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Tinha o olhar de cachorro abandonado…
Confesso que esperei com alguma ansiedade os comentários sobre a morte do ex-prefeito de São Paulo, Sr. Celso Pitta. Em primeiro lugar porque a morte de qualquer pessoa leva-nos a uma atitude silenciosa, quando não respeitosa. Em segundo porque no caso de Pitta não há que se negar que a sua trajetória pública foi marcada por uma série de inconveniências, acusações graves de corrupção e até mesmo prisão. Mas, ele morreu. Então tive a minha curiosidade aguçada sobre o comportamento da imprensa que não o poupou em vida. Como o tratariam na morte? Desde logo me pareceu que no caso de Pitta não deveriam ser condescendentes com ele. Sou dos que teimam em lembrar-se do passado das pessoas que muita gente escolhe apagar quando elas morrem. É assim que surgem nas famílias verdadeiras santidades, pessoas santificadas após a morte porque o luto serve para apagar a lembrança de falcatruas, maldades e outras irresponsabilidades praticadas por elas quando vivas.
Entretanto, devo dizer que fiquei verdadeiramente embasbacado com o artigo de autoria do Sr. Fernando Barros e Silva, publicado no jornal “Folha de São Paulo”, edição de 23/11/09, com o título “O ocaso de Pitta”.
De fato, o texto do Sr. Fernando Barros dá o que pensar não sobre os fatos ligados à trajetória de Pitta, mas quanto ao tratamento dado à pessoa do falecido ex-prefeito e as circunstâncias em que esteve envolvido.
O texto começa falando sobre a morte já em vida do ex-prefeito, alvo da operação Satiagraha, filmado em casa sendo preso de pijamas. Depois desce às terríveis relações entre Pitta e Maluf, seu mentor que o levou do anonimato à glória e desta à ruína. “Pitta foi empregado de Maluf na Eucatex antes de ser seu empregado na vida pública” – afirma o articulista, assim resumindo as relações entre os dois homens públicos.
Mas é no final que Fernando Barros se expressa com maior ênfase sobre o passamento de Celso Pitta:
“A secura das mensagens de pêsames que a família recebeu mostra o ostracismo em que se achava. Trinta pessoas foram ao enterro. Seria útil contar melhor a vida deste político acidental, que tinha o olhar de cachorro abandonado e parecia triste até quando sorria”.
Longe de mim defender o indefensável Celso Pitta que surgiu por aí sob a tutela de Paulo Maluf e cuja vida pública é de triste memória. Mas, não me lembro de ter lido obituário da natureza do escrito pelo Sr. Fernando Barros e Silva em relação a políticos falecidos nos últimos anos no Brasil, ainda quando corruptos e tudo o mais. Esse “tinha o olhar de cachorro abandonado” teria sido convenientemente utilizado quando o homem estava vivo. Podería-se, então, escrever: “tem o olhar de cachorro abandonado…”.
No fim, fico me lembrando daquele dito popular tão usado por aí, o tal “chutar pessoas mortas”. O senhor Fernando de Barros e Silva que não me perdoe: mas, foi o que ele fez.
O velho centro
Um editorial da “Folha de São Paulo” de ontem e artigo de Clóvis Rossi, publicado na mesma página, falam sobre a degradação do centro de São Paulo, citando o caso do Liceu Coração de Jesus hoje cercado por consumidores de crack. Clóvis Rossi afirma que um pedaço da cidade está morrendo referindo-se à decadência do Liceu que, segundo informa o editorial, de seus 3000 alunos do passado atualmente conta com apenas 288. Confessa Rossi não ser simpático ao saudosismo, mas que não há como deixar de cair uma lágrima por um ou outro desmanche que acontece na cidade.
Falar sobre o passado nem sempre representa saudosismo. O que não se pode é descambar para a pieguice, chorando por um mundo melhor que, infelizmente, está acabando.
O que também não se pode é deixar de lado o testemunho sobre o passado só porque existe a ameaça de cair no saudosismo. Pois, eu vi o Liceu funcionando a todo vapor no seu período áureo embora nunca tenha estudado lá – um primo foi aluno do Liceu. Falar sobre isso inevitavelmente me devolve outra época, povoada por pessoas que de repente se erguem de seus túmulos para refazer um pedaço da história da cidade de são Paulo.
Meu tio morava num apartamento localizado na Alameda Nothman, bem trás do Liceu. Naturalmente a cidade era outra e o centro tinha o seu viço. Para nós que morávamos no interior e vínhamos para São Paulo o Liceu era, por assim dizer, passagem obrigatória. Na antiga Estação Rodoviária, localizada perto da Estação Sorocabana, desembocavam os ônibus vindos de toda parte do país, inclusive os da região onde morávamos. Isso quer dizer que ao desembarcar na Rodoviária tínhamos que passar pelo Largo Coração de Jesus – onde fica o Liceu - para chegar ao apartamento do meu tio.
Percorri esse caminho inúmeras vezes e sou capaz de descrevê-lo em detalhes. Andava-se por ali com segurança, pelo menos até o início da noite. Nada da bandidagem ostensiva e de consumidores de drogas. De manhã, bem cedo, a região era ocupada por grande número de estudantes que vinham para as aulas no Liceu. Parece-me vê-los agora, conversando na praça, chegando ou saindo do colégio. O mundo tinha cor, cores puras, nada da degradante sujeira que se vê por ali hoje em dia. Respirava-se um ar nem sempre puro, mas de todo modo não tão poluído como o de agora. E dali se ia serenamente a pé até o Largo do Paissandu, região chique onde ficavam os melhores cinemas, bons restaurantes e passavam bondes elétricos que corriam pela Av. São João afora.
Era o velho centro e não há como não se sentir saudades dele. Não se trata de pieguismo porque é inevitável pensar que, de algum modo, nós mantemos pelo menos um dos nossos pés lá, parte do que fomos permanece no passado, imutável e fazendo parte de uma paisagem e coreografia muito viva em nossas memórias.
Dá, sim, muita pena a nós que amamos tanto o centro da cidade vê-lo assim, em tão injustificável degradação. Dá pena ver ruas tão belas com aquelas próximas à Praça da Sé sitiadas por camelôs.
Dá muita saudade, sim. O velho centro que conhecíamos continua bem vivo, permanecendo em nossas memórias como aquele Beco da poesia de Manuel Bandeira: imóvel, suspenso no ar.
A importância da literatura
A Editora Cosacnaif acaba de lançar o primeiro volume da coleção organizada pelo italiano Franco Moretti, professor de literatura na Universidade de Stanford, cujo tema central é o romance. Esse primeiro volume tem como título “A cultura do romance” e reúne, nas suas 1120 páginas, vários ensaios de diferentes autores . A ele seguirão outros quatro volumes com os seguintes títulos: “As formas” (volume 2), “História e Geografia” (volume 3), “Temas, lugares e heróis” (volume 4) e “Lições” (volume 5). Participam da obra 178 colaboradores de 99 instituições do mundo inteiro, entre eles vários escritores e críticos.
Em seu conjunto a obra tem, como dela se espera, intenção totalizante, visando dentro do alentado de suas páginas englobar o que se escreveu sob a forma de romance nas diferentes culturas.
O primeiro volume é iniciado com um texto de Mario Vargas LLosa que diz a que vem a obra já no seu título: “É possível pensar o mundo moderno sem o romance?”. Llosa discute não só o papel do romance como o da literatura em geral. O escritor peruano destaca a função da literatura enquanto meio de comunicação entre os seres humanos permitindo-lhes o diálogo independentemente das funções que desempenham, nacionalidades e circunstâncias que os cercam. Em particular só o romance disponibiliza o conhecimento totalizador e imediato do ser humano. E por essa linha segue Llosa, destacando a importância da literatura enquanto denominador comum da experiência humana.
Llosa se propõe demonstrar que a literatura, em especial o romance, não é um passatempo de luxo: trata-se, segundo suas palavras, “de uma das ocupações mais estimulantes e fecundas da alma humana, uma atividade insubstituível para a formação do cidadão numa sociedade moderna e democrática, de indivíduos livres, e que, por isso, deveria ser inculcada nas famílias desde a infância e deveria fazer parte de todos os programas de educação como uma das disciplinas básicas”.
Para mim um aspecto maior da literatura – e por extensão do romance – é o convite permanente à transcendência, lembrando e desobrigando os seres humanos à mesmice de suas rotinas diárias. Ela torna possível uma viagem ao redor de si mesmo através de experiência ficcional que mantém sólidos vínculos e pontos de contato com a experiência pessoal de cada leitor, abrindo-lhe novas dimensões e diversificando suas formas de analise e raciocínio sobre a realidade que o cerca. Mas, e mais que isso, a literatura converte-se em tábua e salvação quando o espírito está a sucumbir diante de mazelas inevitáveis. Nesse sentido basta-nos lembrar a elevação de espírito que se atinge com a simples leitura de um poema através da qual torna-se possível a transferência do estado de espírito do poeta ao leitor. É quando a literatura nos permite a saciedade dos sentidos proporcionando a plenitude dificilmente atingida por outros meios de sensibilização do espírito.
Há quem negue os efeitos mágicos do romance a da poesia embora seja certo que eles existem. A literatura pode, sim, salvar-nos em momentos cruciais das nossas vidas nos quais a beleza parece ter-nos abandonado e um muro de incógnitas se interpõe aos nossos horizontes. Provas desse fato existem e muitas. Uma delas está no noticiário de hoje, no qual se destaca a entrevista de Sidney Rittenberg, publicada pelo jornal “Folha de São Paulo”. Rittenberg, único norte-americano aceito por Mao Tsé-tung no Partido Comunista Chinês, foi intérprete do próprio Mao e de Zhou Enlai, além de chefiar a rádio China Internacional.
Durante a Revolução Cultural, Rittenberg criticou a burocracia do regime chinês pelo que foi condenado e esteve dez anos preso. Sendo o nosso assunto de hoje a literatura é interessante ouvir o que disse Rittenberg sobre o período em que esteve preso:
- Na solitária, consegui manter a saúde mental recitando poemas, lembrando de histórias, atuando performances cômicas. A literatura defendeu a minha sanidade.
Trata-se de afirmação à qual nada precisa ser acrescentado. Tem razão Vargas Llosa quando sugere que a literatura deva ser inculcada nas famílias desde a infância e fazer parte de todos os programas de educação: não se pode negar às pessoas, não importa quem sejam elas, a ligação direta com a possibilidade de transcendência. Para dizer pouco, a literatura torna as pessoas melhores, dá-lhes espírito crítico e opinativo mais aguçado e contribui largamente para que possam exercer maiormente as suas cidadanias.