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A Guerra da Coreia
Lembro-me bem das longas conversas entre as pessoas mais velhas da minha família. Sentavam-se à mesa para um longo e calmo café enquanto trocavam impressões sobre aquele mundo do final dos anos 50 do século passado. Então os EUA e a Rússia já se digladiavam nas tertúlias da Guerra Fria e o mundo polarizado ressentia-se dos acontecimentos gerados pelas duas grandes forças. Aquele Brasil considerado quintal da América do Norte não contava quase nada no plano internacional. Os jornais que chegavam em casa, como “O Estado de São Paulo” reproduziam artigos de famosos colunistas norte-americanos como James Reston e C. L. Sulzberger. Na grande e insolúvel disputa mundial pendíamos para o “lado de cá” quer dizer dos americanos até porque a lavagem cerebral contra o comunismo era permanente.
Dessas conversas que tantas vezes ouvi sem entender direito, lembro-me bem das referências à Guerra da Coreia que, na opinião de todos, dera início à disputa entre os dois blocos antagônicos. EUA e União Soviética, aliados na Segunda Guerra, entraram em disputa no território da Coreia, fazendo antever que a mesma situação se repetiria em várias outras partes do mundo. Os russos e a China apoiavam a Coreia do Norte que invadiu o sul conquistando a capital Seul. Ao que reagiram os EUA enviando-se tropas da ONU para retomar a cidade o que de fato aconteceu. A guerra durou três anos só terminado em 1953 e deixou atrás de si esse imbróglio até hoje não resolvido entre as duas Coreias: a do norte comunista e a do sul capitalista e em grande desenvolvimento.
O isolamento e sanções aplicadas à Coreia do Norte têm provocado reações daquele país, destacando-se a tentativa de produção de armas atômicas. Estima-se que os coreanos do norte se já não possuem mísseis atômicos estão muito próximos de obtê-los, fato considerado perigosíssimo. Receia-se que pelo modo como as coisas se passam na Coreia do Norte o país não tenha receio de atacar seus inimigos, enviando mísseis nucleares contra eles.
Nesta semana o governo da Coreia do Norte declarou ter abandonado o acordo de cessar fogo realizado com a Coreia do Sul. Diante da possibilidade de serem atacados os coreanos do sul declaram que diante de qualquer ação varrerão do mapa os coreanos do norte. Eis aí pintada com cores muito vivas a possibilidade de início de um conflito de proporções inimagináveis, não sendo absurdo pensar-se na possibilidade do envolvimento das grandes potências mundiais interessadas no andamento do possível conflito.
Mas, imagino o que diriam aquelas pessoas que conversavam nos anos 50 sobre os problemas mundiais. Qual seria a opinião delas sobre a iminência de um novo ataque da Coreia do Norte à Coreia do Sul? Talvez dissessem que afinal de contas o mundo do século 21 não é diferente do mundo do século 20. Afinal, os homens são os mesmos, com as paixões e diferenças de sempre, valorizando o poder e disputas por ele. De modo que aquelas pessoas, hoje todas mortas, poderiam continuar as suas longas conversas, falando sobre ontem com a atualidade do que hoje se passa no mundo.
Há quem discorde disso, mas muita gente concorda que o mundo muda enquanto o homem permanece o mesmo em todas as épocas.
Neil Armstrong
Eu estava em Tremembé-SP naqueles 20 de julho de 1969. Não me lembro da hora exata, mas pessoas reuniam-se na sala com os olhos pregados na televisão, aguardando a transmissão da chegada do homem à Lua.
De certo modo aquilo que veríamos tinha tudo para parecer inacreditável. A Lua de queijo, morada de São Jorge, bom e comportado satélite da Terra o qual víamos todas as noites no céu enfim receberia um representante da humanidade. E foi assim que pudemos presenciar na televisão as imagens em branco e preto que mostraram, em tempo real, o momento em que Neil Armstrong entrou para a História ao ser o primeiro homem a pisar na Lua.
Caramba, não era pouco. Havia naquelas imagens uma mensagem de transcendência, de atravessar fronteira e romper barreira considerada impossível. Pura magia. Naquele momento Armstrong representava a espécie e cada ser humano da Terra que, com ele, devassava o espaço sideral. Feito grandioso, monumental, raro num mundo em que a tecnologia nem de longe era o que é hoje, mas, ainda assim, lograva-se tão notável conquista. Vitória da ciência que caia como uma luva para os interesses da propaganda norte-americana.
Talvez aos jovens de hoje, habituados com os espetaculares avanços tecnológicos, o feito da missão Apollo 11 pareça menor e não tenha lá tanto significado. Não têm eles - nem poderiam ter - a visão do tempo passado e a experiência vivida naqueles idos de 1969, época em que o mundo andava às voltas com a Guerra Fria e o Brasil imerso em situação de subdesenvolvimento. Pois foi no contexto de um momento histórico difícil e complexo que Neil Armstrong pisou na Lua e ascendeu à condição de herói do povo norte-americano.
Neil Armstrong morreu ontem aos 82 anos de idade e está sendo reverenciado como herói pelo seu povo. Jornais e a mídia eletrônica publicam detalhes sobre a vida do astronauta que comandou a missão Apollo 11.
A imagem que guardamos de Armstrong é a dos momentos em que esteve na Lua. Então eu era um rapaz e assistia à transmissão, pela televisão, ao lado de um senhor idoso de quem ouvia relatos sobre o tempo em que fora o encarregado numa das grandes fazendas do industrial Francisco Matarazzo. Homem de outra época e já no fim da vida parecia a ele que a chegada do homem à Lua não passava de ficção, coisa de americanos.
O senhor de quem falo e as pessoas que comigo assistiram à chegada do homem à Lua estão mortas. Hoje Neil Armstrong morreu e em alguns anos ninguém que tenha visto aquela transmissão terá sobrevivido. Mas o feito persistirá, desfiando o tempo que passa, talvez ofuscado por conquistas de novos desafios, quem sabe a tão sonhada ida de homens a planetas distantes.
Ontem e hoje
Gosto muito de ler o cantinho de jornal cujo título é “Há 50 anos”. Hoje se divulga que a principal notícia do dia 20 de agosto de 1962 era a de inundações na Colômbia decorrentes de aumento do volume de água dos rios. Mortos, desabrigados e perdas materiais compunham o triste quadro da tragédia colombiana.
Há quem diga que o passado não serve para nada, que a história pregressa não tem utilidade para a interpretação dos fatos do presente. Conheço um professor universitário que, curiosamente, nega qualquer valor ao passado. Para que perder tempo com fatos que não voltam mais? – pergunta ele. E ele é justamente um professor de História. Eis aí um rebelde inconformado, talvez com o próprio ofício.
O que me atrai nas notícias do passado é a possibilidade de pensar um pouco sobre o modo de vida da época comparando-o com o presente. Assim, as notícias sobre as inundações colombianas me devolveram o ano de 1962 quando eu era apenas um rapazinho preocupado com o rumo que daria à minha vida. De todo modo, 1962 foi um ano inesquecível, bastando lembrar que nós, os brasileiros de então, estávamos ligadíssimos na Copa do Mundo realizada no Chile. O Brasil voltou de lá com o título de bicampeão mundial e foi uma grande festa. Pelé havia se machucado logo no início da Copa, mas Garrincha brilhara destruindo as defesas adversárias com seus dribles impossíveis. Aquela grande seleção de futebol fez história em nosso país atrasado, imerso em dívidas e que, sem que se suspeitasse, caminhava em direção ao golpe que inauguraria o período de ditadura militar em 1964.
Mas, 1962 também foi o ano daquela tremenda encrenca entre os dois polos da Guerra Fria que dominavam o mundo na época. Em 1961 os EUA tinham instalado mísseis na Turquia fato que despertou a reação russa de instalar mísseis em Cuba. A proximidade com os EUA e a possibilidade de ataque a cidades americanas provocaram a reação do presidente John Kennedy que exigiu a retirada dos mísseis. O mundo tremeu diante do perigo de uma guerra nuclear que repetiria, em muito maior extensão, a tragédia de Hiroshima. Acordo entre Kennedy e o primeiro ministro russo Nikita Krushov colocou fim ao impasse, mas a Guerra Fria só terminaria muito mais tarde com a queda do Muro de Berlim.
De 1962 também importa aos brasileiros a grande vitória do filme “O Pagador de Promessas” o qual venceu o Festival de Cannes. Anselmo Duarte, o diretor do filme, voltou com a Palma de Ouro e o interessante é que eu o conheci algum tempo depois. Morava eu em Itu, interior de São Paulo, terra do Anselmo, e era colega da filha dele no colégio local. Certo dia fui à casa dela por conta de um trabalho escolar e lá estava o grande Anselmo com quem não troquei mais que “boa tarde”.
Decorridos 50 anos aqui estamos, neste ano de 2012, que já avança em pleno segundo semestre. É verdade que o Brasil está muito melhor que aquele país de 1962. Entretanto, as notícias que nos acompanham diariamente não são animadoras. A violência desmedida e o julgamento do mensalão não passam de sinalizadores de uma época à qual falta alegria. O futebol, esporte de preferência nacional, passa por momento de pouco brilho. Já não existem grandes craques capazes de apaixonar as multidões. Mas, o pior, é que se vive sob o império da desconfiança. Entretanto, há que se torcer e confiar no futuro, afinal trata-se de tempo novo e aberto a todas as possibilidades, quem sabe a uma rodada de bons acontecimentos, por que não?
A Copa de 1962
Eu era adolescente em 1962, cursando o Ginásio que hoje é chamado de Ensino Fundamental II. O Brasil não era nem de longe esse país emergente que hoje conhecemos. No ano anterior, 1961, o presidente Jânio Quadros surpreendera o país renunciando ao poder. Eu me lembro de estar em São Paulo logo após a renúncia de Jânio. Pairava um silêncio mortal nas ruas e o aspecto das pessoas traia desilusão. Vi, na esquina da Alameda Nothman, ao lado do Colégio Coração de Jesus, populares aglomerados numa banca de jornal, lendo as notícias. Ninguém dizia nada, houve quem saísse dali com lágrimas na face. Jânio era esperança, mostrara-se uma fraude e, agora, após a Campanha da Legalidade promovida por Leonel Brizola, Jango estava no poder.
Em 62 no Brasil vigorava no país o regime parlamentarista e um dos primeiros-ministros a chefiar o governo foi o Brochado da Rocha, cujo nome dava o que falar. No plano mundial a Guerra Fria seguia seu itinerário com a constante disputa entre os EUA e a União Soviética. No início do ano houve o episódio da Baia dos Porcos, em Cuba, que quase deflagrou uma guerra mundial que tanto se temia pelo lançamento de mísseis de longa distância. Veio daí o bloqueio continental imposto a Cuba que até hoje perdura. Os EUA mandavam no mundo mais que hoje e impuseram a expulsão de Cuba na Conferência de Punta del Este. A América Latina fez o que era lhe possível na época: curvou-se às ordens do gigante do norte.
De 1962 ficou-me o som de Stella by Starlight cantada pela voz rouca de Ray Charles. Lembro-me de que meu pai não gostava de Ray Charles porque para ele era incompreensível justamente aquela voz rouquenha num cantor. Demais. por aqui a Bossa Nova estava em alta e 62 foi o ano em que os nossos rapazes se apresentaram no Carnagie Hall, em Nova York, grande marco para a internacionalização da música brasileira. Por aqui ouvíamos também grandes intérpretes em plena atividade como Cauby Peixoto, Moreira da Silva, Nelson Gonçalves e tantos outros.
Mas, o ano de 1962 ficou mesmo na memória pela conquista do bicampeonato mundial pela seleção brasileira. Tínhamos um time invejável que perdeu Pelé na segunda partida por contundir-se, mas Garrincha brilhou e o Brasil foi campeão.
Ontem, 17 de junho, comemorou-se o cinquentenário da vitória do Brasil sobre a Tchecoslováquia, partida final da Copa de 62. As emissoras e TV e sites da internet estão mostrando cenas da conquista brasileira nos gramados do Chile. O que é impossível transmitir é a emoção que nós, os que acompanhamos os jogos pelo rádio na época, experimentamos a cada gol do Brasil. Éramos um país confuso, imerso em disputas terríveis e endividado para o qual o futuro não passava de terrível incógnita. Habituados à condição de terceiro-mundistas e sem peso no concerto das nações nada havia que nos projetasse diante do mundo. Foi nesse contexto que as chuteiras fizeram a diferença daí a colossal festa de recepção aos jogadores da seleção quando voltaram do Chile.
Eram outros tempos, outro o modo de encarar os acontecimentos, mas nas memórias ficou gravado o registro daquele grito imenso, enorme, que nos fez sentir superiores dentro da inferioridade que nos era atribuída diante do mundo. Apagava-se de vez o descalabro da perda da Copa de 50 em pleno Maracanã e passávamos a acreditar mais em nós mesmos. O futebol, a Bossa Nova e a nossa invejável capacidade de recuperação davam-nos força para seguir adiante, embora nem desconfiássemos do que estava por vir naquele 31 de março de 1964 que viria a mudar a nossa história.
As revoluções
No “Houaiss“ o vocábulo revolução, em sentido político, é definido como “movimento de revolta contra um poder estabelecido, feito por um número significativo de pessoas, em que geralmente se adotam métodos mais ou menos violentos; insurreição, rebelião, sublevação”.
No Brasil a turma dos descontentes costumava descaracterizar a “Revolução de 64”, também conhecida como “A Redentora”, taxando-a de “quartelada”. Movimento incruento, realizado por militares, não seria revolucionário. O poder foi tomado, o presidente João Goulart deixou o país e o resto todo mundo sabe. Quanto a número significativo de pessoas envolvidas e métodos violentos, não há notícia de que tenham sido expressivos naquele 31 de março de 64. A violência viria algum tempo depois, de ambos os lados, e o assunto ainda hoje dá pano para manga. Países vizinhos que viveram situações semelhantes encararam mais de frente o problema envolvendo torturas, desaparecimentos e terrorismo. Por aqui se pretendeu, com a anistia, sepultar memórias e condicionar uma paz de espírito impossível. O resultado é que o assunto continua vivo. Hoje mesmo lê-se nos jornais a notícia de que um procurador militar do Rio quer examinar papel de agentes das Forças Armadas no desaparecimento de quatro militantes ao tempo da ditadura. Para o procurador esses casos não estão prescritos e não aplica, em relação a eles, a Lei de Anistia de 1979.
Cada um terá as suas lembranças sobre o período da ditadura no Brasil. Para mim vários momentos ficaram gravados e talvez mais tarde eu me proponha a recordá-los. Por ora, basta um deles relacionado ao significado do termo revolução. Naquele 31 de março eu era um aluno de primeiro grau, estudando em colégio de cidade do interior de São Paulo. Acontecido o Golpe de Estado que colocou fim ao governo democrático de Jango seguiu-se prontidão e movimentação de tropas em todo o Brasil. Na cidade em que eu estava existia – e ainda hoje – um quartel. Dele saíram soldados em direção ao Rio de Janeiro, viagem que não se completou devido ao mau estado dos veículos utilizados. De modo, que quando se entendeu irrevogável o Golpe Militar, voltaram os briosos soldados, até então estacionados na Via Dutra, ao quartel de origem.
Ora, naquela época os efeitos da Guerra Fria faziam-se sentir pesadamente no continente dada a liderança inconteste dos Estados Unidos. O receio do avanço do comunismo, a ânsia por desenvolvimento, progresso, paz política e redução da carestia contribuíram para que, num primeiro momento, o Golpe Militar fosse muito bem visto pela população. De modo que, quando os soldados voltaram, entraram na cidade triunfalmente, sendo recebidos com muito carinho e aclamados pelo povo. Voltavam como heróis e com tal carapaça desfilaram pelas ruas.
A isso assisti e testemunhei. Creio que o fato dá ideia das dificuldades de momento para a união de forças no sentido de executar uma verdadeira revolução.
Tudo isso me vem à memória no momento em que ditaduras do norte da África enfrentam movimentos de oposição. Enquanto no Egito o ditador Mubarak viu-se obrigado a renunciar, na Líbia o ditador Muammar Gaddafi declara que só deixará o governo se morto. A desordem toma conta de cidades líbias e a revolta é duramente reprimida pelo governo. Civis são bombardeados e estrangeiros encontram dificuldades para deixar o país.
Revoluções. Longas ditaduras do mundo árabe podem ruir pela força das revoluções.
Google View: flagrantes do cotidiano
Hoje em dia você corre o risco de ser flagrado a qualquer momento, em qualquer lugar, inesperadamente. Existem olhos por toda parte, tantos olhos que nada passa despercebido. Você já usou o Google View? Rapaz, que coisa. De repente você pode fazer um passeio virtual por ruas de muitas cidades do mundo, ver os prédios e as pessoas que circulavam no momento em que as fotos foram tiradas. Pode ser que para a geração atual - essa para quem tudo parece normal e óbvio - o Google View pareça uma coisa muito lógica e simples. Olhe, não é não. Deixando para lá esse papo de invasão de privacidade, de facilitar aos bandidos as suas ações criminosas, o fato é que o que vemos na tela é fenomenal. Agora, que tem algo de Grande Irmão nisso, lá isso tem daí me perguntar o que acharia disso tudo o bom camarada George Orwell.
Em Belo Horizonte um cidadão processou o Google porque foi fotografado no momento em que vomitava na rua. Ele pede uma indenização. Fotos ao acaso de ruas mostram de tudo, que fazer? Mas, o Google View é também um serviço interessante, ajuda a localizar muita coisa e a conhecer cidades a que jamais iremos. Outro dia dei uma olhada em Tókio e foi como, de certo modo, eu conhecesse um pouco a cidade e a japonesada que anda por lá.
Quanta diferença com o passado. Quando da realização da Olimpíada de Moscou, em 1980, havia uma grande curiosidade sobre como seriam os russos. Com a Cortina de Ferro fechada como era, o povo russo parecia a todo mundo mais distante que os hipotéticos habitantes de Marte. Aí começaram os jogos e pode-se ver russos na torcida, gente como a gente, levando filhos no colo etc. Eram os tempos da Guerra Fria e os comentários que passaram a ser ouvidos foram os de que “os comedores de gente são iguais a nós”. Tratava-se de uma ressalva importante em tempos em que os russos eram demonizados pela propaganda norte-americana.
Hoje você tem acesso a milhares de fotografias de Moscou e em breve poderá passear virtualmente na cidade através do Google View. O mundo é outro, a Guerra Fria teve seu fim com a extinção da União Soviética, em 1991, e os EUA andam às voltas com guerras e grande crise interna. Alguns países ditos emergentes, entre eles o Brasil, experimentam ser gente grande e a tecnologia permite uma integração maior entre os povos. É a aldeia global, prevista por Marshall Mcluhan, para quem o progresso tecnológico reduziria todo o planeta à situação observada em uma aldeia, ou seja, a possibilidade de se intercomunicar diretamente com qualquer pessoa que nela vive. Que o digam os emails, os blogs e as comunidades virtuais. Não é que a Rainha Elizabeth da Inglaterra estreou há dois dias no Facebook e ganhou, nas primeiras horas, quase 100 mil fãs?
O que surpreende nesse admirável mundo novo é a velocidade da informação e o consumo dela. Embora isso seja óbvio e a afirmação nada tenha de novo a coisa toda continua impressionando e muito. Há dois dias, no início da noite, um apresentador de TV se queixou, dizendo-se perseguido por uma emissora concorrente. Ele fez isso durante a apresentação do seu programa o que conferiu aspecto mais bombástico às suas declarações. Pouco depois alguns portais jornalísticos da internet já exibiam imagens gravadas do programa contendo as declarações do apresentador. É essa instantaneidade que impressiona, a rapidez do processamento de algo que alguém viu, achou importante, gravou e divulgou. A verdade é que se vive num ambiente cujo teor de grande parte das informações tende à fofoca: é só entrar nos portais da internet para acompanhar o dia-a-dia das celebridades, o que fizeram ou deixaram de fazer, elas também surpreendidas pelo grande olho que tudo vê e divulga para que todos saibam e persigam pessoas.
Esta é uma época de imagens por atacado e privacidade comprometida. O acesso à vida particular seguramente é muito maior que em outros tempos. Por isso, meu amigo, você não está seguro. Veja aí o que anda fazendo, principalmente onde anda fazendo. Se o amigo é dado a esquisitices, cuidado. Vive-se num período em que as mais estranhas teorias têm chance de ser confirmadas, inclusive aquela que prevê um grande e único governo totalitário vigiando todas as pessoas. Claro que isso é um absurdo, mas será mesmo? Pois se há alguns anos me dissessem que haveria um programa de computador que permitiria passeios virtuais a cidades do mundo, eu riria na cara de quem afirmasse isso. Portanto cuidado: um desses carinhas que se vê no Google View, atravessando uma rua, pode ser você. Veja lá o que anda fazendo, o mundo está cheio de olhos que nos vigiam e podem nos comprometer.
Para que nunca nos esqueçamos
Penso que os detratores da História fiquem bastante incomodados com celebrações de fatos importantes do passado. Há cerca de dois anos presenciei discussão entre dois historiadores sobre a importância da investigação do passado. Para um deles, seguindo parte da historiografia francesa, o que importa são os vastos períodos históricos sendo inútil a perda de tempo com acontecimentos pontuais; o outro era mais favorável à pesquisa documental e à imersão em fatos cotidianos que, segundo dizia na ocasião, revelam-se verdadeiros termômetros de épocas.
De todo modo o fato é que estamos vivos e não conseguimos nos livrar dos mortos e daquilo que fizeram. Tal impressão tive ontem ao assistir às celebrações, em Berlim, da queda do muro que dividia a cidade em dois blocos físicos e ideológicos. Chovia muito, mas o povo alemão não se furtou a sair às ruas para rememorar um momento marcante da sua História. Ressalte-se que em relação ao Muro de Berlim muitas das personagens que dela participaram estão vivas. Mas, a Alemanha é a Alemanha e se existe um país cujo passado integra-se ao cotidiano do presente é justamente esse. De fato, não há como interromper um continuum de fatos que ainda hoje são relevantes embora distanciados no tempo quanto à sua ocorrência. Basta citar o nazismo e mesmo a ainda imperfeita integração dos antigos Blocos Ocidental e Oriental do país para ilustrar o que acabamos de dizer.
As comemorações da queda do Muro de Berlim realizadas na noite de ontem foram emocionantes. Elas representavam o fim de uma época, de um modo de ser e pensar, de engajamentos ideológicos comprometidos com apenas duas vertentes: capitalismo e comunismo. Elas nos fizeram lembrar tempos mais soturnos, posturas rígidas e atmosferas ameaçadoras que, vez por outra, descambavam para o território de perigo de ocorrência de uma hecatombe universal. Elas sepultavam a era dos telefones vermelhos interligados entre Washington e Moscou, os tão temidos telefones vermelhos dos quais dependia a sorte do mundo.
Por isso, quando Lech Walesa empurrou a primeira peça de isopor do dominó que representava o Muro, foi como se presenciássemos um momento de libertação da humanidade de grilhões aos quais estivemos presos durante muito tempo e que tanto interferiram nas nossas vidas. Daí a emoção, a sensação de que mesmo à distância fazíamos parte do acontecimento celebrado, tratava-se de um grito contra tudo o que é demasiadamente restrito, um grito que ecoou fundo nas nossas almas e nos comoveu, intensamente.
Só um pedaço de muro
Encontrei o pacotinho no fundo de uma gaveta que não era aberta há muito tempo. Ao abri-lo dei com pedaços pequenos de concreto. Por que guardara aquilo? Só depois de alguns instantes fui capaz de reconstituir o caminho do material que tinha em mãos até a minha gaveta.
Houve tempo em que os pequenos pedaços de concreto fizeram parte de um muro de 155 Km que cercou Berlim Ocidental, durante 28 anos. Quando da queda do Muro de Berlim um sobrinho que morava na Alemanha recolheu alguns destroços e os trouxe ao Brasil onde os distribuiu entre seus parentes. Foi assim que fiquei ligado à história recente da Europa, tendo ao meu alcance relíquias que comprovavam acontecimentos que acompanhei à distância.
Como se sabe, o Muro foi construído pela República Democrática Alemã em 13 de agosto de 1961. Eram os tempos da Guerra Fria e o Muro representava a divisão do mundo em dois blocos: a República Federal Alemã (Alemanha Ocidental) e República Democrática Alemã (Alemanha Oriental). Do lado ocidental, chefiado pelos Estados Unidos, alinhavam-se os países capitalistas; do lado oriental faziam parte os países socialistas, alinhados com o regime soviético.
O Muro dividia, portanto, não só a cidade de Berlim em duas como o mundo em dois blocos. Ele foi destruído no dia 9 de novembro de 1989, considerado como marco final da Guerra Fria.
Passados 20 anos desde a destruição do Muro, pedaços dele continuam a ser comercializados sob a forma de suvenires. Notícia divulgada pelo jornal francês “Le Monde”, na edição de 22/10/09, informa que, em maio, a chanceler alemã Angela Merkel ofereceu um pedaço de bom tamanho ao presidente da França, Nicolas Sarkozy; o corredor jamaicano Usain Bolt recebeu da prefeitura de Berlim um bloco de muro, pesando de 2,7 toneladas, como recompensa por seus três títulos mundiais conquistados em campeonatos de atletismo em agosto.
Hoje em dia há quem condene a exploração mercantil da antiga Cortina de Ferro dizendo que estão comercializando a idéia de liberdade. Por outro lado, é impossível comprovar a autenticidade das relíquias comercializadas fato que gera protesto entre os comerciantes.
Eu? Bem, eu tenho uns pedaços do Muro de Berlim aqui em casa. Quando li no “Le Monde” sobre fragmentos serem ofertados a gente tão importante, liguei para o meu sobrinho que garantiu a autenticidade do material que me cedeu: ele mesmo pegou pedaços do Muro lá em Berlim, enfiou num saco e os trouxe para o Brasil.
Agora o “meu” Muro está sobre a mesa, aguardando a minha decisão sobre o seu destino. Olho para esses fragmentos e me pergunto se o acaso não terá feito chegar até mim o tato de alguma mão desesperada que tentou escalar Muro para fugir da cortina de Ferro; ou se um ponto que me parece mais escuro não conterá uma partícula do sangue de alguém baleado durante a escalada, impedindo-o de chegar ao lado ocidental.
De qualquer modo, parece-me inútil conjeturar sobre qualquer coisa. A Guerra Fria que tanto afetou as nossas vidas terminou; é desaparecida a maioria dos homens que dela participou e nada mais existe a fazer em relação a isso.
O mundo é outro, diferentes são os dramas da humanidade atualmente. Refletindo sobre isso penso sobre a inutilidade de guardar fragmentos do Muro e chego a me levantar para jogá-los no lixo. Entretanto, algo me impede: trata-se do passado, de cenas chocantes que retornam fortes, vozes imperialistas que ecoam com sotaques fortes e ininteligíveis, corpos abatidos e e ideologias que se chocam, provocando derramamento de sangue.
A batalha está para recomeçar quando embrulho as pedras e as devolvo ao fundo da gaveta, trancando o passado para que ele não se liberte e de modo algum se repita.