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A “ordem natural”
Não há coisa que nos faça pensar mais sobre a brevidade da vida que olhar velhas fotografias. Temo que as fotos digitais contribuam para enfraquecer as memórias fotográficas. Hoje em dia qualquer pessoa dispõe de uma câmera que permite a ela clicar a vontade. Nada parecido com o que ocorria em passado recente quando os filmes das máquinas tinham 12, 24 ou 36 poses. Então era melhor pensar um pouco antes de bater a foto dada a limitação do número de negativos. Agora se fotografa tudo por conta da existência de dispositivos dotados de grande capacidade de armazenamento.
O problema é justamente que fotos digitais ficam armazenadas em HDs, CDs e pen-drives. Nem todo mundo imprime essas fotos porque pode-se acessá-las no computador a qualquer momento. Essa situação é bem diferente daquela em que levávamos os filmes para serem revelados e as fotos escolhidas eram impressas. As minhas fotos antigas estão bem guardadas em caixas as quais procuro quando quero vê-las.
Pois é. O problema começa quando por acaso damos com uma dessas caixas e decidimos dar uma olhada no conteúdo delas. De repente, temos nas mãos fotografias de pessoas já mortas com quem convivemos no passado. Revê-las, ainda que estáticas no papel fotográfico, nos desperta lembranças. É quando revivemos situações das quais participaram pessoas desaparecidas. Lembro-me, por exemplo, da casa de meus pais e de coisas que eram importantes para eles na época em que viveram. A morte colocou fim a preocupações que para eles se figuravam eternas. Empenhados nas questões do dia-a-dia não nos permitimos raciocinar sobre o fato de que, afinal, tudo termina até mesmo a vida.
Queira-se ou não a regra que comanda esse mundo é a “ordem natural” contra a qual nada se pode fazer. Nascimento, vida e morte fazem parte de um pacote que recebemos ao sermos concebidos através da união carnal de nossos pais. A partir daí as águas do rio seguem inexoravelmente o seu curso e nada pode deter a passagem do tempo. No fim das contas talvez o que reste daquilo que somos nada mais seja que uma fotografia amarelecida guardada numa caixa.
Mas, que fazer se essa é a “ordem natural” sobre a qual não podemos interferir?
Fotografia digital
Num ensaio sobre a fotografia Roland Barthes fala sobre sua impressão diante d uma foto de Jerônimo, o irmão mais novo de Napoleão. Diz ele ter pensado: estou vendo os olhos que viram o imperador.
Barthes enfatiza que a fotografia retrata a morte. Trata-se da fixação de um momento que nunca mais se repetirá cujo significado depende do motivo fotografado. Mas, ao tempo em que escreveu Barthes não conhecia a fotografia digital. Era a época em que os filmes permitiam no máximo 36 fotos e o fotógrafo via-se obrigado a pensar se valia ou não a pena clicar.
A fotografia digital tem a vantagem de tornar praticamente ilimitado o número de fotos a serem tiradas. Memórias eletrônicas de muitos mega permitem o armazenamento de quantidades fantásticas de fotos. Barthes dizia que não tirava fotos porque gostava de ver imediatamente o resultado do que fazia e as fotos demoravam a ser reveladas. Para quem não está habituado ao processo antigo, você fotografava, esperava chegar ao fim do filme, procurava um ambiente escuro para retirar o filme da máquina e, depois, o levava a um laboratório para a revelação. Em geral o processo de revelação demorava pelo menos dois dias, só tendo sido abreviado quando surgiram máquinas de revelação automática. Ao tempo de Barthes a única opção para ter fotos na hora eram as máquinas polaroides cujo resultado fotográfico em geral deixava a desejar.
Por todas as razões citadas as máquinas digitais surgem como ferramentas muito úteis para os fotógrafos amadores que têm nelas meio simples de uso e diversão certa. Entretanto, as novas máquinas fizeram com que o mundo fosse inundado por montanhas de fotografias que podem ser vistas nas telas de computadores sem que haja necessidade de revelá-las. O problema é que com tantas fotos torna-se inevitável a banalização da fotografia. Veja-se, por exemplo, o quanto somos induzidos a observar, praticamente em tempo real, os milhares de fotos publicadas diariamente na internet. Um protesto no Egito, a nudez de mulheres protestando nas ruas, um fim de tarde no Alasca, um combate na Síria, o pronunciamento de um político na ONU, tudo isso é retratado e distribuído ao mundo em poucos segundos de modo que, queiramos ou não, há sempre um olho vigiando as pessoas e devassando a intimidade delas. E que dizer dos pobres recém-nascidos que são fotografados à exaustão? Um simples banho de uma criança de poucos meses torna-se motivo para 20, 30 ou mais fotos. Que impressão terão, quando adultas, essas crianças que hoje estão sendo fotografadas a cada instante?
Meu avô paterno nasceu no final do século XIX e morreu antes que eu nascesse. Só tenho ideia da aparência dele através de uma única foto tirada já no tempo em que estava em progresso a doença que o mataria. Da minha infância tenho não mais que umas cinco fotos, tiradas com intervalos de anos. Fotografia era coisa difícil, cara, pouca gente dispunha de máquinas fotográficas. A tecnologia mudou esse quadro e hoje em dia em cada casa existe alguém com uma máquina ou telefone capaz de fotografar e filmar.
Não aprecio o número exagerado de fotografias hoje disponível, mas sinto falta de fotos de pessoas a quem conheci e já desapareceram. Vez por outra me lembro de alguém e nem sempre consigo formar na memória imagem exata do aspecto dessa pessoa. Fico, portanto, no meio termo em relação ao número de fotos, embora considere exagero o que acontece hoje em dia com tanta gente tirando fotos de tudo o que encontra pela frente.