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Rindo no caixão
Sonhei com o Carvalhaes. Confesso que há muito não me lembrava dele, sabe como são as coisas nesta vida corrida em que não sobra tempo nem para reminiscências.
No sonho o Carvalhaes estava como em seus bons tempos, tipo magro, ossudo, boca desproporcionalmente larga impressa na face estreita. Logo que me viu, veio ele com aquele vozeirão que Deus lhe deu, dizendo bobagens, “um monte” como ele mesmo definia a sequência de barbaridades que era capaz de engatar de uma só vez.
O Carvalhaes era um cara da noite. Encontrá-lo só depois de certa hora, em noites que ele chamava progressivas. Dia tem luz, tudo às claras, dizia. É na penumbra que mora o mistério e as pessoas se deixam levar pelos baixos instintos, acrescentava. Era ele dado a fervores estranhos, terreiros de umbanda e leitura da sorte, mas desconfio que no fundo não acreditasse em nada disso. O que o movia, de verdade, era a sedução do mulherio. Louco por mulheres era proprietário de fantástico rol de histórias sobre suas aventuras nas quais sempre suprimia os lances sexuais. Levava o interlocutor até a porta da alcova, passava a ele os possíveis encantos da mulher, mas calava-se quanto ao desenlace. Era canalha, sim, mas tinha classe.
Embora o conhecesse a bem da verdade nunca o vi acompanhado de nenhuma mulher. Como o Carvalhaes era papo prá lá de interessante os amigos gostavam mesmo era de vê-lo falar as suas bobagens, destacando-se sua incrível capacidade para contar piadas. Tinha ele o talento da piada, da rapidez e precisão do comentário certo, jocoso, proferido na hora exata. Fazia rir e ria com a boca grande, mostrando os dentes que surgiam de repente sob o bigode que se erguia durante a gargalhada.
Nunca soube detalhes sobre a vida do Carvalhaes que não fossem ligados aos nossos fortuitos encontros. Eu conheci o Carvalhaes da noite; o do dia-a-dia para mim sempre foi um enigma.
Mas, como acontece a todo mundo, certo dia a morte surpreendeu o Carvalhaes. Amigo comum me avisou e fomos nos despedir da figura. E não é que Carvalhaes tinha mulher e filha, as duas chorosas no velório do cara? Agora, é preciso dizer que aquele morto não era qualquer um daí o velório também ser incomum. A certa altura apareceu lá uma mulher que chorou copiosamente. Depois veio outra e até uma terceira que choraram a perda do encantador. Coisa de filme, não?
Ia o velório adiante quando a última das mulheres aproximou-se do caixão e, de repente, exclamou:
- Mas, o danado está rindo!
Comoção geral. Seria um caso de catalepsia, mais uma piada do Carvalhaes, estaria vivo o morto? Quando me aproximei do caixão reparei que aquela boca grande não se acomodara bem na morte, rasgando-se para os lados, como se sorrisse, rindo, talvez, de todo nós que ficávamos com as aventuras dele e suas histórias.
Foi um velório e tanto. Inesquecível.