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Está vivo e com boa saúde o fantasma dos alemães
Olha só: a revista alemã Der Spiegel noticiou em 31/01: “Sobrevivente de Auschwitz monta banda de rap para manter viva a memória do holocausto”. Trata-se de Esther Bejarano, uma das últimas sobreviventes da orquestra de mulheres de Auschwitz. Segundo a revista, o ritmo é o de sempre, mas no meio dos sons está aquela voz, velha demais para vir de um artista de rap. Bejerano, de 85 anos de idade, aderiu a esse tal de hip hop porque sabe que ele é popular entre os jovens, daí entender que esse ritmo seja um bom meio para contar e informar sobre o que aconteceu nos campos de concentração.
No dia 02/02 a Der Spiegel noticiou que “o bispo Williamson insiste na negação do Holocausto”. A negação vem embaraçando a sociedade São Pio 10º , à qual ele pertence, e ao Vaticano. Para o bispo a suposta morte de seis milhões de pessoas em câmaras de gás é uma grande mentira. Richard Williamson vive em Londres e está sendo processado por estimular o ódio racial. Para o Vaticano ele é enorme empecilho porque nega-se a abandonar as suas opiniões justamente num momento em que a Igreja tenta aproximar-se dos fundamentalistas.
No dia 05/02 a Der Spiegel noticiou que “estudo sobre a saúde de Hitler tenta esclarecer se o ditador era usuário de drogas”. Segundo o mesmo estudo, drogas e doenças tiveram pouco efeito sobre as ações do grande asssassino em massa que foi ditador da Alemanha. Entretanto, as hipóteses levantadas para explicar o comportamento de Hitler são muitas: homossexual, esquizofrênico, vítima de uma hipnose que não deu certo, tinha o pênis tão atrofiado quanto a sua autoestima, era possuidor de um só testículo por ter sido mordido por um bode na juventude, sifilítico, usuário de drogas illicitas… Todas essas hipóteses são abordadas no livro “War Hitler Krank?” (Hitler era doente?), escrito pelo historiador Henrik Eberle e por Hans-Joachim Neumann, professor emérito de medicina no Hospital Universitário de Berlim Charité. No livro informa-se que talvez Hitler tivesse obturações dentárias feitas com ouro de vítimas judias.
Todas essas notícias estão ao alcance dos leitores da Der Spiegel. Note-se que as matérias citadas anteriormente foram publicadas num prazo de seis dias pela revista. Vai daí que o nazismo e o holocausto são temas que talvez nunca cheguem a ser abandonados. O grande fantasma que assombra o povo alemão continua vivo, portanto, e gozando de boa saúde. Não é essa a primeira vez que se fala sobre isso aqui e, pelo visto, não será a última.
Bastardos Inglórios
O diretor Quentin Tarantino é, antes de tudo, um mestre da narrativa. O seu filme “Pulp Fiction” continua sendo uma aula cinematográfica sobre a arte de contar histórias, desenvolvendo-se no mais genuíno estilo dos grandes romancistas.
Em acordo com esse retrospecto não se pode dizer que Tarantino nos surpreende com o seu mais recente filme, “Bastardos Inglórios”. É preciso lembrar que o maior fantasma dos criadores está na necessidade não só inovar como renovar-se. Por essa razão tantas vezes encontramos os chamados escritores de um só livro, aqueles que após a repercussão de uma obra não conseguem repetir o feito. Descontem-se da afirmação anterior os casos em que novas produções, ainda que boas, infelizmente não superam as expectativas do público.
Tarantino não padece desse mal. Para ele a criação surge como universo amplo no qual todo experimentalismo é possível. Com essa concepção filmou “Bastardos Inglórios”. O filme é dividido em cinco histórias cujo fio condutor é o embate entre nazistas aos judeus, tendo como pano de fundo a Segunda Guerra Mundial. Mas é justamente aí que Tarantino inova: ele trata o seu tema como obra exclusivamente de ficção, sendo que em nenhum momento tenta ser coerente com a história real.
É importante frisar que o diretor jamais pretende navegar nas águas da história, repetindo a abordagem usada em outros filmes sobre o holocausto. De fato, Tarantino não fez um filme de denúncia e jamais teve a intenção de mortificar a platéia com cenas de sofrimento de um povo perseguido. Acima do fato histórico e suas conotações está a ficção e nela situa-se o universo no qual Tarantino trabalha.
Quentin Tarantino toma emprestado a um dos maiores traumas experimentados pela humanidade apenas o contexto em que aconteceu e é absolutamente infiel aos fatos reais que o cercaram. Sob seu comando nomes como os de Hitler, Goebbels e Goering não passam de figuras dentro de um processo ficcional cujos destinos em nenhum momento se ligam aos das personagens reais que atuaram na Grande Guerra. Dentro desse contexto as peripécias da trama e mesmo o seu desfecho tornam-se imprevisíveis ao expectador dado pertencerem unicamente à imaginação e desejo do criador.
“Bastardos Inglórios” não é um filme sobre a violência do grande conflito mundial. Antes, trata-se de uma trama na qual o elemento mais forte é a sequência brilhante de diálogos entre as personagens. Há mais tensão na situação entre um inglês disfarçado de nazista e o nazista que o identifica que na ação do grupo de soldados de origem judaica, chefiados pelo incrível tenente Aldo – personificado por Brad Pitt -, conhecidos por torturar e matar soldados alemães.
Há quem tenha visto no filme de Tarantino a intenção de mostrar vingança dos judeus contra os nazistas. Nada mais absurdo. A seu modo o diretor expõe as fraquezas humanas de alemães e judeus mostrando-os capazes dos mesmos delitos cujas proporções dependem de quem dispõe de mais força e poder. A catedral do nazismo é mostrada em sua imperfeição e loucura através de um Hitler fanatizado por fatos menores que o genocídio que se pratica diariamente. Goebbels nada mais é que um aspirante de cineasta que produz filmes para sua glória pessoal e para que Hitler aprove.
Nesse mundo de vaidades, intrigas, violências, medos, perseguições, racismo e fanatismo, ninguém escapa porque o homem é um ser imperfeito e engaja-se em ações que permitam a ele dar vazão aos seus instintos.
Num filme de tal dimensão destaque-se o trabalho dos atores e a produção impecável. Brad Pitt está bem como o tenente Aldo Raine no comando dos judeus que matam nazistas. Mas o grande papel fica por conta do coronel nazista Hans Landa, interpretado por Cristoph Walts que persegue e localiza judeus. O irretocável Landa desde o início nos propõe a direção de suas ações : ele nos avisa que seu mérito é não pensar como alemão e sim como os judeus, daí o seu faro para encontrá-los onde quer que se escondam.
“Bastardos inglórios” é um filme sobre cinema e no cinema se resolve. Consegue isso em dois planos: no universo da ficção trabalhada e nas cenas finais da trama engendrada por Quentin Tarantino.
A mancha do nazismo em “O Leitor”
Um amigo sugere que eu escreva sobre o filme “O Leitor”(The Reader - 2008). Digo a ele que assisti já há algum tempo e talvez alguns detalhes me escapem. Em verdade a minha afirmação esconde certo desconforto de abordar uma história que se preocupa em revelar faces ocultas do nazismo. Existe um mistério latente quando se desce do plano do hitlerismo e suas ações em massa para a vida particular de cidadãos alemães que, querendo ou não, envolveram-se com o nazismo. Nunca será demais lembrar que dentro das fronteiras de um país em guerra e sob a ideologia do nazismo podem ser observados fatos e comportamentos anormais,daí a dificuldade do julgamento de culpabilidades em certas ações pessoais.
A culpa alemã em relação ao Holocausto parece não ter fim. Quem lê escritores alemães ou freqüenta o noticiário do país percebe que as referências ao nazismo e nazistas são recorrentes. Trata-se, talvez, de um processo de autopurificação. É preciso exterminar todos os demônios, enfrentando-os um a um.
A edição de 25 de junho do semanário Der Spiegel noticia a proximidade do julgamento de um ucraniano - John Demjanjuk - que colaborou com os nazistas no campo de extermínio de Sobibor. O fato dá ensejo a uma equipe do Der Spiegel para comentar que o assassinato em escala de seis milhões de judeus é de responsabilidade dos alemães; entretanto, aconteceu com o conluio de outros países europeus daí o julgamento de Demjanjuk servir para projetar luz sobre os estrangeiros que ajudaram Hitler. Essa reportagem provocou forte reação na imprensa polonesa que acusou os alemães de tentarem colocar a culpa de seus próprios crimes nazistas nos outros.
Como se vê, o nazismo permanece vivo. Dele ocupa-se também o cinema que recentemente utilizou o tema em novos filmes.
Em “O Leitor” um adolescente, Michael Berg, apaixona-se por uma mulher mais velha que ele, Hanna Schmitz. No período em que se encontra com Hanna, Berg lê para ela romances e poesias. Depois de algum tempo Hanna simplesmente desaparece. Berg desespera-se e não a esquece. Oito anos depois Berg é um estudante de Direito que vai assistir a um julgamento de mulheres que trabalharam em campos de concentração. Numa das audiências reconhece Hanna, uma das acusadas.
O interessante no julgamento de Hanna é o modo como ela entende o seu trabalho no campo de concentração. Ela explica que exercia uma atividade normal obedecendo a ordens que deviam ser executadas, ainda que essas ordens representassem a escolha de judeus para a câmara de gás. Tratava-se de uma rotina de trabalho como outra qualquer que a mandassem desempenhar. Escapa-lhe de todo o horror de sua conduta: havia um trabalho a fazer e ela fora designada para fazê-lo. Senão, quem o faria?
Hanna é condenada porque acaba confessando responsabilidades maiores que as suas no extermínio de judeus. Assistindo ao julgamento, Berg descobre que Hanna tem um segredo e em nome dele assume a culpa. Esse fato ligará a trajetória de Berg à de Hanna durante os seus anos de prisão.
O enigma da admissão dos crimes de Hanna é esclarecido aos espectadores e confere sentido à trama. Entretanto, saímos do cinema intrigados com a personagem vivida por Kate Winslet. Não é só o segredo que ela se nega a revelar que nos surpreende: a noção de responsabilidade de uma mulher simples ao cumprir com determinação ordens terríveis extrapola a nossa capacidade de entendimento.
“O leitor” revela o desejo da sociedade alemã de expurgar de seu seio a mancha do nazismo. Para os espectadores é difícil sentir pena de Hanna. Somos, sim, sensibilizados pela sua tragédia pessoal. Mas a sombra do nazismo permeia os passos da ex-funcionária de um campo de concentração. Não importa muito que Hanna nos seja apresentada como personagem bastante humanizada: ela ama, trabalha, é correta, mulher como outras mulheres, mas dual: sobre ela pesam os crimes que precisam ser julgados, condenados e esquecidos.
“O Leitor” é um grande filme, daqueles que nos fazem pensar. Reconhecemos na trama personagens convincentes envolvidos por um clima de culpa e necessidade de punição. Kate Winslet está maravilhosa no papel de Hanna; Ralph Fiennes é perfeito na interpretação do Berg adulto.