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A rainha do bumbum
- Meu, esse mundo é mau.
Quem me disse isso foi o filósofo do terceiro andar. Como de costume encontrei-o na portaria do prédio. Desta vez achei-o cabisbaixo como se finalmente tivesse capitulado diante de todas as suas reflexões filosóficas. Eu estava com alguma pressa, mas, apesar disso, me detive. Ver o filósofo cabisbaixo e entediado despertou-me o senso de solidariedade a um ser de todo estranho, mas sempre otimista.
Quando me aproximei do filósofo ele estava com a cabeça abaixada e cantarolava:
- Conga, conga, conga, conga…
Eu me sentei sem que ele se desse conta da minha presença. Continuou com a sua conga, conga até que coloquei a mão no braço dele. Então, como se voltasse de um sonho, ele exclamou:
- A rainha!
- Que rainha – perguntei.
- Ela, naturalmente, a rainha, ora.
Como eu não conseguisse juntar as peças do quebra-cabeça, o filósofo olhou-me com aquela ternura que só os filósofos têm nos momentos em que descem do pedestal e se dignam explicar aos mortais comuns as razões profundas dos cismas mentais que os afligem.
- A rainha do bumbum, a Gretchen.
Ora, a Gretchen - pensei. Mas, o que ligaria o filósofo à rainha do bumbum? Não precisei perguntar por que ele se adiantou:
- Você viu as fotos da rainha em Miami?
Fiz que não com a cabeça. Ele me olhou fixamente e disse:
- A rainha está trabalhando como garçonete num café da cidade.
- Que há de mal nisso?
O rosto do filósofo encheu-se de sangue com se fosse explodir. Chamando-me de “ser insensível” ele disse:
- Uma rainha, uma mulher com um bumbum daqueles, ganhando a vida como garçonete?
Fiquei quieto. Lembrei-me, então, da Gretchen: corpo escultural, bumbum saliente, apresentando-se em programas de televisão, vendendo milhões de discos. Por que estaria ela nos EUA trabalhando como garçonete? Sem demérito para as garçonetes, mas é que do ponto de vista de beleza e condição salarial… Teria ela envelhecido? Fiz essa pergunta ao filósofo e foi aí que ele se saiu com o tal “o mundo é mau”.
Não sei se concordo. Talvez o mundo seja mais perverso que mau. A beleza, as formas de corpo salientes, tudo isso é dilapidado pelo tempo. Triste constatar, mas real e irreversível.
Após algum tempo deixei o filósofo e fui trabalhar. Mais tarde, em casa, entrei na internet e vi as fotos da Gretchen flagrada por um turista no café onde atualmente trabalha. Nada de anormal: uma mulher mais velha, usando um avental. Depois assisti, no You Tube, a um vídeo da artista ainda jovem, cantando e dançando num programa da Globo. A música que ela cantava era o seu grande sucesso “Conga, conga”.
Devo ter ficado por alguns minutos observando o corpo jovem e esguio que v ao volteava ao som de uma música repetitiva, mas que não deixava de encantar. Nada da mulher de avental, séria, dedicando-se a ganhar a vida do modo que agora se tornara possível a ela. Depois desliguei o computador e já degustava uma taça de vinho quando me vi dizendo:
- O mundo é mau.
Há ocasiões em que o filósofo do terceiro andar tem razão.