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Livros volumosos e pesados
Não tenho certeza absoluta, mas creio que foi o Oswald de Andrade quem disse abominar livros com muitas páginas por que seriam obras de quem não tem mais o que fazer. A referência provavelmente era dirigida à gigantesca obra de Balzac que talvez não tivesse mesmo muitas outras obrigações que não a de escrevê-la. Consta que o grande escritor francês escrevia em sua cama e seus personagens se tornaram parte da família, como se fossem seres reais. Nas refeições em casa era comum um parente perguntar sobre a situação de tal e tal personagem dado que, como se sabe, na “Comédia Humana” as mesmas personagens aparecem em vários livros, tomando Balzac o cuidado de respeitar a idade delas e alterar para mais ou para menos a participação de cada uma em obras diferentes.
Sobre Oswald de Andrade também corre que recebeu, das mãos de João Guimarães Rosa, os originais de “Grande Sertão Veredas”. Oswald devolveu-os ao escritor na manhã seguinte, considerando-se verdadeiro prodígio que tenha lido tudo no espaço de uma noite, se é que isso realmente aconteceu.
Hoje em dia - não sei dizer e mais ou menos que antes – alunos de primeiro e segundo graus mostram, quase sem exceção, horror à leitura. Com tanta coisa para fazer somadas aos atrativos de filmes, games, comunidades sociais e tudo o mais, sentar-se a um canto para meter-se com as páginas de um livro parece ser um sacrifício e tanto. Pior, ainda, quando obrigados a ler obras que têm muitas páginas, os tais livros volumosos e pesados, tão assustadores.
Tem-se falado bastante sobre o fim do livro em papel e eu me pergunto, caso isso aconteça, se não será vencida a barreira da má impressão que causam os volumes grandes sobre leitores de ocasião. Sendo tudo eletrônico e passando diretamente do e-book para os olhos, talvez uma nova forma de comunicação se estabeleça entre a geração que não gosta de ler e o texto dos livros. Seria algo como colocar um comprimido dentro de um pedaço de pão, para facilitar a deglutição.
Desde já deixo clara a minha talvez injustificável aversão a ler livros inteiros em qualquer tipo de mídia eletrônica. Cresci entre livros impressos em papel e pretendo morrer em meio a eles. Não sou contra e-books e desejo a quem se adaptar a eles o melhor dos proveitos. No meu caso trata-se de uma questão de tato, do mistério da página virada com o auxílio das mãos, talvez certa sensação da presença física do escritor aprisionado dentro das capas. A meu ver nada disso é possível quando se trata de mídias eletrônicas.
Mas, o fato é que na vida corrida que se leva hoje em dia os livros volumosos tornam-se mais difíceis de ler e digerir. Leio muita coisa, mas, tal como os alunos dos cursos básicos, dou preferência a obras menos volumosas cuja leitura se faz mais rapidamente. Por essa razão a minha leitura de dois livros que comecei não tem rendido lá grande coisa. Um deles chama-se “A Cultura do Romance”, coleção de ensaios organizada por Franco Moretti. Trata-se do primeiro volume de uma série de cinco, publicado pela COSACNAIF. O livro é de fato avantajado com as suas 1113 páginas as quais pretendo degustar devagarinho.
Outro livro que tenho em mãos, mas no qual avanço devagar, chama-se “As Benevolentes”, de autoria do escritor Jonathan Littell. Esse é um romance de quase 900 páginas, publicado pela ALFAGUARA. O enredo é interessantíssimo: um oficial nazista narra os acontecimentos ocorridos durante a Segunda Guerra. Trata-se do ponto de vista do carrasco, portanto. A premissa do oficial é a de que em épocas de guerra o cidadão perde dois direitos: o de viver e o de não matar:
“Ninguém pede a sua opinião. O homem no alto da vala comum, na maioria dos casos, não pediu para estar ali tanto quanto o homem deitado, morto ou moribundo, no fundo da mesma vala”.
Lógica perversa, mas que não deixa de ser interessante. Falarei mais sobre o livro quando terminar.
Finados
Há quem não acredite em certas histórias acontecidas em pequenas cidades do interior e as atribuam à fabulação de escritores. É no que dá ser ficcionista: quem escreve um livro corre o risco de, a partir daí, não ser tomado a sério pela tendência de inventar tudo o que diz.
Não se pode negar que isso de fato aconteça a alguns escritores. Perdem eles o passo da realidade. Conta-se que para Balzac suas personagens eram tão vivas quanto as pessoas reais que o cercavam. Quando ele se reunia com sua família dava notícias sobre suas personagens: aconteceu isso e aquilo com fulano etc.
Outro ponto é que muito do que se conta sobre habitantes de lugarejos precisa ser datado: mesmo as pequenas comunidades foram assoladas nas últimas décadas pelos meios de informação. Daí que se descaracterizaram. Com o surgimento de uma juventude integrada com o mundo exterior os hábitos mudaram e personalidades estranhas ou arredias deixaram de ter espaço para as suas esquisitices.
Feitas essas ressalvas considere-se a existência de pessoas, moradoras de lugarejos, que passam suas vidas no interior de suas casas sem jamais saírem à rua. Estou falando sobre períodos de 30, 40, 50 anos de reclusão voluntária durante os quais essas pessoas ocupam-se de funções domésticas. Algumas delas quase nunca são vistas; outras costumam vir à janela que dá para a rua, onde passam grande parte do tempo. Da janela observam o escasso movimento e têm oportunidade de conversar com outras pessoas. Passam-se assim décadas num estilo de vida que certamente será incompreensível para a maioria das pessoas que vive nas cidades.
Conheci algumas pessoas assim, de saudosa memória. De uma delas, em particular, lembrei-me hoje. Era uma senhora que envelheceu tendo como moldura o batente da janela de sua casa. Podia-se vê-la ali, todos os dias, excetuando-se os raros períodos em que sua saúde era abalada por um mal sempre menor. Da janela ela via um pedaço do pequeno mundo em que vivia: um trecho de rua não asfaltada e algumas casas defronte a dela.
Religiosa, a senhora fazia suas orações em horas certas, tendo o rosário à mão e não sendo interrompida pelos passantes que conheciam os seus hábitos. Muito calma e comedida, a mulher da janela agitava-se numa única ocasião durante o ano: às vésperas do dia de finados. Nesse dia desaparecia ela de sua janela durante largos períodos. Sabe-se que então passava horas no jardim que mantinha nos fundos de sua casa, cuidando das flores que mandaria para o túmulo do filho.
Ao amanhecer do dia seguinte, muito cedo, lá estava ela no seu posto, aguardando a chegada das suas comadres. Quando elas chegavam, repetia-se um ritual que a cada ano atraía mais observadores: a senhora da janela rezava em voz alta; depois, pegava as flores, beijava uma a uma, e as entregava às comadres recomendando que fossem levadas ao túmulo do filho. Então fechava a janela e só voltava a ser vista no dia seguinte.
Com o passar do tempo o lugarejo cresceu: a rua foi asfaltada e as casas defronte à janela deram lugar a prédios. Envelhecida, a senhora já não vinha tanto à janela. Por fim as comadres morreram e a doença que não poupa ninguém prendeu a senhora ao leito.
A senhora da janela curiosamente morreu e foi enterrada num dia de finados. Os tempos eram outros e já ninguém conhecia a sua história. Meses depois a casa onde ela viveu foi vendida e no lugar dela existe atualmente um prédio cujos moradores nada sabem sobre o passado do lugar.
Lembrei-me da senhora da janela hoje, dia de finados. Quando for ao cemitério vou procurar pelo túmulo dela e quem sabe acenderei uma vela.
Pelos velhos tempos.