nós? Em que mundos estarão metidos? Eles que agora nos olham como pessoas de ontem. Ultrapassadas? Não é que de tempos para cá as crias têm-se revelado mais pacienciosas com a gente? Imagine que me pegam pelo braço toda vez que entro e saio do carro - disse a amiga.

Ninguém sabe. A amiga não sabia. Talvez enquanto falasse ao telefone comigo a morte a espreitasse. Talvez a morte tenha uma agenda com datas, horários. Para ela não contam os interesses daqueles que levará. Se a amiga precisasse de mais um dia, só mais um dia, para terminar algo essencial, então não se poderia conceder a ela o benefício de algumas simples horas?

Estive no velório. Observei a face emudecida da amiga. Recordei as últimas palavras que trocamos. Não derramei lágrimas. Abracei o viúvo inconsolável. Estava junto ao caixão quando pressenti que a morte estaria bem ali a observar-nos. Afinal, quem entre nós seria sua próxima vítima?