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Finados
De repente descubro que não me agrada ir a cemitérios. Aliás, comecei a me dar conta disso tempos atrás, em Buenos Aires. Sempre achei o cemitério da Recoleta fantástico com suas tumbas grandiosas. Mas, nessa última vez cheguei a percorrer uma das alamedas daquele cemitério e notei que não me sentia bem. Nunca antes a presença da morte se me apresentou tão pungente. Percebi que já não via túmulos, mas esquifes, na verdade os mortos que dentro deles repousavam. Esse contato direto com a morte, a certeza do fim incondicional, o ponto final de todos os sonhos e esperanças pesaram-me demais. Percebi o quanto a minha segurança de estar vivo e pensante era precária e isso me fez abandonar rápidamente o cemitério em desesperada corrida de retorno ao mundo dos vivos ao qual pertenço. Deixei a morte para trás e não me voltei para contemplá-la. Operára-se em meu íntimo uma transformação, a ruptura com a possibilidade de vir a morrer, súbita valorização da vida à qual sempre trato com tanto desdém. Desde então tenho passado ao largo de cemitérios, desviando os olhos dos muros que dividem o mundo em duas partes que não se conciliam. A vida e a morte são antípodas irreconciliáveis.
Hoje, dia dos mortos, não fui ao cemitério. Confesso que não visitar os túmulos da minha gente, não adorná-los com flores, não acender velas, tudo isso deu-me a sensação de livrar-me de um incômodo. Para que ativar a memória em relação a situações que envolveram os agora mortos? Para que lembrar-me de que daqui a algum tempo também eu morrerei e farei parte da legião de dentro dos túmulos, isso se não vier a ser cremado?
Ledo engano. Pois não me livrei dos mortos como inicialmente me parecera. Minha mãe foi a primeira que veio me ver, ela tão magra e saliente, tão lutadora e carinhosa. Falou-me sobre coisas de que me havia esquecido e quase levou-me às lágrimas com tanta ternura. Depois apareceram meu pai e meus irmãos. Pelas dez da manhã chegaram os tios dando-me notícia sobre o atraso de meus avós que em breve chegariam.
Por volta do meio-diap toda a família estava na minha casa, com os assuntos de sempre, alegres, festivos. Eram tantos que muitos não tinham onde se sentar. A essa altura eu já me esquecera de que eles estavam todos mortos, tamanha a vivacidade com que falavam e se locomoviam.
Creio que só no meio da tarde começaram a partir. Abracei-os um a um, pensando que, afinal, vida e morte não têm limites. Quando o último parente se foi me vi só e reparei que passará horas na mesma poltrona, quase sem me mexer, imerso em longa peregrinação através da minha memória. Então chorei, profundamente, pelas perdas do passado, por toda a gente que ficou para trás e nunca mais verei.
Finados
Ontem foi o dia de Finados. Perguntava-se, na véspera do feriado, se choveria. Alguém disse: Finados é dia de chuva. Choveu.
Há um poema de Arturo Torres Rioseco, traduzido por Manuel Bandeira, cujo título é “Elegia de uma Rua”. Nele o poeta fala sobre o retorno a uma rua pela qual passou o enterro de pessoa amada. São passados vinte anos desde o dia do enterro e as pessoas que a levaram também já se perderam no fim da estrada. No fim diz o poeta:
Foi por aqui que a levaram,
Por esta rua passaram.
Levamos os mortos e seremos levados. Finados celebra a morte, o fim do sonho e de toda a ilusão. Celebra as memórias de pessoas a quem tantas vezes nos esquecemos, mas permanecem vivos como se em viagem distante da qual não retornarão.
No lugarejo onde nasci acreditava-se que a chuva fizesse bem aos mortos. Chover em dia de enterro seria dádiva para aquele que morreu. Foi assim com a moça que tomou veneno em nome da paixão não correspondida; com o homem que bebeu e foi arrastado pelo cavalo porque o pé ficara preso ao estribo; com o padre de quem se dizia amasiado com uma filha-de-Maria; com o menino pequeno levado pela enchente do riozinho. Só não choveu no enterro do homem que surpreendeu o tio na curva da estrada e matou-o com um tiro por vingança. Por ele as nuvens não choraram.
Naquele tempo os cadáveres eram velados em casa. O morto era banhado e vestido pelos parentes próximos que, depois, o colocavam no caixão. Terminados os cuidados o morto era posto à visitação, dentro do caixão, na sala. As pessoas iam e vinham, lágrimas nos olhos, uns por amor, outros por obrigação, outros ainda por simples curiosidade. E o morto, indiferente, mãos sobre o peito, adornado por flores e o crucifixo talvez útil a ele na viagem para o céu.
Em menino vi muitos mortos. Ainda agora revejo meu irmão que se afogou em seu banho de cadáver na casa de minha avó. Lembro-me do rosto pálido, os braços inertes que se deixavam ir para qualquer lado quando viravam o corpo. Esperando do lado de fora meu pai andava de um lado a outro, perdido. Minha mãe, terço na mão, talvez rezasse pelo do acontecimento incompreensível.
Meu irmão foi levado na mesma rua por onde mais tarde passaram os caixões de meus pais. Eles se perderam no fim da estrada. Finados me faz pensar que num dia, não muito distante, também eu me perderei.
O dia de finados
“O trânsito engarrafado nas ruas próximas a cemitérios e a exploração dos comerciantes de flores, que cobravam preços muito acima da tabela fixada pela SUNAB, foram as maiores dificuldades que os cariocas enfrentaram ontem para reverenciar os mortos. A frequência foi maior nos cemitérios da Zona Norte, nos quais, entretanto, era mais reduzido o número de flores levadas aos túmulos e sepulturas. Na Zona Sul, muita gente preferiu aproveitar o dia de calor intenso para ir ao banho de mar.”
A notícia acima, que poderia perfeitamente adaptar-se ao dia de hoje, foi publicada na edição do dia 03/11/1967 do extinto jornal “Última Hora”. As pessoas iam aos cemitérios como vão hoje e certamente continuarão a ir, no futuro. Passados 44 anos desde o dia da publicação da notícia acima o mundo continua redondo e girando do mesmo modo. O Brasil já não é o mesmo daquela época, a ditadura militar então vigente duraria até meados dos anos 80 e a democracia republicana seria instalada para sobreviver, mal e bem, até os dias atuais.
A diferença marcante entre os finados de 1967 e o de hoje está gravada nas lápides de túmulos e sepulturas: grande parte das pessoas que foram homenagear aos mortos no ano de 1967 hoje estão enterradas, merecendo a visita e lembrança de pessoas queridas. Do que se conclui que os homens passam, a vida passa e o mundo segue em sua linha irreversível de noção de eternidade.
Finados é um bom dia para não se pensar na morte propriamente dita, mas na vida e a duração dela. De repente - e surpreendentemente – observa-se que o tempo passou e toda aquela juventude acompanhada de seus arrivismos cedeu lugar a movimentos mais lentos e estudados, nascidos da abdicação muscular à força que desfrutavam antes. Envelhece-se devagar e maciamente, irreversivelmente. A cada dia deixa-se para trás algo que foi muito importante ao seu tempo, mas que agora torna-se distante apesar de suas prováveis e duradouras consequências. De repente - é sempre importante frisar esse “de repente” – está-se envelhecendo e, finalmente, velho. Aquele vaso de plantas que se levantava com facilidade, as malas de viagem carregadas até com desdém, o movimento febril das pernas que impulsionavam balanços estapafúrdios ao corpo, para onde foi a espontaneidade da juventude que em algum ponto da trajetória foi perdida irreversivelmente?
Então, está certo: finados é mesmo um bom dia para se pensar na vida e na duração dela. Não é data para que passemos a nos preocupar com o fim, mas sim de como viver bem o tempo que nos falta até chegar a ele. Nada de olhar para as lápides dos nossos ancestrais e nos imaginarmos mais perto ou mesmo em meio a eles, transformados em nada mais que um nome inscrito numa pedra com datas de começo e fim da vida. Na verdade a lápide com o nosso nome inscrito não nos interessa porque então teremos deixado de ser e sabe-se lá o que há depois da vida, se é que realmente existe algo nos esperando depois.
Minha mulher tem uma amiga que diz que no dia de finados os espíritos estão livres e em festa. Não sigo o mesmo credo da amiga da minha mulher, mas gostaria muito que as coisas se passassem bem do jeito que ela diz: espíritos livres e em festa. Quem sabe, assim, meus pais e irmãos já mortos poderiam passar esse dia contentes e em ambiente festivo, possuídos pela alegria de quem já não precisa da vida para existir. Não sei dizer como isso seria possível, mas se o credo da amiga de minha mulher garante que é assim, por que duvidar?
E volto ao trânsito do dia de finados, em 1967. Imagino o calor no Rio, as pessoas paradas nas ruas ou em cemitérios, outras dando as costas ao dia e preferindo o sol e o mar. Muitas daquelas pessoas estão vivas, muitas outras já morreram e não me dói nada constatar que a mesma coisa esteja a se repetir no dia de hoje, enquanto me sinto eterno e olho para a cidade silenciosa que desperta para mais um dia de finados.
Finados
Se bem me recordo foi há cerca de uns quatro anos que deixei de prestar atenção ao dia de finados. Deixo o dia transcorrer normalmente e quanto a ir ao cemitério nem pensar. Não se sabe se há vida após a morte ou se os nossos mortos esperam com alguma ansiedade que visitemos os túmulos deles na data convencionada para isso. Também não se sabe se é verdade que missas realizadas em intenção de pessoas mortas facilitem a existência das almas deles do lado de lá. Outro dia acompanhei a minha mulher a uma missa de sétimo dia e fiquei impressionado com uma família que conversava e ria o tempo todo. Estavam lá pela morte de parente. No momento em que o padre pronunciou o nome do parente, levantaram as mãos como se estivessem em algum show de rock ou coisa que o valha. Existem, verdadeiramente, modos diferentes de encarar a morte.
De minha parte sempre encarei a morte com naturalidade. Como todo mundo, temo por situações como doenças prolongadas e sofrimento para morrer. Entrei no mundo chorando, mas não quero sair dele aos prantos. Uma morte seca e vadia, dessas irreverentes e inesperadas é tudo o que peço. Nada de coisa planejada, com final previsto e data certa: morte e pronto.
Mas, fujo do meu assunto que é o dia de finados. Para mim o problema desse dia começa mais ou menos ao anoitecer. É como se de repente imagens passadas se refizessem com cor e som absolutamente perfeitos. Sabe aquela noite gelada, as ruas desertas, molhadas de chuva e com muito barro, o alto-falante da igreja matriz fazendo ecoar a tristeza enorme da hora do Angelus, sabe aquele mundo perdido da infância em lugarejo do interior onde as lâmpadas dos postes nada mais são que um aviso de que a noite será longa, sabe tudo isso? Pois começa assim, com a imersão nesse mundo, a minha noite de finados.
O sino da igreja que bate pesadamente é o sinal para que os mortos se levantem e desfilem pela minha memória. Não posso evitá-los, nem ignorar o que dizem. De repente estão de novo como eram, bons, maus, lúcidos, obtusos, humanos. Eu os recebo e cai sobre mim o peso da transitoriedade, a sensação de que tudo passa e termina. Revejo pessoas a quem conheci, seus hábitos, enfretamentos, problemas, discussões, paixões, amores e não posso deixar de pensar que tudo isso simplesmente acabou, foi selado por lápides.
Rever mortos nos traz a sensação de que damos valor demais ao que somos e à nossa existência. Levamos por demais a sério os nossos problemas, mesmo os insolúveis que só a morte resolve. Por isso, faço o possível para tornar o dia de finados nada mais que uma data no calendário.
Obviamente, não é bom pensar nisso. A coisa é meio depressiva e não vale a pena errar entre túmulos, ressuscitando mortos. Por isso, o melhor é deixá-los lá, onde viveram: o Jorge, com o bar aberto até de madrugada, vendendo, todas as noites, cerveja para um único cliente; o Onofre tendo ataques epilépticos; o Toninho Maneta, bêbado de cair, batendo na mulher dele; o Hilário, italiano que veio para o Brasil após a segunda guerra, perseguindo gatos que eram o seu prato favorito; o Tião Alfaiate que era capaz de ruindades calmas; enfim, aquela gente toda que viveu lá, gente que anda pelas ruas de pouca luminosidade, enfiando os pés no barro, mortos que usam a memória dos outros para continuar vivendo.
Finados
Há quem não acredite em certas histórias acontecidas em pequenas cidades do interior e as atribuam à fabulação de escritores. É no que dá ser ficcionista: quem escreve um livro corre o risco de, a partir daí, não ser tomado a sério pela tendência de inventar tudo o que diz.
Não se pode negar que isso de fato aconteça a alguns escritores. Perdem eles o passo da realidade. Conta-se que para Balzac suas personagens eram tão vivas quanto as pessoas reais que o cercavam. Quando ele se reunia com sua família dava notícias sobre suas personagens: aconteceu isso e aquilo com fulano etc.
Outro ponto é que muito do que se conta sobre habitantes de lugarejos precisa ser datado: mesmo as pequenas comunidades foram assoladas nas últimas décadas pelos meios de informação. Daí que se descaracterizaram. Com o surgimento de uma juventude integrada com o mundo exterior os hábitos mudaram e personalidades estranhas ou arredias deixaram de ter espaço para as suas esquisitices.
Feitas essas ressalvas considere-se a existência de pessoas, moradoras de lugarejos, que passam suas vidas no interior de suas casas sem jamais saírem à rua. Estou falando sobre períodos de 30, 40, 50 anos de reclusão voluntária durante os quais essas pessoas ocupam-se de funções domésticas. Algumas delas quase nunca são vistas; outras costumam vir à janela que dá para a rua, onde passam grande parte do tempo. Da janela observam o escasso movimento e têm oportunidade de conversar com outras pessoas. Passam-se assim décadas num estilo de vida que certamente será incompreensível para a maioria das pessoas que vive nas cidades.
Conheci algumas pessoas assim, de saudosa memória. De uma delas, em particular, lembrei-me hoje. Era uma senhora que envelheceu tendo como moldura o batente da janela de sua casa. Podia-se vê-la ali, todos os dias, excetuando-se os raros períodos em que sua saúde era abalada por um mal sempre menor. Da janela ela via um pedaço do pequeno mundo em que vivia: um trecho de rua não asfaltada e algumas casas defronte a dela.
Religiosa, a senhora fazia suas orações em horas certas, tendo o rosário à mão e não sendo interrompida pelos passantes que conheciam os seus hábitos. Muito calma e comedida, a mulher da janela agitava-se numa única ocasião durante o ano: às vésperas do dia de finados. Nesse dia desaparecia ela de sua janela durante largos períodos. Sabe-se que então passava horas no jardim que mantinha nos fundos de sua casa, cuidando das flores que mandaria para o túmulo do filho.
Ao amanhecer do dia seguinte, muito cedo, lá estava ela no seu posto, aguardando a chegada das suas comadres. Quando elas chegavam, repetia-se um ritual que a cada ano atraía mais observadores: a senhora da janela rezava em voz alta; depois, pegava as flores, beijava uma a uma, e as entregava às comadres recomendando que fossem levadas ao túmulo do filho. Então fechava a janela e só voltava a ser vista no dia seguinte.
Com o passar do tempo o lugarejo cresceu: a rua foi asfaltada e as casas defronte à janela deram lugar a prédios. Envelhecida, a senhora já não vinha tanto à janela. Por fim as comadres morreram e a doença que não poupa ninguém prendeu a senhora ao leito.
A senhora da janela curiosamente morreu e foi enterrada num dia de finados. Os tempos eram outros e já ninguém conhecia a sua história. Meses depois a casa onde ela viveu foi vendida e no lugar dela existe atualmente um prédio cujos moradores nada sabem sobre o passado do lugar.
Lembrei-me da senhora da janela hoje, dia de finados. Quando for ao cemitério vou procurar pelo túmulo dela e quem sabe acenderei uma vela.
Pelos velhos tempos.