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A hora “H”
Essas mal traçadas nascem da notícia da morte de um conhecido ator de telenovelas. Vejo a foto do ator, lembro-me de algumas atuações dele e constato que, paulatinamente, o mundo vai sendo despovoado. Melhor seria ter escrito: o “meu mundo” vai sendo despovoado. Falo sobre o “meu mundo” porque as pessoas que morrem e são minhas conhecidas despovoam o universo que conheço. Reparo que a minha geração e a anterior a ela vão desaparecendo sorrateiramente. Claros se abrem nas nossas fileiras e não há como negar que o tempo não deixou de passar embora tenhamos nos esforçado para fingir que a vida é eterna.
Soube de pesquisa recentemente realizada junto a idosos sobre os medos que os apoquentam no tempo final da vida. Destacam-se os medos da solidão e o da falta de dinheiro. Para mim o medo é o de ser atingindo por doença dessas de longa duração e muito sofrimento. Os antigos diziam que os que sofrem muito antes de morrer estão a pagar por males praticados durante as suas vidas. Não creio. Vi pessoas medularmente boas e corretas sofrerem muito antes de fecharem os olhos; também vi personalidades peçonhentas morrerem sem nenhum sofrimento.
Alarma a constatação do progressivo desaparecimento de pessoas com quem convivemos no passado. Dias atrás, por puro caso, deparei com o nome de um engenheiro que trabalhou no setor automobilístico e lutou por criar uma indústria genuinamente nacional nesse setor. No fim das contas foi abandonado e vencido pelas montadoras multinacionais e terminou fracassando em seus negócios.
Pois conheci esse homem quando estava no auge de seus sonhos. Participei da cerimônia de lançamento de seus carros nacionais, cerimônia essa realizada com toda pompa que sugeria um futuro promissor. E deu no que deu. Mas o engenheiro está morto e o que sonhou e realizou certamente esquecido.
Pelo que percebo existe para cada pessoa um momento no qual ocorre o desligamento entre o que se foi na vida e o que se passará a ser daí por diante. Esse momento – a hora “H” - não necessariamente está vinculado ao instante em que se vai morrer, havendo casos nos quais a demora da vinda da morte é significativa.
Relata a mulher do ator que hoje morreu que desde alguns anos o marido estava mal porque surgiram sintomas de doença e ele deixou de representar. Só agora, passados alguns anos nessa situação, o grande cobrador lembrou-se de levá-lo para sempre.
O fim da Kombi
Leio que a Kombi vai parar de ser fabricada. Há 55 anos o primeiro modelo do utilitário era fabricado no Brasil. A notícia revela que há brasileiros apaixonados pela Kombi daí não a largarem de jeito nenhum. Mas, também se diz que não há brasileiros de mais de 60 anos de idade que não tenham alguma relação passada com o veículo fabricado pela Volkswagen.
Ora, a última afirmação do parágrafo anterior me fez pensar: eu e a Kombi? Quando? Em que circunstâncias? Pois bastou puxar pela memória só por um instante para que me voltassem situações em que eu estive dentro de uma Kombi. Uma delas foi numa terrível e desastrada viagem à praia dentro de uma Kombi lotada nos meus tempos de rapazote. Calor infernal, desconforto de um utilitário que não era para passeio. Outras situações aconteceram em época de viagens a serviço pelo interior, sempre levado por algum funcionário de empresas que dirigiam as Kombis. Durante um desses trajetos, na região de Jaú, avistei um arvoredo cuja imagem nunca me saiu da cabeça. Íamos pela estrada e, ao longe, árvores muito altas curvavam-se sob o impacto do vento e chuva fortes. A luta das árvores resistindo à intempérie, os raios que caiam em meio à floresta e o ruído dos estrondos geravam cenas de filmes, inesquecíveis. Talvez por isso, toda vez que acontece uma tempestade as imagens que vi naquela estrada retornem à minha memória.
E dizer que dirigi uma Kombi carregada no trajeto entre São José dos Campos e Santos. Era daquelas com carroceria adaptada e lá iam alguns móveis pesados. Quando passei pelo pedágio da Anchieta deparei com intensa neblina. Depois de algum tempo, no começo da descida da serra, percebi que não vira nenhum carro durante o trajeto. Estava sozinho e para dizer a verdade quase não via nada tão intensa era a neblina. A certa altura percebi um carro ao meu lado, sinalizando para que eu encostasse. Quando consegui parar veio um guarda rodoviário para me dizer que eu fora o último veículo a passar antes que o pedágio fosse fechado. A estrada estava intransitável e com visibilidade zero, daí eles terem vindo para me socorrer. Que eu os seguisse até o fim da serra para evitar o risco de acidente. E há quem não acredite em anjos…
Imagino que milhares de pessoas sejam capazes de contar passagens como as anteriores, certamente mais interessantes. Entretanto, o que me levou a tocar nesse assunto é justamente o tempo que corre e a obsolescência inevitável de tantas coisas que nos foram tão úteis. A Kombi faz parte de uma época que se vai com ela. Com o fim da Kombi retira-se das ruas parte das nossas memórias. Mas, não há outro jeito: a indústria automobilística cria a toda hora novos modelos e a mudança nas linhas de produção faz parte de um jogo que visa atender às necessidades do público e fazer crescer as vendas.
Ficam as lembranças.
Vírus atacam motores
Conheço o Juan a alguns anos, antes mesmo do tempo em que ele trabalhava na indústria automobilística. Ele foi estudante de engenharia em escola do interior e quase nunca acordava cedo para ir às aulas. Acabou fazendo o curso bem do jeito dele, os cinco anos em nove, e recebeu o diploma de engenheiro mecânico sem ter motivos para orgulhar-se de sua vida de estudante.
O Juan é filho de um argentino que veio ao Brasil para passear, conheceu uma moça daqui e não voltou ao seu país. Casou-se com a moça - a mãe do Juan – e tocou a vida até que um câncer no intestino o levou desta para a melhor.
É preciso dizer que o Juan na verdade é esse tipo de cara que não precisa da formação que se obtém nas faculdades. Ele é um sujeito intuitivo e pode-se dizer, sem medo de errar, que nasceu com o dom de entender e consertar qualquer tipo de coisa, principalmente motores. Daí que quando, ainda jovem, arrumou emprego na indústria automobilística logo se destacou. Foi ele quem resolveu um problema sério de motor num modelo de carro a ser lançado no Brasil para o qual não se achava saída. O que se sabe é que o Juan não saia dia e noite da fábrica, testando o motor, até que deu um jeito na geringonça.
Na época os americanos ficaram muito entusiasmados como o feito do Juan e decidiram mandá-lo para a matriz da empresa nos EUA. O Juan topou, fez o curso de inglês que a fábrica pagou para ele e desistiu de tudo uma semana antes da viagem programada. “Desistiu” quer dizer: desistiu mesmo porque pediu demissão do emprego na fábrica. Coisa inexplicável, mas que justificou, dizendo:
- Não vou ser empregado dos americanos.
Bem assim, do jeito dele. E nunca mais trabalhou para ninguém, exceto para ele mesmo e à maneira dele. Abriu uma empresa e levou adiante o projeto de trabalhar apenas o necessário para sobreviver, razão pela qual muitas vezes enfrentou e enfrenta dificuldades.
Agora o Juan passou dos 65 anos de idade e estou preocupado com ele. Obviamente, ele utiliza computadores e entende de hardware como ninguém. Entretanto, aconteceu do carro do Juan quebrar, justamente um problema no motor. A coisa seria fácil de ser resolvida se ele não tivesse metido na cabeça que os vírus de computadores estão em marcha para invadir motores de carros e máquinas de todo tipo, paralisando-as. O Juan tem certeza de que o problema do carro dele é causado por um vírus potencialmente invasivo e que deve ser destruído antes que se propague, causando enormes prejuízos às indústrias e às pessoas em geral.
Ontem mesmo conversei com a mulher do Juan e ela me disse que talvez ele esteja enlouquecendo, coisa que, afinal, bem que se poderia esperar em relação a ele. Não sei não. Embora tudo isso ainda esteja muito nublado penso nesses caras que fazem diferença e parecem destinados a descobrir coisas que nem passam pela ideia dos humanos normais. Vai ver que o Juan é um deles e está em plena função para uma grande descoberta que evitará sérios problemas. Não sei não, mas quando o caso envolve o Juan tudo é possível.