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Lembrança do Pedrão
A idade que avança promove o retorno de pessoas e coisas esquecidas. Os médicos explicam que se trata de artérias cerebrais endurecidas que dificultam a irrigação sanguínea dos neurônios. Sintoma de esclerose - afirmam - é boa memória para fatos passados e ruim para acontecimentos recentes. Lembramo-nos perfeitamente de coisas acontecidas 20, 30 anos atrás, mas nem sempre temos lembrança de algo ocorrido nos últimos tempos. Isso sem falar nas situações em que fazemos um monte de coisas, tão mecanicamente, que um minuto depois não somos capazes de dizer onde realmente estávamos agorinha mesmo. É aquela coisa de fechar o carro e voltar a ele em seguida para ver se realmente o tínhamos fechado.
O lado bom - ou mau em alguns casos – é que nessa fase nos lembramos de situações que nos impactaram no passado e, juntamente com elas, das pessoas envolvidas. Pois não é que de repente me lembrei de um acidente de carro acontecido nos meus tempos de menino? Creio que na época eu não teria ainda 10 anos de idade. Morávamos numa cidadezinha de onde se saia viajando por estrada de terra ou de bonde elétrico cuja estação ficava a 4 km de distância.
Aconteceu que numa noite fomos, em carro de aluguel, levar meu pai à estação onde ele tomaria o bonde. Na volta estávamos eu, meu irmão e minha irmã, sentados no banco de trás quando o motorista errou o percurso e, ao invés de passar por uma pequena ponte, meteu-se ao lado dela, caindo o carro num riacho. Ocorre que o motorista assustou-se e, sabe-se lá por que, evadiu-se do local. Então ficamos, os três, ali no escuro, chorando, até que fomos resgatados pela gente de um caminhão que passou no lugar um bom tempo depois.
Lembro-me bem da revolta de minha mãe quando chegamos à casa e do esforço dela para conseguir uma condução que nos levasse ao hospital de cidade próxima. O meu irmão, mais velho que eu, cortou-se no acidente e ganhou uma cicatriz no rosto que levou consigo vida afora.
Eram outros tempos, entretanto, e as coisas ficaram por isso mesmo. O motorista, o Pedrão, era um bom sujeito, dono do carro e de algumas terras, bem sucedido, amigo do meu pai. Homem forte e de poucas palavras, o Pedrão era lhano no trato e dele sabia-se que tinha por hábito ter sempre, pendurado a um fio, sobre a cama onde dormia, um cacho de bananas. Caso o Pedrão acordasse durante a madrugada, estendia o braço, pegava e comia uma banana e voltava ao sono dos justos.
Esse Pedrão foi proprietário de caminhão e costumava fazer transporte de produtos agrícolas da região ao Ceasa, em São Paulo. Bom motorista aventurava-se na estrada barrenta da serra com grande carga, muitas vezes calçando os pneus com correntes para evitar deslizamentos. Entretanto, faltava a ele coragem para dirigir dentro da cidade de São Paulo. Por isso, fazia-se acompanhar de um ajudante que assumia a direção assim que alcançavam o fim do trecho da Via Dutra.
Não sei dizer ao certo há quantos anos o Pedrão morreu. Dele guardo boa recordação, excetuando-se aquele momento em que nos abandonou à própria sorte após o carro cair no riacho, ao lado da ponte.
Imagino que a atitude do Pedrão naquela noite desperte repulsa nos leitores. Não há como não concordar com isso. Entretanto, prefiro entender aquilo que muita gente poderia taxar como irresponsabilidade ou covardia como ato de pânico de um homem nervoso que talvez tenha fugido de si mesmo, alarmado pela grandiosidade do acidente que provocara. Aliás, leia-se grandiosidade nos termos da época porque, então, naquelas estradas não existia quase nenhum tráfego e a vala onde despencou o carro era de muito pouca profundidade.