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Cinzas
A quarta-feira de hoje parece não ter o significado de antes. Aprontava-se no carnaval, mas as cinzas da quarta-feira restituíam as coisas ao devido lugar. Minha mãe não abria mão de que a acompanhasse à igreja para que o padre colocasse cinzas na minha testa. Ai de mim se limpasse as cinzas. Deixava a marca na testa até chegar em casa e lavar o rosto.
E vinha a quaresma, tempo de meditação e ausência das alegrias fáceis. Era um mundo de regras aquele, pontuado pelas determinações da fé. As mulheres, chalé preto às costas, visitavam-se e falavam baixo. Minha mãe ralhava com meu pai acaso erguesse demais a voz.
Pecado ou não, o carnaval era muito bom. Vestíamos fantasias, fabricávamos sangue do diabo e perseguíamos as meninas nas ruas. Os bailes de salão, animados, atravessavam as madrugadas. A última noite, terça-feira gorda, anunciava o fim da alegria geral e prenunciava o tempo que viria. Por isso o bom folião dava tudo de si, esbaldava-se a valer naquelas horas em que tudo parecia valer, inclusive umas cheiradas na Rodouro que tinha o dom de fazer girar tudo à nossa volta.
Era assim o carnaval. Diferente desse que ontem terminou no qual luxo e pouca alegria deram o tom. Não há naturalidade nos desfiles das capitais nos quais a exuberância toma lugar da espontaneidade. Carnaval mais que cronometrado, alegria de tempo contado. Até tudo se desmanchar na Praça da Apoteose e começar o sufoco da apuração.
Nas ruas os blocos, os trios elétricos, as imagens de sempre que ainda contam com bons foliões. Em alguns lugares o estouro da violência, as depredações, o lixo acumulado, as necessidades pessoais feitas ali mesmo, no meio-fio.
Tudo é carnaval - dirão. Talvez o melhor fosse dizer que tudo são cinzas, sucessão interminável de quartas-feiras.