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Embriaguez de jovens
Nos últimos tempos tem-se acentuado os comentários sobre a embriaguez de jovens. Informe publicado pelo Cebrid (Centro de Informações sobre Drogas da Unifesp - Universidade Federal de São Paulo), publicado hoje pela “Folha de São Paulo”, revela que um em cada três estudantes do ensino médio se embriagou pelo menos uma vez no mês anterior à realização da pesquisa. O problema também existe entre estudantes do ensino fundamental, porém em menor intensidade. O levantamento foi realizado em escolas particulares da cidade de São Paulo.
Quem milita na área da educação sabe que o problema do consumo de álcool – eventualmente de drogas – é mais que preocupante, sugerindo estar em fase crescente. De fato, qualquer reunião serve como motivo para bebedeiras. Não se pode dizer que tudo seja feito de modo consciente. É possível relatar casos e casos de jovens que nunca beberam e se embriagam de repente, muitas vezes perdendo a consciência de si mesmos. As consequências variam de simples mal-estar ao coma alcoólico, isso quando estados de semiconsciência não servem a abusos sexuais com repercussões quase sempre dramáticas.
Por que os jovens bebem? Há que se considerar o fato de que, num primeiro momento, o álcool age como estimulante, disso resultando a falta de autocrítica e mesmo comportamentos violentos. Mas, a resposta não é simples e envolve aspectos como condições familiares e sociais, auto-afirmação, necessidade de aceitação em grupo, fuga da realidade, busca de prazeres fáceis, mergulho no desconhecido, insatisfação, liberação do superego etc. Deixando de lado o terreno das hipóteses sobre as causas da embriaguez, vale lembrar que os jovens desde sempre beberam e bastante. Olhar para os jovens de hoje e pretender represá-los numa comporta de novidade quanto à embriaguez é negar um passado com o qual os pais e avós da atual geração têm suas cotas de débito. Bebemos durante o ensino médio, muito durante o curso superior, lembram-se? As festinhas, os churrascos da faculdade, os finais de jogos de futebol…
Então, qual é o problema? Você está a dizer que sempre foi assim daí que a bebedeira da turma de hoje não preocupa? Ora, nada disso. Em primeiro lugar o mundo tem mudado depressa demais, os anseios e sonhos das novas gerações são outros e mais difíceis de serem alcançados, a impessoalidade tornou-se maior, a sociedade atingiu complexidade tal que desconvida à participação pessoal, as relações familiares esgarçaram-se muito, os exemplos que vêm de cima são péssimos, campeia a violência, o número de veículos e acidentes nas ruas e estradas é realmente fantástico e assim por diante. Nessas condições, a soma de todos os medos e a necessidade de fuga de uma realidade desagradável pode servir como motor ao consumo precoce e exagerado de álcool. Além disso, existe a agravante da freqüência de consumo dadas as características das relações sociais entre os jovens de hoje: mais próximos uns dos outros, permanentemente interligados via internet, comunitários etc. Se a isso somarmos o constante apelo publicitário ao consumo de álcool verificado nos meios de comunicação teremos aberta, à nossa frente, a via expressa que conduz ao alcoolismo crônico.
Os dados da pesquisa realizada pelo Cebrid sugerem a necessidade de trabalho eficiente junto aos jovens, alertando-os quanto aos perigos do alcoolismo. Apoio e acompanhamento familiar, campanhas publicitárias, palestras em escolas, cumprimento da proibição de venda de bebidas alcoólicas a menores e um sem número de atitudes fazem-se necessárias. É preciso conscientizar a juventude de que as baladas não precisam necessariamente ser acompanhadas de tentativas de despersonalização, que o prazer pode ser também ser alcançado com comedimento.
É o que se quer e precisa ser feito.
A arte da mentira
Há alguns meses meu filho que estuda na Austrália me ligou informando que sua “girlfriend” estava grávida. Não se preocupe, pai, disse-me ele na ocasião. Está tudo bem, veja pelo lado bom: além de gostar dela vou me casar e com isso terei direito à cidadania australiana.
Sabe como é: uma coisa dessas funciona como um petardo enviado por telefone, ainda mais quando o filho tem apenas 21 anos. Mas que dizer? Está feito, está feito e pronto, não é possível parar o tempo etc. Ele parecia feliz, ia ser pai e eu avô de uma criança australiana, pena que tão jovem, tão cedo, mas nem isso consegui dizer, afinal a vida tem dessas.
Depois que o felicitei - meio sem jeito e dizendo que o negócio é bola pra frente - essas coisas que dizemos quando as palavras falseiam e nos deixam embasbacados, ele começou a rir e disse:
- Pai é mentira. Hoje é primeiro de abril.
Ah, estivesse ele perto e levaria uma paulada na orelha. A partir daí a conversa mudou e me esqueci do fato até ler um artigo publicado pelo “El Pais”, em 15/11, cujo título é “Todos mentimos, o que muda é a dose”. No artigo é citado o livro “The Liar in Your Life” (O mentiroso na sua vida) de Robert Feldman, professor de psicologia na Universidade de Massachusetts, no qual o autor afirma que mentimos entre duas e três vezes em uma primeira conversa de dez minutos com um novo conhecido.
O artigo também afirma que mentimos porque há público. Acrescento que, em alguns casos, a mentira torna-se meio de autopromoção, sendo objetivo do mentiroso elevar-se diante do público que o cerca. Exemplifico: conheci um camarada que se dizia amigo íntimo do poeta Vinicius de Moraes a quem, tenho certeza, ele nunca viu. Por ocasião da morte do poeta o fulano apresentou-se consternado na empresa em que trabalhava. Ato contínuo, simulou um telefonema para a filha de Vinicius que, pelo visto, o atendeu prontamente. A conversa foi longa e em tom de voz suficiente alto para que todos os presentes ouvissem. Acontece que a linha telefônica por ele utilizada tinha uma extensão através da qual se podia ouvir o fulano falando, tendo como resposta o tradicional sinal de ocupado.
Entre os mentirosos muito me atraem os criativos. Numa época em que trabalhávamos numa empresa cujo horário de entrada era impreterivelmente sete da manhã, certo dia um colega de trabalho chegou atrasado e saiu-se com uma história interessante: ele acordou tarde, saiu depressa do sobrado onde morava e esqueceu os documentos. Nervoso, gritou para a mulher, que ainda dormia, para que jogasse os documentos pela janela do andar superior. A desgraça foi que, ao caírem, os documentos ficaram presos na fiação externa da linha telefônica. Imagine-se o desespero do meu colega de trabalho, correndo para arranjar algo longo, uma vara talvez, que permitisse a ele recuperar os seus documentos. Mas, o interessante é que ele acabou conseguindo, só que, desta vez, tornando-se vítima de outro incidente: enquanto recuperava os documentos, deixara aberta a porta do carro por onde entrou o seu enorme cachorro que se acomodou no banco traseiro. Imagine-se a dificuldade para tirar o cachorro do carro e, aí sim, sair às pressas para trabalhar num lugar onde, sabidamente, era obrigatório chegar pontualmente…
Mente-se para ser agradável, por amor, para ser educado, para safar-se de situações indesejáveis, para trair, para incriminar pessoas, pela mania de grandeza ou simplesmente pelo prazer de mentir. Inúmeras causas levam uma pessoa a mentir e para algumas delas a mentira torna-se um hábito. Nesse caso, mente-se indiscriminadamente tornando-se a mentira verdadeira muleta de apoio para os seus usuários.
A teoria da mentira é vasta podendo-se dividi-la em capítulos. Falar sobre ela partindo-se das generalidades para os temas específicos é obra de fôlego que deixamos por conta de especialistas. Vale lembrar, em vôo distante e jamais rasante, que uma mentira gera outras e as que envolvem muitas pessoas são as de maior risco para o impostor.
De todo modo existe algo que muito me impressiona em certas mentiras: acontece quando uma pessoa inventa uma versão sobre um fato que lhe foi desvantajoso e, à custa de repetição, passa a acreditar nele. Vi isso acontecer inúmeras vezes e suponho que essas pessoas, caso fossem submetidas a um detector de mentiras, não se revelariam mentirosas tal a sua convicção sobre a versão inventada. O mais interessante é que coisas assim acontecem também a pessoas que não têm na mentira um hábito: serviram-se dela num momento de pressão e transformaram em verdade absoluta uma versão favorável a si mesmas, ainda que em detrimento da verdade.
Ultimamente tenho pensado na mentira enquanto observo o cotidiano político do país. A minha curiosidade é aguçada toda vez que vem à baila o episódio do mensalão. Esse é um episódio em que uma das facções em oposição está mentindo e é preciso, em prol do interesse público, que se estabeleça a verdade.
Finados
Há quem não acredite em certas histórias acontecidas em pequenas cidades do interior e as atribuam à fabulação de escritores. É no que dá ser ficcionista: quem escreve um livro corre o risco de, a partir daí, não ser tomado a sério pela tendência de inventar tudo o que diz.
Não se pode negar que isso de fato aconteça a alguns escritores. Perdem eles o passo da realidade. Conta-se que para Balzac suas personagens eram tão vivas quanto as pessoas reais que o cercavam. Quando ele se reunia com sua família dava notícias sobre suas personagens: aconteceu isso e aquilo com fulano etc.
Outro ponto é que muito do que se conta sobre habitantes de lugarejos precisa ser datado: mesmo as pequenas comunidades foram assoladas nas últimas décadas pelos meios de informação. Daí que se descaracterizaram. Com o surgimento de uma juventude integrada com o mundo exterior os hábitos mudaram e personalidades estranhas ou arredias deixaram de ter espaço para as suas esquisitices.
Feitas essas ressalvas considere-se a existência de pessoas, moradoras de lugarejos, que passam suas vidas no interior de suas casas sem jamais saírem à rua. Estou falando sobre períodos de 30, 40, 50 anos de reclusão voluntária durante os quais essas pessoas ocupam-se de funções domésticas. Algumas delas quase nunca são vistas; outras costumam vir à janela que dá para a rua, onde passam grande parte do tempo. Da janela observam o escasso movimento e têm oportunidade de conversar com outras pessoas. Passam-se assim décadas num estilo de vida que certamente será incompreensível para a maioria das pessoas que vive nas cidades.
Conheci algumas pessoas assim, de saudosa memória. De uma delas, em particular, lembrei-me hoje. Era uma senhora que envelheceu tendo como moldura o batente da janela de sua casa. Podia-se vê-la ali, todos os dias, excetuando-se os raros períodos em que sua saúde era abalada por um mal sempre menor. Da janela ela via um pedaço do pequeno mundo em que vivia: um trecho de rua não asfaltada e algumas casas defronte a dela.
Religiosa, a senhora fazia suas orações em horas certas, tendo o rosário à mão e não sendo interrompida pelos passantes que conheciam os seus hábitos. Muito calma e comedida, a mulher da janela agitava-se numa única ocasião durante o ano: às vésperas do dia de finados. Nesse dia desaparecia ela de sua janela durante largos períodos. Sabe-se que então passava horas no jardim que mantinha nos fundos de sua casa, cuidando das flores que mandaria para o túmulo do filho.
Ao amanhecer do dia seguinte, muito cedo, lá estava ela no seu posto, aguardando a chegada das suas comadres. Quando elas chegavam, repetia-se um ritual que a cada ano atraía mais observadores: a senhora da janela rezava em voz alta; depois, pegava as flores, beijava uma a uma, e as entregava às comadres recomendando que fossem levadas ao túmulo do filho. Então fechava a janela e só voltava a ser vista no dia seguinte.
Com o passar do tempo o lugarejo cresceu: a rua foi asfaltada e as casas defronte à janela deram lugar a prédios. Envelhecida, a senhora já não vinha tanto à janela. Por fim as comadres morreram e a doença que não poupa ninguém prendeu a senhora ao leito.
A senhora da janela curiosamente morreu e foi enterrada num dia de finados. Os tempos eram outros e já ninguém conhecia a sua história. Meses depois a casa onde ela viveu foi vendida e no lugar dela existe atualmente um prédio cujos moradores nada sabem sobre o passado do lugar.
Lembrei-me da senhora da janela hoje, dia de finados. Quando for ao cemitério vou procurar pelo túmulo dela e quem sabe acenderei uma vela.
Pelos velhos tempos.